É certo que os evangelhos não nos transmitem os ensinamentos de Jesus de modo literal. Entre o acontecimento histórico de Jesus e a redacção dos evangelhos passaram-se várias décadas. Os evangelhos são resultado das catequeses das comunidades o que quer dizer os ensinamentos de Jesus já estão transformados. Isto no entanto, não significa que os evangelhos não tenham nada a ver com o que Jesus disse e ensinou.
Podemos dizer que os evangelhos são o conjunto dos ensinamentos de Jesus mas já enriquecidos pela acção do Espírito Santo nas comunidades crentes. O Espírito Santo não vem falar de si mas de Jesus: “Quando vier o Paráclito, o Espírito de Verdade que procede do Pai e que eu vou enviar-vos da parte do Pai, ele dará testemunho de mim. E vós também testemunhareis em meu favor, pois estais comigo desde o princípio” (Jo 15, 26-27).
O Espírito Santo e os discípulos testemunham igualmente de Jesus. A fonte da qual emergia a pregação de Jesus é a mesma da qual passou a emergir a pregação dos apóstolos após a Páscoa. Os evangelhos, portanto, transmitem-nos o Evangelho de Jesus. Os evangelhos fixam através da escrita, o mesmo de Evangelho de Cristo: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora. Quando vier o Espírito da verdade há-de guiar-vos para a verdade completa (...). Ele há-de manifestar a minha glória, pois receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer. Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso vos disse que receberá do que é meu” (Jo 16, 12-15). “Enquanto estava convosco fui-vos revelando estas coisas. Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele ensinarvos-à tudo e recordar-vos-à tudo o que vos disse” (Jo 14, 25-26).
Com Jesus Cristo iniciou-se a plenitude da revelação. Mas esta plenitude não terminou com a morte de Jesus. Os evangelhos coincidem na transmissão de uma série de ensinamentos e atitudes de Jesus. Descrevem estas atitudes de modos diversos e com relatos diferentes. Isto significa que não podemos tomar à letra estes relatos, mas sim as atitudes que nos relatam. Há sobretudo uma série de ensinamentos que nos revelam a profundidade e riqueza dos seus ensinamentos. Jesus interpretava os acontecimentos e saboreava a vida com a Sabedoria que vem do alto. Os seus critérios eram os de Deus, não os do mundo:
1- Os Critérios do Mundo Não São o Caminho da Humanização e Felicidade:
Mt 5, 3: Felizes os pobres, pois deles é o Reino dos Céus. Cristo não defendia a miséria, mas convidava os homens a partilhar. É este o caminho da abundância. Ser pobre é ter um coração capaz de pensar no outro e elegê-lo como irmão, para lá dos laços do sangue.
Mt 5, 4: Felizes os que choram, pois serão consolados. O mundo faz chorar homens e mulheres que tinham todo o direito a sorrir, pois são pessoas justas e boas. Os que lutam por uma mundo mais justo e fraterno são perseguidos, presos e muitas vezes mortos. Estes sorrirão na comunhão do Reino de Deus, pois atingiram uma capacidade grande de comungar com Deus e os irmãos.
Mt 5, 5: Felizes os mansos, pois possuirão a Terra. A violência não realiza o projecto de Deus. Com frequência os regimes que nasceram da violência tornam-se mais violentos que os anteriores. A não violência não significa apatia ou desinteresse. Não é neutra, pois actua como um fermento na massa. Os violentos e os opressores perseguem os não violentos á maneira de Cristo.
Mt5, 6: Felizes os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados. Os pobres, os machucados e marginalizados serão saciados. Jesus significava isto com os gestos que tomava em relação aos pobres e marginalizados. Foi hospedar-se em casa de Zaqueu, um pecador público. Deixou-se tocar em público por Maria uma prostituta conhecida de toda a gente. Chegou a afirmar que os marginais as prostitutas, ficarão muito à frente dos especialistas da religião: sacerdotes, fariseus e doutores da Lei. O Samaritano, um sujeito excluído do povo de Deus, ficou à frente do sacerdote e do levita porque soube amar o próximo. A oração do publicano agradou a Deus, enquanto a dos fariseus e doutores da Lei não. Com efeito,” Não são os sãos que têm necessidade de médico, mas sim os enfermos” (Mc 2, 17).
Há também os que não são pobres nem marginalizados, mas são perseguidos por causa da justiça. Deste é o Reino de Deus (Mt 5, 10). Estes são verdadeiros construtores da paz. Estes serão chamados filhos de Deus (Mt 5, 9). De facto, a paz é a calda ambiental para a humanização dos seres humanos.
A paz não é não fazer ondas. Não é deixar o mal acontecer e ficar parado. A paz que serve de calda à humanização do Homem assenta na justiça e no respeito pela dignidade das pessoas. Os que trabalham pela dignificação da pessoa humana são construtores da paz. O Homem está no centro das atenções de Deus: O Sábado está feito para o Homem e não o Homem para o Sábado” (Mc 2, 27).
A sabedoria de Cristo fá-lo compreender o Homem com os critérios de Deus. Ele sente-se enviado para edificar a Família Divina, a qual não assenta nos laços do sangue mas nos laços do Espírito Santo: “Se apenas amais ao que vos amam que mérito tendes nisso? Se apenas saudais os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não procedem os pagãos também deste modo?” (Mt 5, 46-47).
A Sabedoria de Jesus fê-lo compreender que o amor a Deus e aos irmãos é o cumprimento de todos os preceitos, normas e ritos que tornavam o judaísmo um coisa complicada e impossível de praticar: “Não penseis que vim revogar a Lei e os profetas. Não vim revogá-los mas levá-los à perfeição, cumprindo-os plenamente (Mt 5, 17-18). O que se limita a cumprir as normas da Lei é um servo inútil. Apenas cumpriu o que estava mandado. Quem opta pelo amor entra na dinâmica da criatividade. O amor é um apelo a responder de modo sempre novo e adequado, a fim de facilitar a realização e a felicidade dos outros.
2- Autenticidade Perante Deus
Mt 6, 1-4: «Guardai-vos de fazerdes o bem para serdes vistos e louvados pelos outros. Procedendo deste modo não tereis a recompensa do vosso pai do Céu. Quando deres esmola que a tua mão direita não saiba o que faz a esquerda».
Mt 6, 7-8: «Quando orares, não sejas como os pagãos: usam de muitas repetições inúteis pensando que, por falarem muito, são mais atendidos. Não façais como eles, pois o Pai do Céu sabe do que precisais antes de lho pedirdes».
Mt 5, 23-24: «Se fores apresentar a tua oferta ao altar e sentires que teu irmão tem qualquer coisa contra ti, vai primeiro reconciliar-se com teu irmão. Depois vem e apresenta a tua oferta».
Mt 6, 15.18: «Quando jejuares não apresentes um rosto sombrio, como os hipócritas. Estes desfiguram o rosto, a fim de as pessoas verem que estão a jejuar. Já receberam a sua recompensa. Quando jejuares toma banho e perfuma-te para as pessoas não perceberem que está a jejuar. O teu Pai que vê no oculto te dará a recompensa».
3- Jesus e as Riquezas
Os evangelhos contêm uma série de ensinamentos sobre o bom uso das riquezas. Muitos destes ensinamentos aparecem em forma de parábolas ou histórias edificantes. Têm como pano de fundo os ensinamentos de Jesus sobre as riquezas. São transformadas em mensagens destinadas a conferir aos crentes os critérios cristãos sobre as riquezas. Este modo de proceder pretende incutir na consciência dos leitores os critérios de Cristo sobre as riquezas, a fim de fazer crescer a vida teologal dos crentes a qual capacita os cristãos para serem mensageiros da Boa Nova de Jesus. Não pode evangelizar quem não tem os critérios de Jesus.
Lc 12, 16-21: A parábola do rico insensato. A pessoa não vale pelo que tem nem pelo que sabe, mas pelo que é. Pôr a confiança nas riquezas é uma idolatria pois estas não conseguem salvar-nos.
Lc 16, 1-8: Esperteza do administrador sagaz. Os filhos do mundo sabem administrar os bens para assegurar o seu futuro. O cristão deve saber usar os bens para criar dinâmica de partilha e fraternidade, única garantia de vida eterna. Os bens terrenos não são para amontoar mas para circular e gerar laços de comunhão. Dançaremos eternamente a música do amor com o jeito que aprendermos agora. Os bens são um dom, pois são uma mediação muito especial para crescermos na capacidade de comunhão.
Lc 16, 19-31: Parábola do Rico e do Pobre Lázaro. Existe uma relação muito estreita entre os bens materiais e a nossa partilha no projecto salvador de Deus. O coração humano é moldado em grande parte pelas atitudes que tomamos face ao ter. Após a morte encontramo-nos perante os outros segundo o modo como agimos com o nosso ter.
Lc 10, 29-37: A questão de saber quem é ou não o nosso próximo depende de nós, não de qualquer decreto exterior. De facto, o próximo não se nos impõe. Os outros apenas podem propor-se-nos como próximo. A última palavra é sempre nossa. O Bom Samaritano não era judeu. Não teve as lições de teologia dos sacerdotes e levitas. No entanto foi o único que agiu correctamente em relação à questão do próximo. Quem tem capacidade para eleger o outro como próximo tem qualidade de coração para comungar no Reino de Deus.
Mt 6, 19-21: «Não acumuleis tesouros na Terra, onde a traça e a ferrugem os corroem e os ladrões arrombam as portas para os roubar. Acumulai tesouros no Céu, onde a traça e a ferrugem os não corroem e os ladrões não arrombam as portas para roubar. Onde está o vosso tesouro aí está o vosso coração.» Ponde o vosso tesouro na fraternidade e comunhão com os outros e estareis a edificar para o Reino de Deus. Os ricos vivem cheios de medo de que lhes roubem as riquezas. Isto rouba-lhes a paz interior e a tranquilidade.
Mt 6, 25-26: Não é bom andarmos demasiado ansiosos com os bens terrenos. Confiai em Deus e vereis que o resto será facilitado. «A vida é mais que o alimento e o corpo mais que o vestuário. As aves do Céu não semeiam, não ceifam nem recolhem em celeiros. No entanto, o vosso Pai do Céu alimenta-as». Se trabalhardes pela justiça, a fraternidade e a partilha, haverá abundância para todos.
Mt 15, 32-38: Eram cerca de quatro mil pessoas. Via-se que estavam com fome. Os discípulos tinham apenas sete pães e alguns peixes. Jesus mandou-os entrar na dinâmica da partilha. Todos comeram e ainda encheram sete cestos com os restos que sobraram. Os sete pães significa o suficiente caso entrasse na dinâmica da abundância: a partilha. Os sete cestos significa que podiam continuar que não aconteceria carência. A fome é um produto do egoísmo estruturado das sociedades e dos povos. A Terra dá o suficiente para todos. Como vemos, a Sabedoria de Jesus interpelava e interpela, no sentido de mudar o mundo.
Mt 19, 16-26: O Jovem rico entusiasmou-se com as palavras e acções de Jesus. Pensou fazer-se seu discípulo. Mas as riquezas foram um impedimento. Não é fácil aos ricos adquirirem qualidade de coração para acolherem e viverem segundo a sabedoria de Jesus. Já cumpria os mandamentos. Era um servo inútil que apenas fazia o que estava mandado. As riquezas são um travão que bloqueia a passagem para o vinho novo, a dinâmica da partilha e da comunhão fraterna, a qual cumpre toda a lei e os profetas (Mt 5, 17).
A proposta de vender os bens e dá-los aos pobres foi o grande obstáculo que impediu o jovem de seguir Jesus. Se um rico se propõe acolher Jesus apesar de tudo, as coisas tornam-se simples simples. Zaqueu, homem rico, acolheu Jesus com sinceridade e imediatamente as suas atitudes face à riqueza se alterara.
4- Jesus e os Pecadores
A sabedoria de Jesus, no caso da mulher adúltera revelou-se de uma profundidade divina. Os fariseus e doutores da lei, especializados em religião, entendiam de cultos e sacrifícios, mas não entendiam de misericórdia e justiça. Estavam prontos para matar a mulher à pedrada. Põe a questão a Jesus, a fim de lhe armarem uma cilada. Jesus diz-lhes: aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra. Todos, a começar pelos mais velhos se começaram a retirar em silêncio. A Sabedoria do alto confunde os projectos hipócritas e assassinos. Jesus conseguiu penetrar no mais profundo do mistério humano. Sabia que muitas pessoas, são mais vítimas que culpadas. Por isso nos proíbe de julgar.
Mt 7, 1-5: «Não julgueis para não serdes julgados. Sereis julgados com a medida que usarmos para os outros». O Reino de Deus é uma comunhão orgânica onde somos convidados a entrar mediante relações de fraternidade e amor. Dançaremos eternamente a música do amor com o jeito que treinarmos agora. O que passou a vida a julgar os outro não treinou a dança do amor mas a da separação e afastamento. Não encontra reciprocidade do Reino de Deus.
Mt 9, 2-7: Perdão do pecado e cura do paralítico. Esperavam que o homem ficasse bom das pernas. Não tinham qualquer ideia de que houvesse outras feridas e paralisias mais profundas. Jesus começa por dizer ao paralítico que o seu pecado está curado. Para o paralítico isto foi uma desilusão e para os fariseus presentes um escândalo. Mas depois do perdão veio a cura. Jesus é o libertador do homem total, não apenas do eu exterior. Há feridas muito profundas na nossa interioridade espiritual que derivam, umas do nosso pecado, e outras do pecado dos outros em relação a nós.
Estas feridas a nível espiritual são laços relacionais de amor que se cortaram quer por recusa, quer por condicionamentos vindos dos outros. Abrir-se à acção do Espírito Santo é criar condições para ser curado destas feridas. O Espírito Santo, em nós restaura os vínculos destruídos da relação amorosa com Deus e os irmãos. Graças à sabedoria que o animava, Jesus via a sua missão libertadora com os horizontes do próprio Deus.
Lc 6, 43-45: A Árvore conhece-se pelos frutos. A árvore boa dá bons frutos e a má dá maus frutos. As aparências, muitas vezes iludem-nos. As pessoas não são evidentes. Mas revelam-se através das relações. A pessoa boa do tesouro do seu coração tira coisas boas. O coração da pessoa má é uma fonte de coisas más. É do coração da pessoa que emerge o bem e o mal. A pessoa não é igual ao que diz, mas sim igual ao que faz. A pessoa não é igual aos talentos que tem, mas sim igual aos talentos que realiza. A pessoa faz-se , fazendo. Realiza-se , realizando. É através das sua opções, escolhas e orientação de vida que a pessoa se realiza. Por isso a árvore boa dá bons frutos e a má maus frutos.
5- A Sabedoria Como Impulso de Vida Nova
Mt 7, 24-27: «A pessoa que escuta os ensinamentos de Jesus torna-se semelhante ao homem prudente que edifica a casa sobre rocha. A pessoa que despreza o ensinamento de Jesus é como o homem insensato que edifica a casa sobre areia». A pessoa prudente acolhe a sabedoria, a insensata despreza-a.
Mt 9, 16-17: Odres novos para vinho novo. A mensagem de Jesus é o vinho novo. É diferente do vinho anterior, os preceitos, normas e ritos inúteis do judaísmo. As estruturas judaicas estavam envelhecidas. Não comportavam o vinho novo. As comunidades cristãs nascidas do Pentecostes são os odres novos, os únicos que podem levar o vinho nos do amor a Deus e aos irmãos. Ninguém deita um remendo de pano novo num vestido velho e gasto, aliás o remendo novo rebenta o vestido velho e o rasgão torna-se maior. Só em contexto comunitário o cristão pode amadurecer na vida teologal, a vida nova que o capacita para ser sal luz e fermento no mundo (Mt 5, 13-16).
Mt 5, 44-48: A Sabedoria teologal leva-nos a amar até os inimigos. «Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Procedendo deste modo tornais-vos filhos do vosso Pai do Céu que manda o sol e a chuva tanto para justos como para pecadores». Se apenas amais os vossos amigos não estais a viver o amor em densidade teologal. Os pagãos também fazem o mesmo.
Mt 10, 19-20: Jesus foi perseguido. Os discípulos, após a morte do Senhor também serão perseguidos. Mas não devem estar aflitos, pois o Espírito Santo vai vir e vai enchê-los da Sabedoria de Jesus à qual os seus inimigos não poderão resistir.
Lc 7, 18-23; cf Mt 11, 2-5: Os discípulo de João baptista, após a prisão deste, iam-no informando do que se passava. Então João mandou dois a perguntar a Jesus se é ele o Messias ou se devem esperar outro. O que está subjacente a este relato é que João anunciava a vinda do Messias segundo o esquema trágico dos apocalipses judaicos. Será o dia do castigo e destruição dos pecadores (cf Mt3, 7-10; Is 30, 27-33). O Espírito Santo foi conduzindo Jesus por outros caminhos. Como diz Isaías ele é o ungido pelo Espírito para anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos, dar vista aos cegos, fazer os coxos andar e ressuscitar mortos (Lc 4, 18-21). O Espírito Santo conduziu Jesus servindo-se também dos textos dos profetas (cf Is 61, 1-3; 35, 5-6; 42, 18¸61, 1-3).
Mt 11, 25-27: Jesus exulta de alegria pelo facto de o Pai, mediante o Espírito Santo, estar a conceder aos discípulos o dom da Sabedoria. Esta vem da revelação que o Filho faz do Pai, pois ninguém conhece o Pai senão o Filho como ninguém conhece o Filho senão o Pai e aqueles a quem o Filho o revelar.
Jo 15, 1-7: A nossa salvação acontece mediante a nossa união orgânica com Jesus. Somos como ramos de uma videira organicamente unidos à cepa que é Cristo. A seiva que vem da cepa para os ramos e os torna fecundos é o Espírito Santo. É a Água Viva que o Senhor nos dá e faz jorrar no nosso íntimo vida eterna (Jo 4, 14; 7, 37-39).
Em Comunhão Convosco
Calmeiro Matias
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