A Bíblia reconhece que o casamento é um projecto que faz parte do plano criador de Deus. Ao pensar na criação do Homem, Deus pensou-o em termos de ser talhado para o amor fecundo, o qual se realiza em termos de comunhão familiar: “Depois, Deus disse: “façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.” Deus criou o ser humano à sua imagem, criou à imagem de Deus, ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra” (Gn 1, 26-28).
Deus sonhou o homem à sua imagem, por isso os criou, acrescenta o Génesis, homem e mulher. Este texto é verdadeiramente a primeira afirmação, embora ainda não explícita, de que a divindade é relações de amor fecundo. Por outras palavras, Deus não é um sujeito infinito que vive sozinho numa transcendência fechada. A divindade é relações de amor fecundo. E porque o amor fecundo e criador é a calda da felicidade, Deus sonhou o Homem com este mesmo jeito de ser.
De tal modo o texto do Génesis é significativo que o Novo Testamento o cita várias vezes. São Mateus serve-se do texto para defender a indissolubilidade do matrimónio: “Jesus respondeu: “Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher, e disse: por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá á sua mulher, e serão os dois um só? Portanto, já não são dois, mas um só. Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem” (Mt 19, 4-6).
Os escritos de São Paulo, bem como os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas pressupõem que Jesus ressuscitado viria dentro de pouco tempo para fundar o reino messiânico sobre a terra. Neste reino as pessoas humanas estão todas glorificadas à semelhança de Cristo ressuscitado. A questão do casamento, portanto, já não se punha, pois no reino de Deus, os homens e as mulheres são como anjos: “Na ressurreição, nem os homens terão mulheres, nem as mulheres maridos; mas serão como anjos no Céu” (Mt 22, 30).
Pensando que a segunda vinda de Cristo estava prestes a acontecer, São Paulo achava preferível não casar, pois já não havia tempo para criar os filhos e o casamento ia acabar muito em breve. No entanto, acrescenta que, mesmo assim, os que preferirem casar podem fazê-lo sem qualquer problema. Além disso devem cumprir os deveres matrimoniais sabendo que, ao unir-se, formam uma união orgânica. Por isso o corpo da esposa é pertença do marido e o corpo do marido é pertença da esposa:
“A respeito da opinião que me pedistes por escrito penso que seria bom para o homem abster-se da mulher. Todavia, para evitar o perigo da incontinência, cada homem tenha a sua esposa e cada esposa o seu marido. O marido cumpra os seus deveres conjugais para com a esposa e esta para com o marido. A esposa não pode dispor do seu corpo, mas sim o marido. Do mesmo modo, o marido não deve dispor do seu corpo, mas sim a esposa. Não vos recuseis um ao outro, a não ser por mútuo acordo e apenas por algum tempo, a fim de vos dedicardes mais intensamente à oração. Depois voltai um para o outro, a fim de não cairdes nalguma tentação perigosa.” (1 Cor 7, 1-5).
São Paulo pensava que Deus criou primeiro Adão e depois Eva. Ao criar Adão Deus fê-lo à sua imagem. Ao criar Eva fê-la à imagem de Deus. Havia, portanto, uma certa subordinação. São Paulo entendia o mistério da comunhão do varão e da mulher como uma união orgânica que faz dos dois uma só carne, como diz o livro do Génesis (Gn 2, 24). Além disso pensava que Deus tinha criado o varão para ser o chefe da criação. Só depois é que criou a mulher, a qual foi criada para conferir a plena felicidade ao varão.
É esta a razão pela qual o Apóstolo vê o homem como cabeça da mulher, embora reconhecendo a mesma dignidade. Compara a união do marido com a esposa á união de Cristo com a Igreja. Este é um dos aspectos fundamentais para considerarmos o matrimónio como sacramento, isto é, corporização, explicitação e visibilidade de uma realidade que o transcende. É neste contexto que devemos entender o seguinte texto da Carta aos Efésios:
“Submetei-vos uns aos outros pela veneração que deveis a Cristo: as esposas devem submeter-se aos seus maridos como ao Senhor, pois o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja. Ele é o salvador do Corpo que é a Igreja. Ora, como a Igreja se submete a Cristo, assim as mulheres aos maridos, em tudo. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de a santificar, purificando-a no banho da água pela Palavra (…). Assim devem também os maridos amar as suas esposas, como se do seu próprio corpo se tratasse. Quem ama a sua mulher ama-se a sim mesmo. Como sabeis, ninguém odeia o seu próprio corpo. Pelo contrário, alimenta-o e cuida dele como Cristo faz com a Igreja. Por isso, o homem deixará pai e mãe, unir-se-à à sua mulher e formarão os dois uma só carne. Grande é este mistério. Eu interpreto-o em relação a Cristo e a Igreja” (Ef 3, 21-32).
Este texto ajuda-nos a compreender o sentido bíblico do termo carne: o ser humano como interioridade talhada para a relação e para formar um todo orgânico com os outros. Deste modo s torna claro para nós o significado da carne de Cristo, do formar o Corpo de Cristo, de comer a carne de Cristo, da ressurreição da carne e do facto de a mulher e o varão formarem uma só carne. Como sabemos, os sacramentos só existem na história.
Como sabemos, os sacramentos são celebrações comunitárias da Fé que imprimem na vida dos que os celebram uma dinâmica nova. No Reino de Deus já não há sacramentos. Eis a razão pela qual os vínculos sacramentais do matrimónio acabam com a morte de um deles. O casamento de um viúvo ou de uma viúva não tem nada a ver com infidelidade ou menos amor pela pessoa que partiu primeiro. São Paulo, na Carta aos Romanos, insiste neste aspecto:
“Do mesmo modo, a mulher casada só está vinculada ao marido enquanto ele viver. Se o marido morrer, fica liberta da lei que a liga ao marido. Eis a razão pela qual ela será declarada adúltera se vier a entregar-se a outro homem enquanto o marido viver. Mas se o marido morrer fica liberta da lei que a liga ao marido e não comete adultério se vier a unir-se a outro homem” (Rm 7, 1-3).
No contexto desta citação, São Paulo não está a falar directamente do matrimónio, mas da caducidade da lei mosaica. Na Primeira Carta aos Coríntios o Apóstolo volta a insistir neste aspecto. Mas agora referindo-se à brevidade da segunda vinda de Cristo. Como diz na Carta aos Efésios, Paulo diz que seria melhor não casar. Mas não faz mal algum se decidir casar:
“A respeito dos solteiros, não tenho nenhum mandamento do Senhor, mas dou um conselho, como homem que, pela misericórdia do Senhor, é digno de confiança (…). Estás casado? Não procures romper o vínculo. Não estás comprometido? Não procures mulher. No entanto, se te casares, não pecas. E se uma virgem casar também não peca (…). Eis o que vos digo, irmãos: “O tempo é breve. De agora em diante os que têm mulher vivam como se a não tivessem. Do mesmo modo os que choram, procedam como se não chorassem e os que se alegram como se não se alegrassem. Assim também os que usam das coisas deste mundo como se não usufruíssem dele, pois o mundo das aparências está a terminar. Eu quisera que estivésseis livres de preocupações. De facto, quem não tem esposa cuida das coisas do Senhor, do modo como o há-de servir e agradar-lhe (…). Portanto, aquele que desposa a sua noiva faz bem, mas o que não a desposa faz ainda melhor. A mulher permanece ligada ao marido enquanto viver. Se, porém, o marido vier a falecer, fica livre para se casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor. No entanto, segundo o meu pensamento, a viúva será mais feliz se permanecer como está. Julgo que também eu tenho o Espírito do Senhor” (1 Cor 7, 25-40).
Com esta linguagem misteriosa o Apóstolo quer dizer apenas os crentes devem fazer de Deus uma causa primeira, à frente de todas as outras, incluindo as coisas mais legítimas e boas. A Bíblia tem uma visão muito positiva do casamento e vê nele uma das principais mediações das bênçãos e dos dons de Deus. O livro dos Provérbios, pensando na exultação e no júbilo de Adão quando Deus lhe apresentou a Eva (Gn 2, 23) diz o seguinte: “Aquele que acha uma esposa, acha a felicidade e recebe um grande dom de Deus” (Pr 18, 22).
No Evangelho de São Mateus Jesus faz uma promessa fundamental para a Igreja e que se aplica exactamente com o mesmo valor ao matrimónio: “Digo-vos ainda: se dois de entre vós se unirem na terra, para pedir qualquer coisa, hão-de obtê-la de meu Pai que está no Céu. Na verdade, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estou no meio deles” (Mt 18, 19-20).
É aqui que podemos fundamentar a dinâmica sacramental do matrimónio, a qual tende a conduzir a família para se realizar como uma Igreja Doméstica! Embora tenha um carácter universal, o mandamento do amor, tal como aparece explicitado no evangelho de São João, aplica-se igualmente de modo particular à família e aos esposos de modo particular: “É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13).
A Carta aos Filipenses dá uma série de conselhos sobre as relações de amor e fraternidade a que poderíamos dar o nome de regra de oiro para a família e, de modo particular, para o casal: “Nada façais por ambição, exibicionismo ou vaidade. Pelo contrário, em atitude de serviço e humildade considerai os outros como superiores a vós próprios, não tendo em mira os próprios interesses, mas os interesses dos outros” (Flp 2, 3-4).
A Primeira Carta de São João faz uma análise muitíssimo profunda sobre o amor. O amor liberta e dá plena confiança. Não tem sentido haver amor profundo e existir qualquer forma de ansiedade ou temor: “No amor não há temos. Pelo contrário, o perfeito amor lança fora o temor. De facto, o amor pressupõe castigo. Por isso quem teme não vive o amor de modo perfeito (…). Se alguém disser: “eu amo a Deus”, mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso. Na verdade, o que não ama o seu irmão que vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Nós recebemos do Senhor este mandamento: quem ama a Deus, ame também o seu irmão” (1 Jo 4, 18-21).
Quantas histórias matrimoniais dolorosas e cheias de temor! A esposa e os filhos, ao ver o dia a aproximar-se do fim começam a ficar com o coração comprimido. Está quase a chegar a hora do marido e do pai chegar a casa! Quantos filhos machucados e cheios de angústia ao verem que os seus pais não se amam como se amam os pais dos seus amigos. Quantos soluços e desabafos deste tipo: mas porque razão não posso ter uma família feliz como têm as outras pessoas! Todos nós conhecemos histórias destas. Aqui, o amor não é perfeito, pois a calda que se vive não é a alegria e a serenidade, mas a ansiedade e a angústia.
Na Carta aos Gálatas, São Paulo enumera os frutos que o Espírito Santo produz no coração dos que se deixam conduzir por ele. Os frutos enumerados pelo Apóstolo formam uma excelente para a emergência do amor conjugal e para a felicidade da família. Não nos esqueçamos de permitir ao Espírito Santo transformar os nossos corações, a fim de brotarem em nós os frutos que são Paulo enumera: “Por seu lado, são estes os frutos do Espírito Santo: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, fidelidade, mansidão, auto-domínio. Contra estas coisas não há nenhuma lei” (Ga 5, 22-23).
O perdão, a amabilidade e uma linguagem correcta são a rocha firme sobre a qual deve edificar a o amor e a comunhão familiar. A este propósito, a Carta aos Efésios faz uma recomendação muito sugestiva: “Toda a espécie de azedume, agressividade, gritaria, bem como toda a maldade deve desaparecer de entre vós. Pelo contrário, procurai ser bondosos e compassivos, perdoando-vos mutuamente, como também Deus vos perdoou em Cristo” Ef 4, 31-32).
Se a família deve ser uma Igreja doméstica, então o que é dito no Novo Testamento sobre o amor e a comunhão na comunidade cristã aplica-se plenamente à comunidade familiar. A autoridade, na família, deve assentar sobre o fundamento sólido do serviço e não da imposição e muito menos de imposições arbitrárias e caprichosas.
Eis o que a este propósito diz o Evangelho de Marcos. A Fé confere-nos critérios diferentes dos critérios e do modo de ver do mundo. Eis a razão pela qual ser o primeiro e o maior à luz do Evangelho significa agir como o que serve e procura facilitar o crescimento e a realização dos outros: “Jesus chamou-os e disse-lhes: “Sabeis como os governantes das nações exercem a autoridade e como os grandes procuram exercer o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, ponha-se ao serviço e quem quiser ser o primeiro faça-se o servo. Também o filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos” (Mc 10, 43-45).
Face a um texto destes desaparece a questão de quem deve ser o primeiro nas relações do casal. Jesus possui a autoridade plena porque viveu a sua vida com um sentido total de serviço aos demais. Levou o amor até ao limite: dar a vida pelos outros.
Como sabemos, não há casais perfeitos, como não há famílias ideais. O matrimónio é um projecto de amor que se vai realizando de modo gradual e progressivo. O casal cristão, graças aos dados da revelação de Deus, dispõe de uma série de critérios que lhe possibilitam atingir uma novidade que é exclusiva do cristão: a vida teologal.
A vida teologal constitui a originalidade do cristão no mundo. Graças à vida teologal o cristão está capacitado para viver as diversas facetas da vida humana com horizontes absolutamente desconhecidos dos não cristãos. Entre as facetas fundamentais da vida humana está, naturalmente o casamento. Quanto mais o casal cristão vive o seu casamento em densidade teologal, mais está a viver a dinâmica sacramental do matrimónio.
São Paulo faz uma leitura teologal do amor que é, realmente, um tesouro de sabedoria. Como sabemos, a vida teologal é a sabedoria que vem do Evangelho mediante a acção do Espírito Santo no coração dos crentes. Esta sabedoria optimiza as relações interpessoais, de modo especial as atitudes de fé, esperança e amor. Optimizadas pela sabedoria teologal as atitudes de fé, esperança e amor, atingem a densidade teologal, isto é, adquirem o jeito do próprio Jesus Cristo.
Eis a leitura teologal que São Paulo faz do amor teologal, isto é, amor ao jeito de Cristo: “O amor é paciente e é prestável. Não é invejoso, nem arrogante ou orgulhoso. O amor nada faz de inconveniente, nem procura o seu próprio interesse. Não se irrita nem guarda ressentimento. O amor não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará” (1 Cor 13, 4-8).
Em Comunhão Convosco
Calmeiro Matias
Sem comentários:
Enviar um comentário