A Grandeza do Mistério de Cristo





a) O Mistério Humano e Divino de Cristo
1- O Filho Eterno de Deus
2- Jesus Como Homem Igual a Nós

b) Jesus Cristo e o Reino de Deus

c) Os Apóstolos e a Missão de Jesus

d) Jesus de Nazaré Como Pessoa Humana
1- Jesus Como Homem Perfeito
2- Encarnação e Dimensão Divina de Cristo

e) O Deus Misericordioso e a Morte de Jesus
1- Jesus e a Sua Morte
2- Morte de Jesus e Salvação
3- A Morte Violenta de Jesus Não Agradou a Deus
4- O Deus Misericordioso e a Morte de Jesus

f) Eis Como Cristo Venceu a Morte

g) Final da História e Libertação em Cristo
1- Final da História e Plenitude Humana
2- A Segunda Vinda de Cristo no Apocalipses



a) O Mistério Humano e Divino de Cristo

O evangelho de São João começa com a proclamação solene de Cristo como Filho eterno de Deus: “No princípio era o Verbo. O Verbo, no princípio, estava com Deus e era Deus” (Jo 1, 1-2). O evangelho São João não só pretende apresentar Jesus Cristo como Filho de Deus, mas igualmente descrever a dinâmica das relações entre Deus Pai e Deus Filho.

Uma das afirmações mais importantes desta sobre as relações e a união orgânica que existe entre o Pai e o Filho é a seguinte: “Eu e o Pai fazemos Um” (Jo 10, 30). Esta unidade do Pai e do Filho não significa fusão. Na verdade trata-se de duas pessoas distintas. A comunhão que existe entre elas não as anula ao ponto de se confundirem ou fundirem.

Trata-se de um reciprocidade amorosa, onde o Espírito Santo aparece como princípio animador de relações e vínculo de comunhão entre o Pai e o Filho: “Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome (pela minha missão), esse é que vos ensinará tudo e há-de recordar-vos tudo o que eu vos disse” (Jo 14, 26).

O modo de agir de Jesus está em perfeita conformidade com a vontade do Pai. Por isso olhar para Jesus é descobrir o rosto de Deus Pai: “Há tanto tempo que estou convosco e ainda não me conheces Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que ainda me dizes: “Mostra-nos o Pai?” (Jo 14, 9).

Há filhos humanos que, a nível genético, são quase uma cópia do pai ou da mãe. Cristo, como Filho de Deus, é uma réplica perfeita do Pai no que se refere a critérios para agir e ao jeito de amar a Humanidade. Eis a razão pela qual o Filho pode dizer com verdade: “Quem me vê, vê o Pai”.

Os evangelhos insistem em que Jesus realiza a sua missão em total sintonia com o Pai: “O Pai não julga ninguém, mas entregou ao Filho o poder de julgar, a fim de os homens honrarem o Filho como honram o Pai. Aquele que não honra o Filho também não honra o Pai, pois o Filho foi enviado pelo Pai” (5, 22- 23).

Depois da Encarnação, a fé no Filho é uma componente fundamental da fé no Pai: “Aquele que acredita em mim, não só acredita em mim, mas também naquele que me enviou” (Jo 12, 44). O Filho actua em perfeita sintonia com o Pai, pois o Pai entregou nas suas mãos a realização do seu plano de salvação: “O pai ama o filho e colocou todas as coisas nas suas mãos” (Jo 3, 35).

Por isso Jesus está sempre unido ao Pai: “E aquele que me enviou está comigo e em mim. Com efeito, o Pai não me deixou sozinho, pois eu faço constantemente as coisas que lhe agradam” (Jo 8, 29). Pelo mistério da Encarnação, os seres humanos ficaram membros da Família Divina: filhos em relação a Deus Pai e irmãos em relação adeus Filho.

O evangelho de São João diz que o Filho de Deus, ao tornar-se irmão dos homens, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1, 12-14). Jesus considera-se nosso irmão, pois nós e ele somos filhos do mesmo Pai: “Eu subo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20, 17). Deste modo, o Filho Unigénito de Deus, pelo mistério da Encarnação tornou-se o primogénito de muitos irmãos (Rm 8, 29).

O evangelho de São João, apesar de insistir constantemente que Jesus é Deus como o Pai, não ignora que ele é homem connosco. Os seres humanos são incorporados na Família de Deus, não como seres isolados, mas na medida em que formamos uma união orgânica com Cristo. Através do Espírito Santo participamos da dinâmica da salvação na medida em que estamos organicamente unidos a Jesus Cristo.

Esta união é semelhante à união que existe entre nós que somos os ramos da videira e Cristo que é a cepa da qual nos vem a seiva vivificante do Espírito Santo (Jo 15, 1-8). A Carta aos Romanos diz que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5).

O evangelho de São João começa por afirmar que Cristo é a Palavra, isto é, o grito criador (o faça-se) de Deus e a revelação de Deus para a Humanidade. Segundo a Bíblia, a Palavra de Deus é eficaz, pois realiza sempre o que significa. Por isso Jesus Cristo vem como o grito amoroso de Deus que nos dá a certeza de que somos membros da Família de Deus: “Todos os que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8, 14).

Este dom aconteceu pelo mistério da Encarnação (Jo 1,12-14), graças ao qual o divino se enxertou no humano, a fim de o humano ser organicamente incorporado na comunhão divina: “Nesse dia compreendereis que eu estou no Pai, vós em mim e eu em vós” (Jo 14, 20).

O evangelho de São João mantém um perfeito equilíbrio entre a afirmação de Cristo como filho eterno de Deus e a sua condição de homem em tudo igual a nós excepto no pecado: Como filho eterno de Deus, Cristo e o Pai fazem um (Jo 10, 30). Por isso, quem vê o seu modo de actuar está a ver o próprio jeito de ser do Pai (Jo 14, 9). Tomé, depois de ver o Senhor ressuscitado exclama: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20, 28).

Para significar a condição divina de Jesus, o evangelho de São João põe na boca de Jesus a mesma expressão que Deus usou no Monte Sinai, isto é, o “EU SOU”: “Agora digo-vos estas coisas antes que aconteçam, a fim de que, quando elas acontecerem, acrediteis que EU SOU” (Jo 13, 19). Mas o evangelho de São João reconhece igualmente que Jesus é um homem e por isso Jesus, pouco antes de partir para junto do Pai diz: “Eu vou para junto de meu Pai e vosso Pai, do meu Deus e vosso Deus” (Jo 20, 17). Devido à sua condição divina o Filho é igual ao Pai e faz um com ele (Jo 10, 30).

Mas se tivermos presente a sua condição de homem, o Pai é maior do que o Filho: “Ouvistes o que eu vos disse: “Eu vou mas voltarei para vós”. Se me tivésseis amor, devíeis alegrar-vos por eu ir para o Pai, pois o Pai é maior do que eu” (Jo 14, 28).

O evangelho de São João diz que os judeus, ao notarem que Jesus se fazia igual a Deus, começara a ficar furiosos contra Jesus e a elaborar planos para o matarem: “Devido ao facto de Jesus realizar estes prodígios em dia de sábado, os judeus começaram a perseguí-lo. Em resposta, Jesus disse aos judeus: “O meu Pai continua a realizar obras até agora, e eu também continuo!”

Perante estas afirmações cresceu mais nos judeus a vontade de o matarem, pois não só anulava o sábado, mas também chamava a Deus seu Pai, fazendo-se, deste modo, igual a Deus” (Jo 5, 16-18). A compreensão da divindade de Cristo não foi o ponto de partida da fé apostólica, mas sim o ponto de chegada.

Compreender o mistério de Jesus Cristo como Filho Eterno de Deus supõe um salto de qualidade a nível da fé. Este salto de qualidade implicava compreender de outro modo o próprio mistério de Deus, um mistério intocável para a fé judaica. Com efeito, reconhecer que Cristo é o Filho eterno de Deus implica afirmar que Deus não é apenas o Yahvé do Antigo testamento, mas uma comunidade familiar: “Não acreditais que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por minha própria iniciativa. O Pai que habita em mim é que faz as obras. Acreditai que eu estou no Pai e o Pai está em mim. Acreditai ao menos por causa das mesmas obras” (Jo 14, 10-11).

A fidelidade incondicional de Jesus é fonte de vida eterna para a Humanidade. Por isso ele procura fazer as coisas tal como o Pai lhe mandou: “Eu não falei por mim mesmo, mas o pai, que me enviou, é que me comunicou o que devo dizer. E eu sei que a missão que o Pai me entregou traz consigo a vida Eterna. Eis a razão pela qual eu digo exactamente o que o Pai me disse para dizer” (12, 49-50).

Como Filho eterno de Deus, Cristo é, tal como o Pai, a própria fonte da Vida: “Assim como o Pai tem vida em si mesmo, também o Filho tem a vida em si mesmo” (Jo 5, 26). Por isso Jesus aparece nos evangelhos a ressuscitar mortos, isto é, a manifestar-se como fonte de Vida Eterna: “Disse-lhe Jesus: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em mim, mesmo que tenho morrido viverá. Todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre” (Jo 11, 25-26).

Podemos dizer que em Cristo, Jesus de Nazaré e o Filho Eterno de Deus estão unidos, fazendo uma união orgânica e dinâmica. Por outras palavras, o Filho Eterno de Deus e o Filho de Maria fazem uma união orgânica, mas isto não quer dizer que em Cristo o humano e o divino sejam indistintos.

Não podemos esquecer que o Filho unigénito de Deus é eterno, enquanto Jesus, o Filho de Maria, nasceu como qualquer homem e faz parte da Humanidade. Isto quer dizer que o Filho Unigénito de Deus e o Filho de Maria, fazem uma união orgânica animada pelo Espírito Santo, mas não se fundem nem confundem. Pelo contrário, entre a grandeza divina e a grandeza humana, em Cristo, mantêm uma distância suficiente que permite ao homem ser plenamente homem sem interferências do Filho Eterno de Deus.

Do mesmo modo, o Filho Eterno de Deus mantém uma distância suficiente para manter a sua plena grandeza divina sem quaisquer bloqueios provenientes da humanidade de Jesus de Nazaré. Outro aspecto importante é centralidade da acção do Espírito Santo na dinâmica da Encarnação. Por vezes temos a tendência de ver a acção do Espírito Santo no mistério da Encarnação como uma substituição do pai humano de Jesus. O Espírito Santo é a ternura maternal de Deus. A sua acção no mistério da Encarnação não é substituir o pai humano de Jesus, mas optimizar o amor maternal de Maria. Graças à acção especial do Espírito Santo no coração de Maria, esta ficou capacitada para amar o seu filho com o próprio jeito de Deus.

2- Jesus Como Homem Igual a Nós

Jesus Cristo tomava Deus e o Homem muito a sério. Não era como os beatos, isto é, gente muito devota de Deus mas cujo coração está muito longe do amor aos irmãos. No tempo de Jesus, os beatos mais conhecidos eram os fariseus, os quais tinham os olhos tão fixos nas normas e leis religiosas que não conseguiam sentir os apelos do amor fraterno. Jesus Cristo não era um beato. Jamais separou a causa de Deus da causa do Homem. Denunciava com coragem tudo o que no seu meio machucava ou oprimia os homens. Jesus sabia muito bem que a única imagem que Deus fez de si foi o homem. É esta a imagem que é preciso venerar, pois é esta a maneira concreta de amar a Deus.

Quanto mais um cristão cresce na fé melhor conhece Deus e o seu plano sobre o Homem. Isto quer dizer que mais capacitado está para amar Deus e os irmãos. Se o Homem é a única imagem que Deus criou de si, então o amor aos irmãos é o único caminho seguro para chegarmos ao conhecimento de Deus. Eis o que a primeira carta de São João diz a este propósito: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chega a conhecer Deus, pois Deus é amor” (1 Jo 4, 7-8).

A tradição cristã sempre defendeu que Jesus é um homem em tudo igual a nós excepto no pecado. Graças ao mistério da Encarnação, o homem Jesus vivia uma condição totalmente original: A sua interioridade espiritual humana interagia de modo directo com a interioridade espiritual da segunda pessoa da Santíssima Trindade. Como vimos mais acima, o humano e o divino, em Cristo, formavam uma união orgânica e dinâmica animada pelo Espírito Santo. Além disso, nesta união humano-divina, o humano e o divino, em Cristo, não se fundem nem confundem. Como homem igual a nós, Jesus experimentou plenamente a nossa condição.

Na verdade, o divino, ao tocar o humano não o anula. Pelo contrário, optimiza-o, isto é, fá-lo ser mais plenamente humano. A Carta aos Hebreus diz que temos um excelente Sumo-sacerdote junto de Deus, pois é um homem que, tal como nós, experimentou plenamente a condição humana: “De facto, não temos um sacerdote que não possa compadecer-se de nós, pois ele foi provado e experimentado em tudo, excepto no pecado” (Heb 4, 15).

Talvez este pequeno texto poético nos ajude a compreender a verdadeira humanidade de Jesus: Nasceu na Palestina e a sua paixão era fazer a vontade de Deus. Amava a simplicidade das crianças e defendia corajosamente os que não eram capazes de se defender. Deixava mais felizes as pessoas que tinham a sorte de o encontrar. Como não tinha pretensões a ser rico ou poderoso, partilhava com os outros a sua vida e os bens. Amava a todos, mas preferia acompanhar com os mais pobres. Nunca foi cobarde, pois estava cheio da força do Espírito Santo.

Eis a razão pela qual Deus lhe confiou a missão de inaugurar a dinâmica do baptismo no Espírito. Foi com este poder que ele deu início à Nova Humanidade reconciliada com Deus (2 Cor 5, 17-19). Por estar habitado pela plenitude do Espírito Santo concedeu deu-nos a possibilidade de renovarmos o nosso coração, fazendo-nos passar do egoísmo para o amor fraterno. Deu-se totalmente, razão pela qual a sua vida já não era apenas sua. Na verdade, Deus confiou-lhe uma missão em favor de toda a Humanidade. Como era generoso, levou o amor até à sua densidade máxima: dar ávida por aqueles a quem se ama (Jo 15, 12-13). Era puro de coração, isto é, transparente. Por outras palavras, Jesus não tinha rugas e distorções e por isso nunca nadou em águas turvas.

Como se deu inteiramente, agora a sua vida é também de todos nós! Tornou-se a cepa da videira cujos ramos somos nós. A seiva que vem da cepa para os ramos é o Espírito Santo, essa Água viva que ele nos dá (Jo 7, 37-39). Os que o mataram destruíram a sua tenda, pensando acabar com esta força restauradora do Homem Novo. Mas Deus restaurou a sua vida, fazendo dele o alicerce de uma Nova Humanidade. Partilhou tudo: Os bens, a vida, a Palavra de Deus e o Espírito Santo que é o Sangue da Nova e Eterna Aliança. O seu nome era Jesus de Nazaré. Graças à sua fidelidade, conseguiu fazer dos homens membros da Família de Deus. Eis a razão pela qual, ao longo dos séculos, não desapareceram as vozes que o amam e aclamam com o coração agradecido. A maneira como conseguiu realizar-se plenamente como homem é a prova de que Deus, ao tocar o Homem, não o anula. Pelo contrário, a presença do Espírito Santo no coração do homem optimizam a sua condição humana.


b) Jesus Cristo e o Reino de Deus


Jesus inicia a sua pregação anunciando a proximidade do Reino de Deus e convidando as pessoas a converterem-se: “Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia e proclamava o Evangelho de Deus, dizendo: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 14-15). O Reino é um mistério, isto é, um projecto de Deus que os homens desconhecem. Este mistério só pode ser conhecido daqueles a quem Jesus o revela: “A vós é dado conhecer o mistério do Reino de Deus, mas aos de fora tudo lhes é proposto em parábolas” (Mc 4, 11).

A carta aos Efésios fala do mistério do Reino, dizendo que o Espírito Santo o revelou aos escolhidos para a missão de anunciarem o plano de Deus em favor dos homens: “Deus manifestou-nos o mistério da sua vontade e o plano generoso que tinha estabelecido para conduzir os tempos à sua plenitude: Submeter tudo a Cristo, reunindo nele o que há no Céu e na Terra” (Ef 1, 10).

Depois, São Paulo acrescenta: “Por revelação me foi dado a conhecer o mistério, tal como antes vo-lo descrevi resumidamente. Lendo-me podeis fazer uma ideia da compreensão que tenho do mistério de Cristo, o qual não foi dado a conhecer aos filhos dos homens nas gerações passadas, como agora foi revelado aos seus santos Apóstolos e Profetas no Espírito Santo. Segundo este mistério, os gentios são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo e participantes da mesma promessa em Cristo Jesus, através do Evangelho” (Ef 3, 3-6).

O Reino está em gestação na história, mas a sua plenitude transcende a história. No Pai-Nosso, Jesus ensina os discípulos a pedirem ao Pai a vinda do Reino (Mt 6, 10; Lc 11, 2). Além disso manda os discípulos a anunciar o Reino de Deus (Lc 9, 2). Os que forem perseguidos por causa da justiça e da sua fidelidade ao Evangelho, devem considerar-se felizes, pois deles é o Reino de Deus (Mt 5, 10).

Procurar o Reino de Deus é buscar o fundamental: “Procurai o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6, 33). Procurar a justiça é procurar a vontade de Deus. O Reino de Deus identifica-se com a plenitude do amor. Na verdade, Deus é amor infinitamente poderoso. Opor-se ao amor é opor-se a Deus: “Quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele, pois Deus é amor” (1 Jo 4, 16).

Os milagres de Jesus eram sinais do Reino a emergir no meio dos homens pela acção do Espírito Santo. Segundo os antigos profetas este era o sinal claro da acção libertadora do Messias e da chegada do Reino de Deus. Foi esta a interpretação que Jesus fez da sua acção libertadora em favor das pessoas: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demónios, então o Reino de Deus já chegou a vós” (Mt 12, 28; Lc 12, 31). O Reino de Deus passa-se ao nível de uma vida nova. Por isso é preciso nascer de novo para entrar no Reino: “Quem não nasce do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que nasce da carne é carne, o que nasce do Espírito é Espírito” (Jo 3, 5-6).

O Reino de Deus implica decisão e fidelidade à vontade de Deus, a qual coincide rigorosamente com o que é melhor para nós: “Quem lança mão do arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus” (Lc 9, 62). E ainda: “Se a vossa justiça (fidelidade a Deus) não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5, 20). Depois da sua conversão, São Paulo gastou o resto da sua vida a anunciar o Reino de Deus (Act 28, 31). O Reino de Deus é de grandeza humano-divina, pois assenta na comunhão Universal da Humanidade com a Divindade.

O Reino de Deus é a cúpula do plano salvador de Deus para a Humanidade. Em Cristo acontece o enxerto do divino no humano, a fim de a Humanidade ser divinizada. A união da Humanidade com a Divindade é de tipo orgânico, isto é, acontece como interacção directa, vivificada e dinamizada pelo Espírito Santo, amor maternal divino. Jesus é plenamente homem em união orgânica com a Humanidade. Do mesmo modo, a Segunda pessoa da Santíssima Trindade é plenamente Deus com o Pai e o Espírito Santo. Como imagem diríamos que o ramo de limoeiro, enxertado na laranjeira, continua a dar limões e não laranjas. Na dinâmica da Encarnação nem a divindade é mutilada nem a Humanidade é anulada. A seiva que alimenta esta união orgânica é o Espírito Santo, o amor de Deus derramado nos nossos corações, como diz São Paulo (Rm 5, 5).

Por ser o ponto de encontro e interacção do humano com o divino, Jesus Cristo é o Rei no Reino de Deus. É dele que emerge e se difunde a dinâmica pascal do Espírito Santo que faz de nós membros da Família Divina (Rm 8, 14-16). Podemos dizer que o Reino de Deus é o encontro definitivo e indestrutível do Homem com Deus. Está em génese na história e culmina na divinização do humano, isto é, na assunção e incorporação do Homem na comunhão com Deus. Com efeito, o Reino de Deus constitui o horizonte máximo da Esperança Cristã.

A Igreja não se confunde com o Reino de Deus. Mas a Igreja é sacramento, isto é, corporização e explicitação Reino de Deus. Como sacramento do Reino, a Igreja é uma mediação privilegiada para o Espírito Santo realizar a génese histórica do Reino. Como realidade de grandeza humano-divina, o Reino é a Vida Eterna a emergir no tempo. A Carta aos Efésios sublinha este papel fundamental da Igreja dizendo: “A mim, o menor de todos os santos, foi-me dada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo. Fui incumbido de iluminar os homens sobre a realização do mistério escondido desde todos os séculos em Deus, o Criador de todas as coisas. E deste modo é dada a conhecer a multiforme sabedoria de Deus, de acordo com o desígnio eterno que ele planeou em Cristo Jesus nosso Senhor” (Ef 3, 8-11).

Por ser sacramento, a missão da Igreja é para a história. No Reino de Deus já não há sacramentos, mas sim a realidade que estes explicitam na história. O Reino de Deus, na sua plenitude, coincide com a humanidade divinizada em Cristo. Candidatos ao Reino de Deus são todas as pessoas que tenham um coração capaz de comungar. Foi isto que Jesus disse aos especialistas de Deus do seu tempo como diz o evangelho de São Mateus: “Jesus disse-lhes aos sacerdotes e anciãos: “Em verdade vos digo: os cobradores de impostos e as prostitutas vão preceder-vos no Reino de Deus. João Baptista veio até vós, ensinando-vos o caminho da justiça e não acreditastes nele. Mas os cobradores de impostos e as prostitutas deram-lhe crédito” (Mt 21, 31-32). O Reino de Deus, portanto, é a comunhão Universal das pessoas humanas com as três pessoas divinas, vivendo em dinâmica de relações familiares.


c) Os Apóstolos e a Missão de Jesus

O mistério de Jesus Cristo só pouco a pouco foi sendo entendido pelos seus discípulos do Senhor. Na verdade, os Apóstolos não começaram logo por entender Jesus como o Filho eterno do Pai, isto é, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Pelo contrário, eles começaram por ver Jesus como um homem amado por Deus e ungido com o poder do Espírito Santo. Foi este poder messiânico que capacitou Jesus para fazer milagres e libertar as pessoas das forças do mal: “Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do baptismo que João pregou: Como Deus ungiu com o espírito Santo e com o poder a Jesus de Nazaré, o qual andou de lugar em lugar fazendo o bem. Curava todos os que eram oprimidos pelo maligno, porque Deus estava com ele” (Act 10, 37-38).

São Paulo reconhece em Jesus Cristo um homem consagrado por Deus, a fim de realizar a sua missão messiânica: “Filho de David segundo a carne, ele foi constituído filho de Deus pelo Espírito de santificação mediante a sua ressurreição de entre os mortos” (Rm 1, 3-5). Os que se opõem a Jesus, diz São Paulo, são pessoas cujas mentes foram obscurecidas pelas forças do mal, as quais impedem as pessoas de ver a verdade de Cristo: “Se o Evangelho que pregamos continua velado, está velado para os que se perdem, isto é, os incrédulos cuja inteligência o deus deste mundo cegou, a fim de não verem brilhar a luz do Evangelho e a glória de Cristo que é a imagem perfeita de Deus” (2 Cor 4, 3-4).

O Livro do Apocalipse diz que Jesus ressuscitado é o descendente de David, o Leão da tribo de Judá, o medianeiro universal da salvação: “Então, um dos anciãos disse-me: “Não chores!” Repara: o Leão da tribo de Judá que é a raiz de David, triunfou. Ele está apto para abrir o livro e os seus sete selos” (Apc 5, 5). Para São Paulo, Jesus é o Messias que ocupa um lugar central no projecto criador de Deus. Adão, criado à imagem de Deus, foi infiel. Mas Deus enviou Jesus Cristo como o Novo Adão. Deus Pai confiou-lhe a missão de restaurar a Humanidade distorcida pelo pecado do primeiro do antigo Adão (Rm 5, 17-18).

Em Jesus Cristo, diz a Carta aos Colossenses, reside toda a plenitude, pois foi esta a vontade de Deus” (Col 1, 19). Jesus realizou a sua missão em fidelidade total à vontade de Deus Pai. O Novo Adão está em plena conformidade com o projecto Deus. Eis a razão pela qual ele é a imagem fiel de Deus: “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criatura. Foi nele que todas as coisas foram criadas, tanto as do Céu como as da Terra (…). Aprouve a Deus fazer habitar nele toda a plenitude e reconciliar nele e por ele todas as coisas” (Col 1, 15-20).

Graças à sua fidelidade incondicional, Jesus torna-se não só a imagem perfeita de Deus como também a garantia da salvação universal: “O Filho é o esplendor da glória do Pai e a imagem fiel da sua essência. Sustenta todas as coisas com a sua Palavra poderosa. Depois de ter realizado a purificação do pecado sentou-se à direita da Majestade nas alturas. Ele está tanto mais acima dos anjos quanto mais sublime que o deles é o nome (a missão) que recebeu como herança” (Heb 1, 3-4).

Jesus Cristo foi um homem plenamente fiel à vontade do Pai que o consagrou e enviou como Salvador da Humanidade. Além disso, ensina os homens a fazerem a vontade de Deus, pois este é o único caminho para o ser humano atingir a sua plena realização e felicidade. Segundo São Mateus e São Lucas, Jesus ensinou os discípulos a orar, dizendo: “Que o teu reino venha. Seja feita a tua vontade, assim na Terra como no Céu” (Mt 6, 10).

E ainda: “Nem todo aquele que me diz: “Senhor, Senhor” entrará no reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus” (Mt 7, 21). De tal modo Jesus se identifica com a vontade de Deus que faz depender deste facto a edificação da Família Divina: “Na verdade, todo aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos Céus é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3, 35; Mt 12, 50).

A vontade de Deus, diz a Primeira Carta a Timóteo, é que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade. O portador da salvação é o único medianeiro entre Deus e o Homem, isto é, Jesus Cristo Homem (1 Tm 2, 4-5). Jesus Nazaré orava, dirigindo-se a Deus como um homem, consciente da sua fragilidade. A diferença estava que Jesus se dirigia a Deus Pai falando com ele como um Filho fala com seu Pai. Este modo de proceder era absolutamente original. Nenhum judeu se atrevia a falar com Deus deste modo. Com efeito, Jesus de Nazaré era um homem em tudo igual a nós, excepto no pecado.

Nasceu como uma criança humana do sexo masculino. Tinha necessidade de alimento, de água, de calor, de ternura e, como as demais crianças, precisava que o alimentassem, a fim de poder sobreviver. Sentia-se cansado como os demais. Dormia e chorava como os outros meninos. Foi tentado como qualquer outro ser humano, pois, como homem, era frágil e tinha a possibilidade de falhar. A grande diferença entre Jesus e nós radica no facto de ele, no seu interior, ter a possibilidade de estabelecer permanentemente uma interacção directa com o Filho Eterno de Deus e por este com Deus Pai.

Isto fazia que Jesus tivesse um acesso permanente à plenitude do Espírito, pois o Espírito Santo era o princípio animador da interacção do humano com o divino em Cristo. Eis o que diz o evangelho de São João: “Aquele que vem do Alto está cima de todas as coisas. Quem é da terra à terra pertence e fala das coisas da terra. O que vem do Céu está acima de tudo e dá testemunho daquilo que viu e ouviu, mas ninguém aceita o seu testemunho (…) Aquele que Deus enviou transmite as palavras de Deus, pois Deus não lhe deu o Espírito por medida” (Jo 3, 31-34).

Em Jesus habitava a plenitude do Espírito Santo, a qual se manifestava nos inúmeros sinais e prodígios operados por Jesus. Era também esta presença do Espírito Santo em plenitude que fazia de Jesus um homem sem pecado, pois capacitava-o para uma fidelidade incondicional em relação à vontade de Deus. Por outras palavras, a impecabilidade de Jesus não se deve ao facto de Jesus ser um homem diferente dos outros, mas porque habitava nele a plenitude do Espírito Santo que o capacitava para viver de modo incondicionalmente fiel em relação à vontade de Deus.

Eis a razão pelo pela qual Jesus foi o único medianeiro de salvação para todos os homens, como diz São Paulo: “Pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo homem” (1 Tm 2, 5). Por isso Jesus, no evangelho de São João diz o seguinte: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir ao Pai senão por mim” (Jo 14, 6).

Isto quer dizer, portanto, que todos os homens que se salvam, salvam-se em Cristo. Mas isto não significa de modo algum que apenas os cristãos se salvam. O Novo Adão foi o medianeiro da reconciliação da Humanidade com Deus, como diz São Paulo: “Se alguém está em Cristo é uma Nova Criação. Passou o que era velho. E isto vem de Deus que reconciliou consigo a Humanidade em Cristo, não levando mais em consideração os pecados dos homens” (2 Cor 5, 17- 19).

Os não crentes aceitam Cristo como salvador sempre que fazem do amor a questão primeira da sua vida. Na verdade, o amor é o único mandamento de Jesus: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis como eu vos amei. Os seres humanos conhecerão que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 34-35).


d) Jesus de Nazaré Como Pessoa Humana

1- Jesus Como Homem Perfeito

Em Jesus Cristo realizam-se de modo pleno e perfeito a natureza divina e a natureza humana. Como sabemos, a natureza divina concretiza-se em pessoas e a natureza humana também. É neste facto que assenta a possibilidade da Encarnação. Seria uma distorção do mistério de Cristo pensar que a Encarnação significa que a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o Filho eterno de Deus, se tornou uma realidade de grandeza biológica.

Se assim fosse, o Filho de Deus podia encarnar em qualquer animal. Neste caso, mais que de encarnação, deveríamos falar de possessão. Não devemos pensar que o Verbo de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, se meteu dentro do homem Jesus, substituindo neste homem em tudo igual a nós a sua dignidade pessoal. Se assim fosse, teríamos de dizer que Deus, ao unir-se organicamente ao Homem, o mutila no essencial do seu ser, isto é, na sua dignidade pessoal.

A verdade é precisamente o contrário: a divindade, ao unir-se à Humanidade, optimiza-a em todos os seus aspectos. Na comunhão orgânica a pessoa nunca é anulada, mas optimizada. O marido, ao formar uma comunhão amorosa com a esposa, não a anula, mas optimiza-a. Se Jesus de Nazaré não fosse pessoa humana não era um homem perfeito. Com efeito, não existe homem perfeito que não seja uma pessoa humana. Impedir um ser humano de se realizar como pessoa humana é a pior mutilação que se pode fazer a esse ser. Na verdade isso significaria impedir esse ser de se humanizar.

A pessoa humana, ao ser assumida e incorporada de modo orgânico na comunhão da Santíssima Trindade, não é anulada na sua condição de pessoa humana. São Paulo, para falar da nossa união a Cristo diz que formamos um só corpo com ele (1 Cor 10, 17; 27). Além disso, insiste que esta união se deve ao facto possuirmos o mesmo e único Espírito Santo (1 Cor 12, 13).

Mas nada disto significa que perdemos a nossa identidade pessoal e espiritual humana. É nesta perspectiva que devemos entender a união humano-divina que faz do Filho Eterno de Deus e do homem Jesus, o Filho de Maria, um e o mesmo Cristo. Se o Filho Eterno de Deus se tivesse introduzido no interior do homem Jesus de Nazaré, substituindo a sua pessoa humana, mais que de incarnação teríamos de falar de possessão.

Na verdade, nos chamados casos de possessão, a pessoa é anulada e substituída pela personalidade do ente que se meteu no seu íntimo. A encarnação não pode acontecer num animal precisamente pelo facto de os animais não serem pessoas e, portanto, não existir proporcionalidade para acontecer uma comunhão orgânica e dinâmica. Não podemos esquecer-nos de que o divino nunca anula nem substitui o humano.

O mistério da Encarnação é em tudo semelhante ao mistério da Trindade. Como sabemos, Deus é um, não por constituir uma unicidade pessoal, mas uma comunhão orgânica do Pai com o Filho no Espírito Santo. No entanto, no evangelho de São João Jesus diz que ele e o Pai fazem um (Jo 10, 30). Trata-se de uma unidade orgânica, interactiva e criadora, animada pelo Espírito Santo que é a ternura maternal de Deus que anima a dinâmica relacional amorosa do Pai com o Filho. Apesar de fazerem um no Espírito Santo, o Pai e o Filho são duas pessoas.

È deste jeito a unidade humano-divina de Cristo: A união e interacção directa entre a interioridade pessoal divina da Segunda pessoa da Santíssima Trindade e a interioridade pessoal humana de Jesus de Nazaré é animada pelo Espírito Santo. A antiguidade cristã recusava-se a chamar Jesus de pessoa humana, pois este termo estava ligado ao mundo do teatro.

Com efeito, O termo “persona”, no mundo greco-romano, não tinha o mesmo significado que tem para nós. O termo pessoa, para nós, significa um ser com uma identidade espiritual livre, consciente, responsável. Além disso, a pessoa é um ser único, original, irrepetível e capaz de comunhão amorosa.

No mundo greco-romano, pelo contrário, o termo “Persona” significava a máscara usada pelos actores de teatro. A máscara, portanto, não era mais que uma aparência. Jesus não era uma pessoa (máscara humana), mas sim um homem perfeito, em tudo igual a nós excepto no pecado (Heb 4, 15). Neste contexto cultural, se Jesus fosse uma pessoa (máscara) não tinha identidade própria. No teatro, a máscara era uma aparência para indicar uma outra realidade.

Foi esta a razão pela qual a antiguidade cristã rejeitou, e com toda a razão, o termo (pessoa humana) para dizer a realidade humana de Jesus. Mas temos de acrescentar que a antiguidade, por esta mesma razão, rejeitava o termo para designar a realidade humana de cada ser humano. Aplicar este termo a Jesus ou aos demais seres humanos significaria dizer que Jesus, tal como nós, não éramos seres com uma identidade própria.

Jesus Cristo não é uma aparência de homem manipulada pelo Filho eterno de Deus. Logo nos primeiros anos do cristianismo, o gnosticismo foi condenado precisamente por dizer que Jesus era apenas uma aparência de homem. Esta foi a razão pela qual a tradição preferiu o termo duas naturezas em vês de duas pessoas para dizer a realidade humano-divina de Cristo.

Hoje nós sabemos que tanto a natureza humana como a divina ou se concretizam em pessoas ou não são realizações perfeitas de natureza. Na verdade, a natureza humana, tal como a divina, não são realidades abstractas. Pelo contrário, emergem no concreto de pessoas. A Divindade é uma emergência permanente de três pessoas de perfeição infinita em total convergência de comunhão amorosa. Por seu lado, a natureza humana é princípio de acção e estruturação em cada uma das pessoas nas quais se concretiza.

A natureza humana só se realiza de modo perfeito na medida em que se concretiza em comunhão de pessoas. O mesmo acontece com a natureza divina. Por outras palavras, a natureza humana não encontra a sua plenitude na pessoa isolada, mas na pessoa em comunhão. Isto mesmo acontece com a natureza divina. Eis a razão pela qual a divindade é uma, pois é uma comunhão de três pessoas.

Os dogmas que os diversos concílios foram definindo sobre Cristo defendem precisamente o que acabei de afirmar: Jesus tem uma alma humana. Tem uma vontade humana. Tem consciência e liberdade humana. Seria razão para nos perguntarmos: o que é que lhe faltava para ser uma pessoa humana?

Como já vimos acima, a Encarnação era possível, precisamente pelo facto de facto de Jesus ser uma pessoa humana. Com efeito, a Encarnação não significa possessão, mas interacção e comunhão humano-divina mediante a acção do Espírito Santo. A interacção directa da pessoa divina do Logos e a pessoa humana de Jesus de Nazaré, é dinamizada pela presença constante do Espírito Santo. Assim também, a pessoa do Pai e a pessoa do Filho, estão organicamente unidas e dinamizadas pelo Espírito Santo, fazendo um só e o mesmo Deus.

Do mesmo modo, diz o evangelho de São João, nós fazemos um com Cristo e, através dele, uma comunhão orgânica e dinâmica com a Santíssima Trindade (Jo 17, 21-23). Na verdade, pela Encarnação a Divindade enxertou-se na Humanidade, a fim desta ser organicamente assumida e incorporada em Deus. A união humano-divina que resulta da Encarnação, diz o evangelho de São João, é semelhante à união que existe entre os ramos e a cepa da videira (Jo 15, 1-8).

No seio da Santíssima Trindade, Cristo é o Filho Unigénito gerado desde toda a eternidade (Jo 1, 1-3). Pelo mistério da Encarnação tornou-se o primogénito de muitos irmãos, como diz São Paulo (Rm 8, 29). Segundo a genealogia do evangelho de São Lucas, Adão é Filho de Deus por estar organicamente unido a Cristo. Para dizer que Jesus é o portador das bênçãos prometidas a Abraão, Mateus começa a sua genealogia em Abraão e terminando com Jesus. São Lucas, pelo contrário, começa a genealogia em Jesus e termina em Adão, ao qual chama filho de Deus (Lc 3, 38). Com este modo de proceder, São Lucas quer dizer que Adão é filho de Deus por estar organicamente unido a Cristo.

Além de Filho de Deus gerado desde toda a eternidade, Cristo é também o filho de David segundo a carne, diz São Paulo. Por outras palavras, Jesus é plenamente homem com uma genealogia concreta. Foi este homem, continua Paulo, que pela sua ressurreição se tornou o Filho de Deus em todo o seu poder de rei salvador (Rm 1, 3-5). Por ser do lado da Divindade ele é o alfa, o princípio criador do universo. Como Homem ele é o Ómega, ou seja, a plenitude e a cúpula da Criação. Ele é a Cabeça da Nova Humanidade assumida e divinizada na comunhão da Santíssima Trindade (Apc 1, 17; 2, 8; 22, 13). Jesus Cristo, diz o evangelho de São João, é a ressurreição e a vida.


2- Encarnação e Dimensão divina de Jesus

“E se virdes o filho do Homem subir para onde estava antes?” (Jo 6, 62). Com o título Filho do Homem, o evangelho de São João projecta no mistério de Cristo uma profundidade inultrapassável, pois o Filho do Homem é o Filho de Deus preexistente. No evangelho de São João, o Filho do Homem é o Filho Eterno de Deus encarnado: “O Verbo era Luz verdadeira que, ao vir ao mundo, ilumina todos os homens. Ele estava no mundo e o mundo veio à existência por ele. Mas o mundo não o reconheceu. Veio ao que era seu e os seus não o receberam. Mas aos que o receberam, a todos os que nele crêem deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram dos laços do sangue, nem do impulso da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus. E o Verbo encarnou e habitou no meio de nós. Nós contemplámos a sua glória, glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de Graça e da Verdade” (Jo 1, 9-14).

Em Cristo, portanto, concretiza-se o mistério da união orgânica do Humano com o Divino. Jesus é plenamente homem e faz parte da Humanidade. Por outro lado, o Filho de Deus é plenamente divino e faz parte da Divindade. Por isso é preexistente e eterno. Não podemos mutilar a humanidade de Jesus para afirmar a divindade. O Humano, em Cristo, é completo e perfeito. Na linguagem tradicional dizia-se que tem corpo, alma e vontade humana. Não é necessário sacrificar a pessoalidade humana de Jesus Cristo para defender a sua unidade humano-divina. Esta unidade acontece no Espírito Santo. Do mesmo modo, não é preciso sacrificar a pessoalidade divina do Pai ou do Filho para afirmarmos a unidade dos dois, os quais formam um só Deus com o Espírito Santo.

Deus é apenas um, apesar das pessoas do Pai e do Filho serem distintas, inconfundíveis e formarem uma unidade orgânica no Espírito Santo. Assim também acontece com a pessoa humana de Jesus e a divina do Logos. Trata-se de uma unidade orgânica, isto é, relacional e interactiva cujo ponto de encontro é a pessoa do Espírito Santo, princípio animador de relações. No caso de Deus, essa unidade orgânica é só divina. No caso de Cristo é humano-divina. A grandeza divina de Cristo é constituída pela pessoa divina do Logos. Do mesmo modo, a sua grandeza humana é constituída pela pessoa de Jesus de Nazaré. Jesus Cristo não é uma pessoa divina encerrada dentro da casca de um homem.

A teologia tradicional, sempre afirmou a unidade divina, apesar de nunca a ter reduzido a uma unicidade pessoal. Com Cristo, em virtude da ambiguidade do termo “Persona” a tradição acabou por reduzir a realidade humana e divina de Cristo a uma questão de unicidade pessoal. No caso das três Pessoas da Santíssima Trindade, a tradição aceitou o termo “persona”, pois com este termo queria acentuar a diferença de identidades e missões das pessoas divinas. Em Cristo, pelo contrário, a identidade e a missão messiânica era apenas uma.

O conceito actual de pessoa já não é obstáculo para entendermos a unidade humano-divina de Cristo. Falar da unidade humano-divina em termos de unicidade pessoal é mutilar a humanidade de Jesus de Nazaré, pois ser homem perfeito significa ser pessoa humana. Alguns teólogos apresentaram a Encarnação como a vinda do Logos para o seio de Maria, a fim de aí, formar um corpo humano para si. Vista deste modo, a humanidade de Jesus ficaria totalmente substituída pelo Logos. Neste caso não teríamos um Cristo com uma natureza humana perfeita, mas uma marioneta humana a ser manipulada pelo Logos. A tradição da Fé salvou a autonomia da humanidade de Jesus com o dogma da vontade humana. Ou defendemos a integridade e autonomia da humanidade de Cristo ou teremos uma visão deformada do projecto criador e salvador de Deus.


e) O Deus Misericordioso e a Morte de Jesus

1- Jesus e a sua morte

Os discípulos de Jesus viveram o acontecimento da morte do seu Mestre como um fracasso e uma não aprovação por parte de Deus. Eles esperavam que Jesus fosse o Messias, isto é, o filho de David que iria subir ao trono muito em breve. Dois deles até fizeram tentativas no sentido de garantirem os primeiros lugares na corte messiânica. Os outros dez, ao perceberem-se das tentativas de Tiago e João, ficam furiosos, pois também eles esperavam obter esse privilégio (Mc 10, 35-45).

Mas, Jesus morreu sem subir ao trono. Isto para os discípulos era a prova de que Deus não apoiou as suas pretensões messiânicas. Na verdade, já tinha havido outras tentativas messiânicas frustradas, as quais não era um acontecimento novo. Com efeito, já umas décadas antes tinham aparecido dois pseudo messias que reuniram à sua volta muitos seguidores. Os dói foram mortos e nada mudou (Act 5, 36-37).

Jesus teve consciência de que havia planos para o matar. Mas nunca interpretou esta morte como uma exigência de Deus Pai. Pelo contrário, via nessa atitude um crime perpetrado pelos sacerdotes, doutores da Lei, fariseus e os chefes do povo. O contexto de despedida que dominou a Última Ceia revela que Jesus tinha consciência de que a sua missão histórica estava a chegar ao fim (1 Cor 11, 23-25).

Mas os relatos revelam que Jesus não via a sua morte como um fracasso. Pelo contrário, os evangelhos dizem que Jesus estava seguro de que, após a sua morte, Deus ia restaurar e glorificar a sua vida. Na Última Ceia ele faz alusão ao vinho do banquete no Reino de Deus (Lc 22, 14-18).

Mas os discípulos, na verdade, não entendiam o alcance desta linguagem de Jesus. Face à resistência dos Apóstolos, Jesus reage com dureza, chegando a chamar Satanás a Pedro (Mt 16, 22-23). Mas a experiência pascal veio alterar tudo isto. A fragilidade e cobardia dos Apóstolos foi bem evidente na noite da quinta-feira Santa. Fugiram todos, afirmando não conhecer Jesus.

Mas eis que dois dias depois, isto é, no domingo de Páscoa, vêm para as praças públicas a gritar que Jesus é o Messias e mostrando-se dispostos a dar a vida por esta afirmação. Esta transformação tão radical só podia resultar de uma destas duas coisas: ou enlouqueceram ou aconteceu um milagre que os transformou radicalmente. Loucos não estavam, pois, apesar de serem quase analfabetos, argumentavam com as Escrituras, ao ponto de confundirem os doutores da Lei e os sacerdotes.

Esta mudança radical dos Apóstolos é a melhor confirmação histórica da ressurreição de Jesus. Antes da Páscoa, diz o evangelho de São Mateus, os discípulos entendiam as coisas segundo os critérios da carne e do sangue (Mt 16,23). Após a Páscoa, diz o evangelho de João, o Espírito Santo vai conduzi-los para a verdade total (Jo 16, 13).

Podemos dizer que após a Páscoa, a compreensão dos discípulos sobre a missão de Jesus, começa a coincidir progressivamente com a compreensão que Jesus tinha antes da Páscoa. Esta comparação é um excelente ponto de referência para entendermos até onde terá chegado a consciência do Jesus histórico sobre a sua missão messiânica.


2- Morte de Jesus e Salvação

A morte de Jesus, no Evangelho de João é o momento da sua glorificação (Jo 7, 34; 8, 21-22; 14, 2-4). É uma condição essencial para que aconteça o grande dom do Espírito Santo (Jo 16, 7-8; cf. 7, 37-39). Mas isto não quer dizer que Jesus tivesse de morrer daquela maneira. Desde o começo da Humanidade que o Espírito Santo actuava na história humana. Em primeiro lugar actua realizando a intervenção especial de Deus na criação do Homem. Mais tarde, no povo Bíblico, actua como presença revelacional.

Com o acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, o Espírito Santo realiza a salvação da Humanidade. Por outras palavras, com a morte e ressurreição de Jesus a Humanidade é incorporada na Família Divina ficando divinizada. Após a morte e a ressurreição de Jesus a Humanidade entra na plenitude dos tempos, isto é, na fase dos acabamentos ou da sua divinização.

Para actuar de modo intrínseco no interior do Homem, o Espírito Santo tinha de interagir connosco em grandeza de onda humana. Isto aconteceu devido ao facto de Jesus ser um homem em tudo igual a nós excepto no pecado. Este mistério da divinização do Homem aconteceu no momento em que Jesus, pelo acontecimento da morte, se libertou das coordenadas limitativas do seu ser exterior, cujas coordenadas são biológicas, rácicas, linguísticas, culturais e espacio-temporais.

É este o sentido da afirmação do Credo, segundo a qual Jesus, ao morrer, desceu à mansão dos mortos. Por outras palavras, foi nesse momento que Jesus, homem como nós, entrou nas coordenadas da comunhão Universal, divinizando a Humanidade. Como vemos, a morte de Jesus era condição essencial para acontecer a salvação da Humanidade.

Mas não devemos concluir daqui que a morte cruel de Jesus foi uma exigência de Deus Pai. Desde os primórdios da revelação que Deus se manifestou contra os sacrifícios humanos, rejeitando o sacrifício de Isaac. Segundo este relato, foi a fidelidade de Abraão que agradou a Deus e não o sacrifício de seu filho (cf. Gn 22, 1-19).

Do mesmo modo, podemos dizer que a fidelidade incondicional de Jesus Cristo à missão que Deus lhe confiara é a fonte da nossa redenção. São Paulo diz que Jesus é o Novo Adão que nos reconduziu a Deus (Rm 5, 17-19). Podemos dizer que o que foi a fidelidade incondicional de Jesus à missão que Deus lhe confiou o que realmente, agradou a Deus e não a morte bárbara que a que foi sujeito.


3-A Morte Violenta de Jesus Não Agradou a Deus


A morte de Jesus, portanto, não foi um sacrifício expiatório exigido por Deus Pai ao seu Filho. Na verdade, nem os pais humanos, apesar de serem pecadores e limitados, fariam uma coisa destas aos seus filhos. Logo nos começos da história bíblica, Deus disse de modo muito claro que os sacrifícios humanos não lhe são agradáveis. É este o significado profundo da rejeição, por parte de Deus, do sacrifício de Isaac (Gn 22, 1-16).

A Primeira Carta de São João diz que Deus é Amor (1 Jo 4, 7). A definição mais importante que a Bíblia nos apresenta de Deus é a da Primeira Carta de São João a qual nos diz que Deus é Amor (1 Jo 4, 7). Se Deus é Amor, isto significa que ele só pode aquilo que pode o amor, pois não se pode negar a si mesmo. Como diz São Paulo, o amor não é rancoroso nem se vinga: “O amor é paciente e prestável (…). O amor não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento (…). Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (Jo 13, 4-7).

Nos evangelhos, Jesus está constantemente a dizer aos discípulos Deus tem um coração misericordioso. Isto quer dizer que não tem necessidade de destruir as pessoas para satisfazer a sua justiça. Depois de dizer aos discípulos que Deus ama a Humanidade de modo incondicional, Jesus pede aos discípulos para serem misericordiosos como o Pai do Céu é misericordioso (Lc 6, 36). Quando os fariseus começaram a criticar Jesus por ele acompanhar e comer à mesa com os pecadores, ele respondeu-lhes: “Deus quer misericórdia e não sacrifícios. Ficai sabendo que eu não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mt 9, 13; Mc 2, 17; Lc 5, 32). Por vezes, ao curar as pessoas, Jesus dizia-lhes que estas curas eram apenas um sinal de que Deus lhes perdoava os pecados. O perdão do pecado, portanto, não é um acto meramente jurídico, mas é uma restauração do coração humano.

Por outras palavras, no nosso interior, o Espírito Santo capacita-nos para vencermos o egoísmo e passarmos a agir de acordo com as exigências do amor. São Paulo diz que, através de Cristo, Deus reconciliou consigo a Humanidade, fazendo dela uma Nova Criação (2 Cor 5, 17-19). Jesus curava os doentes e perdoava os pecados, afirmando que era esta a vontade de Deus. Justificava o seu procedimento, dizendo que era esta a vontade de Deus: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo 4, 34). Noutra passagem, Jesus acrescenta: “Eu não desci do Céu para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas o ressuscite no último dia” (Jo 6, 38-39).

Se é este o jeito de Deus amar e perdoar, como é que ele podia ter exigido a morte cruel de Jesus Cristo? Deus não ama o pecado, e a morte de Jesus foi um pecado, pois ele era o mais inocente dos homens. Os textos que falam da morte de Jesus como sacrifício expiatório são inspirados em textos do Antigo Testamento que não se referiam a Jesus mas sim ao sofrimento dos judeus escravizados na Babilónia.

Os textos do Novo Testamento que falam do sacrifício redentor de Cristo estão decalcados nos textos do profeta Isaías que falam do sofrimento dos justos no exílio de Babilónia (cf. Is 52,13-53, 12). Estes textos vão exactamente no sentido contrário àquele que nós demos a estes textos: De facto, o texto do profeta Isaías pressupõe que Deus não pode ver os justos sofrer. Como o sofrimento dos justos na Babilónia era insuportável para Deus, o Senhor decidiu libertar o povo do exílio, a fim de acabar com a situação de sofrimento destes justos. É verdade que o povo de Israel tinha sido infiel à Aliança e, portanto, merecia ser castigado. Mas no meio do povo havia alguns justos os quais não mereciam qualquer castigo nem o sofrimento que estavam a suportar. E é assim que Deus decide tomar partido pelos justos, libertando o povo da escravidão.

Deste modo, o sofrimento do justo tornou-se redentor para os pecadores. Por outras palavras, os pecadores foram salvos, graças ao facto de Deus não poder ver o sofrimento dos justos. É esta a visão bíblica sobre o sofrimento dos justos. A Bíblia vê o Homem como uma realidade orgânica, interactiva e dinâmica. Eis a razão pela qual o pecado do pecador traz sofrimento para o justo e a justiça do justo traz libertação para o povo.

O Livro do Génesis diz que se houvesse dez justos na cidade de Sodoma, esta não teria sido destruída, pois Deus é incapaz de maltratar os justos. Como só lá havia um justo, Lot, o sobrinho de Abraão, Deus salvou-o a ele, destruindo a cidade. O diálogo entre Deus e Abraão sobre a destruição de Sodoma significa que os pecadores são poupados por Deus, caso haja justos no meio deles (Gn 18, 23-32). Segundo o Salmo Vinte e Um, Deus acaba sempre por glorificar o justo, mesmo quando este é maltratado oprimido pelos pecadores.

Esta perspectiva está muito longe da visão cruel da Idade Média, segundo a qual Deus Pai decretou a morte do seu Filho, a fim de ter uma vítima de valor infinito, a única suficiente para aplacar a ira de Deus. Santo Anselmo vê nos sofrimentos de Jesus Cristo o sacrifício expiatório da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Segundo o esquema de Santo Anselmo, só o sofrimento de uma pessoa divina podia ser suficiente para aplacar a ira de Deus Pai. Se as coisas fossem assim, Deus não seria amor!

Os textos do Novo Testamento que falam do sacrifício redentor de Jesus Cristo ainda não vêem em Jesus como a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Isto quer dizer que a sua visão sobre a morte de Jesus não é de modo nenhum a de Santo Anselmo. O evangelho de São João já vê Cristo como o Filho Eterno de Deus. Mas este evangelho, já nunca fala da morte de Jesus como um sacrifício expiatório para aplacar Deus Pai.

Na verdade, ao falar da paixão de Jesus, o evangelho de São João não fala da vítima expiatória, mas sim da fidelidade de Jesus à sua missão e do seu grande amor pela Humanidade: Segundo o evangelho de São, a morte de Jesus é um crime perpetrado pelos judeus. Ao aceitar esta morte, Jesus está a levar o seu amor a Deus e à Humanidade até à sua perfeição máxima, isto é, dar a vida pelas pessoas que ama.

Eis as palavras que o quarto evangelho põe na boca de Jesus: “É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Na verdade, ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 12-13). No evangelho de São João, portanto, a morte de Jesus está relacionada com a sua fidelidade incondicional à missão que Deus confiou. O Espírito Santo criou uma sintonia perfeita entre o amor pleno do Filho ao Pai. Na verdade, não foi a morte de Jesus que agradou a Deus, mas sim a sua fidelidade incondicional à missão que recebeu do mesmo Deus.


4- O Deus Misericordioso e a Morte de Cristo


São Paulo vê Jesus Cristo como o Novo Adão que repara as distorções operadas na História Humana pelo primeiro Adão (Rm 5, 17-19). Graças à fidelidade incondicional de Jesus Cristo, surge na História uma nova Humanidade reconciliada com Deus, acrescenta a Segunda Carta aos Coríntios: “Por isso, se alguém está em Cristo é uma Nova Criação. O que era velho passou. Eis que tudo se fez novo! E isto vem de Deus que, em Jesus Cristo, nos reconciliou consigo, não levando mais em conta os pecados dos homens” (2 Cor 5, 17-18).

Adão introduziu a Humanidade no caminho do fracasso. Jesus Cristo superou esta situação e deu-nos a possibilidade de reencontrar a plenitude da Vida Eterna: “De facto, se pela falta de um só e por meio de um só reinou a morte, como muito mais razão, por meio de um só, Jesus Cristo, hão-de reinar na vida aqueles que recebem em abundância a graça e o dom da justiça (…). De facto, tal como pela desobediência de um só homem todos se tornaram pecadores, assim também pela obediência de um só todos se tornam justos” (Rm 5, 17-19).

A Redenção consiste na reconciliação do Homem com Deus realizada em Jesus Cristo. Foi por ele que Deus nos concedeu o dom do perdão universal, não levando mais em conta os pecados dos homens (2 Cor 5, 17-19). A carta aos Hebreus pressupõe que a reconciliação da Humanidade com Deus foi realizada em Cristo. Por isso já precisamos de oferecer cultos para obter o perdão do pecado. Com efeito, onde há perdão do pecado, já não há necessidade de oferenda pelos pecados (Heb 10, 18).

São Paulo, por vezes, diz que Cristo crucificado foi a vítima de expiação, graças à qual os pecados da Humanidade foram perdoados. Ao utilizar esta imagem, São Paulo pretende dizer aos judeus, que Jesus é o filho amado de Deus, apesar de ter morrido como um condenado. Para os judeus, a morte de Jesus é a prova de que ele é um desprezado e amaldiçoado por Deus. Para o judaísmo, a morte de Jesus levada a efeito por pagãos faz dele um judeu e desprezível. Esta morte é a prova evidente de que Deus não estava com ele e não confirmou as suas pretensões messiânicas. Por isso morreu sem subir ao trono. Além disso morreu como um criminoso.

Esta foi certamente uma das maiores dificuldades que os Apóstolos tiveram para enfrentar perante os judeus. A solução encontrada pelo Novo Testamento, sobretudo pelo teólogo Paulo, foi recorrer aos textos bíblicos do justo sofredor de Isaías e ao salmo 21, os quais se referem ao sofrimento dos justos no cativeiro da Babilónia. Logo nos começos da História da Revelação, Deus deu provas de ser um Deus misericordioso que perdoa de graça e que não quer sacrifícios humanos: Abraão era um crente com um coração fiel e generoso, disposto a dar o melhor ao seu Deus. Eis a razão pela qual foi escolhido para ser o pai dos patriarcas e a origem do Povo Bíblico.

Certo dia, o Senhor convidou Abraão para construir uma aliança de amizade e comunhão, garantindo-lhe que todas as famílias da terra seriam abençoadas na sua descendência (Gn 12, 3). Abraão aceitou e decidiu dar o melhor de si e dos seus bens a Deus, a fim de mostrar a sua fidelidade e gratidão. E foi assim que um dia, pensando que isso agradaria a Deus, Abraão decidiu oferecer o seu filho como sacrifício. No momento em que estava a fazer os preparativos para levar a efeito o sacrifício de Isaac, Deus envia um anjo a Abraão, dizendo-lhe para desistir do seu intento, pois Deus não quer sacrifícios humanos (Gn 22, 1-16).

E foi assim que, logo no começo da história da revelação, Deus manifestou aos homens a sua ternura de Pai bondoso e o seu coração cheio de compaixão. Através de Abraão Deus disse à Humanidade que não quer sacrifícios humanos, nem precisa deles para perdoar o pecado dos homens. Os primeiros cristãos, face à morte cruel de Jesus Cristo, tiveram grandes dificuldades para justificar esta morte, pois esta mais parecia um castigo de Deus do que a confirmação da missão messiânica de Jesus.

Se ele fosse o Filho amado de Deus, perguntavam os judeus, como é possível ter sofrido e ser morto daquela maneira? Não tendo ainda aprofundado o bastante esta faceta da história de Jesus Cristo, os Apóstolos começam a pregar, dizendo que a morte de Jesus não significou uma rejeição por parte de Deus, pois já estava prevista em Isaías e nos Salmos.

A morte de Jesus significa a morte do justo da qual falara o profeta Isaías e o Salmo Vinte e Um (Is 52, 13-53, 12; Sal 21). Trata-se de textos referentes ao sofrimento dos justos aquando do cativeiro do povo judeu na Babilónia. O povo foi castigado pelos seus pecados. Isto foi um acto de justiça de Deus, pensavam os crentes.

Mas no meio dos pecadores havia alguns justos que estavam sujeitos a cruéis sofrimentos e humilhações. Os justos sofriam tanto ou mais como os pecadores. Eis a razão pela qual Deus decidiu libertar o povo em atenção ao sofrimento dos justos. O profeta Isaías e o salmo vinte e um atribuíram a libertação do povo ao sofrimento dos justos, mas isto não queria dizer que Deus precisava do sofrimento dos justos para perdoar aos pecadores.

Os Apóstolos, face à dificuldade de justificar os sofrimentos humilhantes e a morte de Jesus, começam a utilizar estes textos para justificarem o sofrimento e a morte violenta de Jesus. Na verdade, os Apóstolos não podiam fundamentar-se nos ensinamentos de Jesus para fazerem esta leitura do sofrimento e morte de Jesus. Na verdade, Jesus ensinou de modo muito claro que Deus não é violento nem vingativo. Não quer nem precisa de sacrifícios humanos para perdoar o pecado. O desejo de dar tudo ao seu Deus levou Abraão a levantar a hipótese de oferecer o seu filho em sacrifício. Na verdade este era o sacrifício mais doloroso que ele poderia fazer a Deus.

Abraão pensou que esta seria a maneira mais generosa e plena de mostrar o seu amor e a sua plena sujeição da Deus. Mas Deus não quer sacrifícios humanos, sejam culpados ou inocentes. E foi assim que Abraão compreendeu que a glória de Deus consiste em dar vida e não em matar. Deus é incapaz de esmagar inocentes para perdoardes aos pecadores. Face à morte cruel de Jesus Cristo, os primeiros cristãos, na verdade, não viam com clareza o sentido daquela morte. Na verdade, as pessoas da antiguidade pensavam que tudo o que acontece é decidido pontualmente por Deus. Foi esta a razão pela qual os cristãos começaram a pregar, dizendo que a morte cruel de Jesus foi decidida por Deus, a fim de perdoar os pecados dos homens.

Este modo de falar distorceu a imagem do Deus que ama de modo incondicional. Este Deus perdoa de graça sem necessidade de sacrifícios. De facto, a justiça de Deus não é a justiça dos tribunais humanos, mas sim a justiça do amor, pois, como diz a Bíblia, Deus é Amor (1 Jo 4, 7-8). Por outras palavras, Deus só pode o que pode o amor e não pode nada contra o amor.

A justiça do amor é aquela que reina nas relações entre pais e seus filhos, mesmo que estes, por vezes, façam asneiras. A justiça do amor é também aquela reina entre o marido que ama a esposa e a esposa que ama o seu marido. Quando o casal recorre aos tribunais para resolver os seus problemas ou dificuldades é sinal que, entre eles, o amor já morreu. Deus é amor que não morre (1 Jo 4, 16). Um pai humano, apesar de ser limitado, é incapaz de matar o seu filho para perdoar ou satisfazer a sua sede de justiça. Apesar de pecadores, os pais humanos sabem perdoar de graça.

Ao falar de Deus Pai, Jesus dizia que ele nos ama de modo incondicional. Pedia às pessoas para imitarem o Pai do Céu, procurando ser bondosos e compassivos (Lc 6, 36). Jesus explicou aos seus discípulos que deviam ser como o Pai do Céu, tentando perdoar sempre. Mandava-lhes exercitar a bondade, a fim de serem perfeitos como Deus és perfeito (Mt 5, 48). O próprio Jesus perdoou aos que o mataram. De facto, no momento de morrer, ele pediu perdão para os seus assassinos. O que agradou a Deus em Jesus Cristo foi a sua fidelidade incondicional e não aquela morte cruel, a qual foi um crime e um pecado. São Paulo diz que Jesus foi fiel e obediente até à morte e morte de cruz (Flp 2, 8).

Foi pela sua paixão pelo do Evangelho e por fazer a vontade de Deus, isto é, curar e libertar os homens, que Jesus Cristo agradou a Deus. Mas foi também esta paixão a causa da sua morte violenta, a qual não foi querida por Deus, mas decidida pelas forças negativas e os interesses mesquinhos que se opunham ao plano de Deus. E Jesus continuou fiel até ao fim. Apesar de se aperceber que o iam matar, não começou a desdizer-se. Pelo contrário, continuou fiel à sua missão, apesar de saber o risco que estava a correr. Isto quer dizer que a morte de Jesus nada tem a ver com um plano determinado por Deus.

A Carta aos Efésios faz uma síntese dos ensinamentos de Jesus sobre o amor e a misericórdia de Deus Pai, dizendo: “Deus é realmente rico em misericórdia. Graças ao grande amor nos tem vivificou-nos em Cristo, quando ainda estávamos mortos pelos nossos pecados” (Ef 2, 4-5). Como vemos, Deus não esteve à espera que fossemos bons para gostar de nós! Pelo contrário, perdoou-nos e acolheu-nos na Família Divina.

Os fariseus não gostavam de ouvir Jesus falar assim de Deus, se Pai. Viviam enredados nos ritos, preceitos e normas religiosas. Por seu lado, os sacerdotes pretendiam garantir a salvação das pessoas através dos cultos. Jesus denunciou estas falsas seguranças, dizendo que a salvação não está nos ritos, nos cultos ou sacrifícios, mas na vivência do amor e da misericórdia: “Os fariseus, vendo-o comer com pecadores e cobradores de impostos, perguntaram aos discípulos: “por que é que ele come com cobradores de impostos e pecadores?” Jesus ouviu e respondeu: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Ide aprender o que significa: “Eu quero misericórdia e não sacrifícios. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mt 9, 11-13).

Podemos dizer com toda a verdade que é assim o coração de Deus Pai, o qual não quer sacrifícios humanos. Como é amor, Deus só pode aquilo que pode o amor, pois não se pode negar a si mesmo. Na verdade, o amor é incapaz de matar um inocente, para perdoar aos pecadores. Além disso, não precisa de sacrifícios humanos, pois perdoa de graça.

Não temos razão para ter medo de Deus, pois ninguém tem razão para ter medo do amor. Nos evangelhos Jesus diz muitas vezes que só ele conhece o Pai. Tudo o que se afirme dele que não esteja em sintonia com o que Jesus ensina carece de fundamento. Eis as palavras de Jesus no evangelho de São Lucas: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Lc 10, 22).

Jesus ensinou-nos de muito claro que Deus não se vinga nem tem necessidade de destruir pessoas para perdoar os pecados: “Deus quer misericórdia e não sacrifícios (Mt 9, 13). Segundo o retrato do Pai que Jesus nos desenha nos evangelhos podemos afirmar com plena segurança que Deus não precisa de sacrifícios para perdoar o pecado dos homens.

Na parábola do Filho Pródigo, Jesus fala do Pai como de uma pessoa que ama de modo incondicional: “O pai disse aos servos: “ide depressa, trazei a melhor túnica e vesti-lha, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho gordo e matai-o. Comamos e festejemos, pois este meu filho estava moro e voltou à vida. Estava perdido e foi reencontrado” (Lc 15, 22-24)

E na verdade, Jesus falou muitas vezes de modo explícito e muito claro sobre o Pai. Muitas vezes Jesus, ao curar as pessoas, Jesus dizia que estas curas eram apenas um sinal de que Deus lhes estava perdoando os seus pecados. Isto é exactamente o contrário das afirmações segundo as quais Deus, para perdoar, exige sacrifícios.

Para Jesus, o perdão do pecado significava uma cura espiritual e não um rito mágico ou um acto meramente jurídico. Acontece no nosso coração pela acção do Espírito Santo. O relato de Zaqueu explicita esta acção transformadora do Espírito Santo como uma capacitação para vencermos o egoísmo e passarmos a agir de acordo com as propostas do amor (Lc 19, 1-10). Ao perdoar o pecado, o Espírito Santo restaura o nosso coração e cura as nossas feridas, dando-nos um coração novo, como diz o profeta Jeremias (Jer 31, 33). São Paulo diz que, através de Cristo, Deus reconciliou consigo a Humanidade, fazendo dela uma Nova Criação (2 Cor 5, 17-19).

A vontade do Pai, dizia Jesus é que ele perdoe a todos e não perca nenhum: A vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas o ressuscite no último dia” (Jo 6, 38-39). Um Deus que tem este jeito de amar e perdoar não podia exigir a morte cruel e injusta de Jesus Cristo.

Como sabemos, Deus não ama o pecado. Ora a morte de Jesus foi um pecado, pois ele era o mais inocente de todos os homens. O Livro do Génesis diz que se houvesse dez justos na cidade de Sodoma esta não teria sido destruída, pois Deus é incapaz de maltratar os justos. Como só lá havia um justo, Lot, o sobrinho de Abraão, Deus salvou-o a ele e à sua família, destruindo a cidade de Sodoma com um fogo que veio do céu. Antes de destruir esta cidade pecadora, Deus teve um diálogo longo com Abraão, garantindo-lhe que se lá houvesse dez pecadores não destruiria a cidade em atenção aos justos que lá vivessem.

Isto quer dizer que Deus perdoa aos pecadores em atenção aos justos que ele quer poupar e não destruir. Por outras palavras, o diálogo entre Deus e Abraão sobre Sodoma significa, portanto, que os pecadores são poupados quando no seu meio haja justos (Gn 18, 23-32). Ao falar da paixão de Jesus, o evangelho de São João já não fala de Cristo como de uma vítima expiatória, mas sim do grande amor de Jesus pela Humanidade: A morte de Jesus, para o evangelho de São João, é um crime perpetrado pelos judeus. Ao aceitar esta morte, Jesus está a levar o seu amor a Deus e à Humanidade até à sua perfeição máxima, isto é, dar a vida pelos que ama. Eis as palavras de Jesus no evangelho de São João: “É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Na verdade, ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 12-13).

Jesus nunca interpretou a sua morte como um sacrifício exigido por Deus, a fim de perdoar aos homens. Em resumo podemos dizer o seguinte: o que agradou a Deus foi a fidelidade incondicional de Jesus à missão que lhe foi confiada e não a morte cruel e injusta que sofreu. Os pecadores, apesar de serem culpados de crimes e iniquidades, serão solidariamente redimidos e salvos, pois formam uma união orgânica com os justos que estão a sofrer.

É este o sentido dos textos do justo sofredor que estão na base das afirmações do Novo Testamento que fazem a leitura da morte de Jesus numa perspectiva de sacrifício redentor que reverte em favor dos pecadores (cf. Is 52, 13-53, 12; Sal 21). Foi servindo-se destes textos que os Apóstolos tentaram demonstrar aos judeus que Jesus era o Messias. Apesar de sofrer e morrer daquela maneira, Jesus foi totalmente aceite e amado por Deus, pois o seu sofrimento e morte já estavam previstos no Antigo Testamento.


f) Eis Como Cristo Venceu a Morte


Fazendo alusão à oração de Jesus no jardim das Oliveiras, a Carta aos Hebreus diz que ele fez orações com clamor e lágrimas àquele que o podia libertar da morte e foi atendido, pois era fiel e verdadeiro (Heb 5, 7). Segundo este texto, Deus libertou Jesus da morte ressuscitando-o. Isto quer dizer que a ressurreição de Jesus deve ser entendido como algo simultâneo ao próprio acto de morrer. Por outras palavras, Jesus não esteve um só momento sob o domínio da morte.

A sua vitória sobre a morte aconteceu pela acção do Espírito Santo e foi um acontecimento simultâneo ao próprio acto de morrer. Por outras palavras, Jesus não esteve um só momento sob o domínio da morte, de contrário não tinha sido liberto de cair sob o domínio da morte. A primeira Carta de Pedro diz que Jesus não podia permanecer sob o domínio da morte, pois nele estava o Espírito Santo com o seu poder ressuscitador. Além disso, como tinha a plenitude do Espírito, Jesus ressuscitava mortos, a fim de indicar que nele habitava a plenitude do poder ressuscitador do Espírito Santo.

Eis as palavras de Jesus no evangelho de São João: “ Jesus disse a marta: Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido viverá” (Jo 11, 25). Como o grupo apostólico só fez a experiência do ressuscitado ao terceiro dia, o autor da carta de São Pedro diz que Jesus no espaço de tempo que passou entre a sua morte e a aparição aos discípulos não esteve sob o domínio da morte.

Pelo contrário. Logo a seguir à sua morte, Jesus foi com a força do Espírito ressuscitador à morada dos mortos, levando consigo a Boa Nova da salvação e ressuscitando os que estavam sob o domínio da morte (1 Pd 3, 18-19). Jesus pode fazer isto porque após a sua morte na cruz não ficou sob o domínio da morte. Esta dinâmica ressuscitante de Cristo após a sua morte aconteceu devido à união orgânica que existe entre Jesus e a Humanidade.

O sacramento da Eucaristia torna explicita de modo sacramental esta interacção ressuscitante e salvadora da Humanidade, graças ao facto de formar uma união orgânica com ele. Jesus, no evangelho de João, explica o sentido desta acção salvadora dizendo: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive e eu vivo pelo Pai, também quem me come viverá por mim” (Jo 6, 56-57).

A ressurreição de Jesus foi um acontecimento progressivo a acontecer em simultâneo com o acto de morrer. À medida em que, no alto da cruz, o que em Jesus era mortal ia morrendo, o imortal ia sendo glorificado e assumida na comunhão da Santíssima trindade. A ressurreição ia acontecendo, portanto, pela acção recriadora e glorificante do Espírito Santo.

Quando aquilo que em Jesus era mortal acabou de morrer, já o que nele era imortal estava totalmente glorificado e incorporado na comunhão da Trindade Divina. Por outras palavras, enquanto a morte ia destruindo aquilo que no homem é destrutível, o Espírito Santo, ia recriando e incorporando na comunhão divina o que tinha densidade para ser assumido e glorificado na Família da Santíssima Trindade. Isto mesmo é verdade para nós, mas através de Cristo ressuscitado.

Por isso é que São Paulo diz que é o Espírito Santo quem nos incorpora na Família de Deus como filhos em relação a Deus Pai e como irmãos em relação ao Filho de Deus (Rm 8, 14-17). Podemos dizer que não existe distância temporal entre a morte e ressurreição de Jesus Cristo. À medida em que ia morrendo, o Espírito Santo ia realizando a vitória sobre a morte.

A ressurreição de Cristo inicia a plenitude dos tempos, isto é, a fase dos acabamentos do projecto humano, pois com a ressurreição de Cristo tem início a ressurreição da Humanidade. Os seres humanos que viveram antes de Cristo entraram com ele na plenitude da vida eterna, como Jesus garantiu ao Bom Ladrão: “Em verdade te digo, hoje mesmo estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Por seu lado, São Mateus diz que no momento da morte de Jesus os túmulos começam a abrir-se e os justos a ressuscitar (Mt 27, 52-53). O evangelho de São João, referindo-se a este momento, chama-lhe a “a hora de Jesus” ou “a minha hora”. A hora de Jesus no quarto evangelho é o momento da ressurreição e glorificação de Jesus junto do Pai (Jo 7, 34; 8, 21-22; 14, 2-4). A Hora é o momento da plena comunicação do Espírito Santo (Jo 16, 7-8; 7, 37-39). É também o momento de Jesus subir para onde estava antes, diz São João referindo-se à preexistência do Filho do Homem: “Isto escandaliza-vos? E se virdes o Filho do Homem subir para onde estava antes? (Jo 6, 62).

A partir do acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, a dinâmica ressuscitante do Espírito Santo está plenamente activa na génese humana. A ressurreição não se reduz à simples imortalidade. A ressurreição implica a plenitude da vida mediante a assunção e incorporação da pessoa na Família de Deus. A ressurreição dos seres humanos é algo que só acontece após a morte e ressurreição de Jesus.

Pressupõe o mistério da Encarnação ou seja, o enxerto do divino no humano, a fim deste ser divinizado. A divinização do Homem acontece através da assunção e incorporação do homem na Família de Deus. Ressuscitar, portanto, é entrar na vida eterna após o acontecimento da morte e ressurreição de Jesus Cristo.

No acto de morrer, o Espírito Santo restaura, assume e glorifica a pessoa humana na plenitude da comunhão universal da Família de Deus: “Mas quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adopção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho que clama “ABBA”, Papá. Deste modo já não és escravo mas filho e, se és filho, és herdeiro pela graça de Deus” (Gal 4, 4-7). Na carta aos Romanos, São Paulo afirma: “Todos os que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8, 14).


g) Final da História e Libertação em Cristo

1- Final da História e Plenitude Humana


São Paulo diz que, com Jesus Cristo, a Humanidade chegou à plenitude dos tempos. Esta expressão significa que Cristo inaugurou a fase dos acabamentos do projecto humano. Na verdade, com Jesus Cristo a Humanidade atingiu um nível totalmente novo, pois as pessoas humanas ficaram a pertencer à Família das pessoas divinas. Este salto de qualidade está a acontecer como processo histórico. Eis a razão pela qual a fé cristã fala de plenitude dos tempos ou fase dos acabamentos da História.

Na perspectiva de São Paulo, com Jesus Cristo, a dinâmica da Salvação invadiu a História. Na verdade, ser salvo significa passar a fazer parte da Família de Deus. Ao ser assumida e incorporada na Família de Deus, a Humanidade atingiu o topo, isto é, o ponto mais elevado da História. Devido ao facto de a História ter atingido a sua plenitude com a ressurreição de Cristo, as primeiras comunidade cristãs pensavam que o mundo ia acabar muito em breve. Por isso alguns crentes achavam que já nem era preciso trabalhar.

São Paulo escreveu uma carta aos Colossenses, prevenindo-os de que não deve ser precipitados, pois o dia em que o Senhor vai chegar ainda tarda um pouco: “Acerca da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo e da nossa união definitiva com ele, pedimo-vos irmãos que não vos perturbeis nem percais a serenidade. Não entreis em pânico com uma falsa revelação profética ou com uma carta que alguém diga ser minha, dizendo que o dia do Senhor está mesmo a chegar. Que ninguém vos engana, pois antes deve vir a apostasia anunciada” (2 Tes 2, 1-3).

Mas São Paulo não deixa dúvidas acerca da vinda do Senhor ainda durante a primeira geração cristã: “Irmãos, quanto ao tempo e ao momento da vinda do Senhor não precisais que vos escreva. Na verdade, vós sabeis perfeitamente que o dia do Senhor vai chegar de noite como um ladrão, isto é, quando os homens menos pensarem. Quando disserem: “estamos em paz e segurança, então se abaterá repentinamente sobre eles a ruína, como as dores de parto sobre a mulher grávida, e não escaparão a esse acontecimento” (1 Tes 5, 1-3).

Após as aparições de Jesus ressuscitado, os Apóstolos, de facto, pensavam que muitos deles estariam ainda vivos no dia da segunda vinda do Senhor (Lc 21, 20-30). Era também esta a maneira de ver de São João Baptista (Mt 3, 7-10). Pouco a pouco os Apóstolos começaram a compreender melhor o significado da vinda gloriosa de Jesus Cristo. A palavra de Deus e o Espírito Santo ajudaram-nos a compreender que a vinda gloriosa de Jesus Cristo não é uma tragédia, mas a plena realização do amor de Deus.

No dia da vinda gloriosa do Senhor ressuscitado, as pessoas que, nessa altura, vivam na Terra serão salvas e associadas a toda a Humanidade que foi emergindo ao longo de milhões de anos. Por outras palavras, quando as últimas pessoas entrarem na Comunhão Familiar de Deus, encontrarão lá muitos milhões de outras pessoas que as precederam na aventura histórica da humanização.

No Reino de Deus estão todos os seres humanos que nasceram de Adão, isto é, da Humanidade primordial. Há dois aspectos que convém recordar: Em primeiro lugar, devemos saber que o final da História Humana não significa o final do Universo. Em segundo lugar devemos ter presente que a segunda vinda de Jesus não significa um juízo implacável e uma vingança de Deus. Jesus anunciou o Reino de Deus como um projecto de amor sonhado por Deus em favor de toda a Humanidade. A vontade de Deus, diz São Paulo, é que todas as pessoas conheçam Deus e tomem parte na salvação, isto é, sejam incorporadas na Família de Deus (1 Tim 2, 4).

Se olharmos com atenção a maneira como Jesus actuava, vemos como ele não vinha para condenar e matar os pecadores. Pelo contrário, perdoava aos pecadores e integrava as pessoas na Família de Deus. Eis a razão pela qual ele comia com os pecadores. Todos recordamos com Jesus perdoou o pecado da mulher adúltera (Jo 8, 1-11), de Zaqueu (Lc 19, 1-10) e da Samaritana (cf. Jo 4,7-21).

Os evangelhos insistem em que Jesus amava os pecadores e perdoava os seus pecados. Ele costumava dizer que, ao proceder deste modo, estava a fazer a vontade de Deus: “O meu alimento, dizia ele, é fazer a vontade de meu Pai e realizar o seu projecto” (Jo 4, 34). A primeira Carta a Timóteo diz que a vontade de Deus é que os homens se salvem e cheguem a conhecer a verdade do amor de Deus por todos” (1 Tim 2, 4).

O Reino de Deus é a comunhão de todas as pessoas, formando a Família de Deus. A vinda gloriosa de Jesus Cristo, também chamada de última vinda, significa que o Senhor ressuscitado não deixará ninguém fora da Família de Deus. Só não entra na festa do Reino de Deus quem rejeita o amor que Deus nos oferece de modo gratuito. Como vimos, a Humanidade deu um salto de qualidade com o acontecimento de Jesus Cristo.

De não divinos, os seres humanos passaram a pertencer à família de Deus, atingindo o ponto mais elevado da meta para a qual Deus nos criou. As primeiras comunidades cristãs julgavam que, por termos chegado ao topo da história, o mundo iria acabar muito em breve. Imaginavam que Jesus, no momento da sua ressurreição, ficou um rei poderoso e implacável que iria voltar em breve para julgar e condenar os seres humanos. Os próprios Apóstolos estavam convencidos que a vinda de Jesus aconteceria ainda durante a primeira geração (Lc 21, 20-30).

Nós não nos devemos esquecer de que quando as últimas pessoas chegarem à plenitude da Família de Deus, já lá estão muitos milhões de outras pessoas que nasceram, viveram e morreram ao longo da História Humana. São Paulo diz que Jesus não veio condenar os pecadores, mas fazer deles uma Nova Criação reconciliada com Deus (2 Cor 5, 17-19). Na primeira Carta a Timóteo, São Paulo diz que a vontade de Deus é que todos os homens se salvem e cheguem a conhecer a verdade do amor de Deus” (1 Tim 2, 4). A vinda gloriosa de Cristo, portanto, é um motivo de esperança e alegria e não um motivo de tragédia e desespero.


2- A Segunda Vinda de Cristo nos Apocalipses


Segundo a tradição cristã, a vinda do Senhor ressuscitado coincide com o final da História. São Paulo imagina a segunda vinda de Cristo como achegada do rei e Senhor do Universo. Para os crentes com uma fé esclarecida e adulta a vinda de Cristo é uma razão de esperança para os que o aceitam. Não devemos imaginar a segunda vinda de Jesus Cristo como um acontecimento espacial, mas como um acontecimento em que a pessoa humana é divinizada e assumida na Comunhão Universal do Reino de Deus.

Influenciados pelos apocalipses do Antigo Testamento, muitos textos do Novo Testamento vêem a Segunda Vida de Cristo como uma tragédia, pois é o dia da punição de Deus e da condenação dos pecadores. Jesus vai chegar sobre as nuvens do Céu e todos os olhos o verão, inclusive os olhos daqueles que o trespassaram (Apc 1, 7). No dia da ira, diz o Livro do Apocalipse, s homens gritarão às montanhas, pedindo-lhes que caiam sobre eles, a fim de não enfrentarem a terrível ira de Deus (Apc 6, 16-17).

Todas estas imagens vêm dos apocalipses dos antigos profetas, para quem o dia da ira significava a destruição dos pecadores. Segundo esta teologia trágica, só um pequeno resto constituído pelos justos, escapará a esta destruição final. O profeta Isaías dizia que os povos serão severamente punidos. Nesse dia, a Lua tornar-se-à escura e o Sol deixará de brilhar (Is 24, 21-23) e a Terra será destruída (Is 34, 2-11). Influenciado por estes textos, São Paulo diz que, nesse dia, os inimigos de Cristo serão todos destruídos (1 Cor 15, 24-26). O Termo mais frequentemente usado para falar da vinda de Jesus é o “o dia do Senhor” (1 Tes 5, 2; 2Ts 2, 2; 1 Cor 5, 5). Quando acontecer a segunda vinda, o Senhor aparecerá sobre as nuvens do Céu. Todos os olhos o hão-de ver (Apc 1, 7). Os cristãos perseguidos e atormentados já só têm de esperar um pouco mais, pois o Senhor vai chegar (Apc 1, 9). Os crentes que estão a ser afligidos nas prisões, que recuperem a esperança, pois o Senhor vai vir em breve (Apc 2, 10-11).

No livro do Apocalipse, o Resto fiel será constituído pelos cristãos e pelos justos do Antigo Testamento. Estes são simbolizados pelos cento e quarenta e quatro mil, um múltiplo de doze, para significar os justos das doze tribos. Há, depois, a multidão incontável de todas as raças, línguas, culturas e nações, a fim de significar os cristãos vindos do paganismo (Apc 7, 3-10). Os não assinalados com o sinal da salvação são os pecadores que vão ser aniquilados (Apc 8, 4-5). Nesse dia, Cristo receberá o império e o poder, reinando para sempre (Apc 11,15).

Paulo pensava que o Reino de Cristo, na Terra, duraria apenas o tempo suficiente para Cristo dominar os seus inimigos, sobretudo os poderes maléficos que vagueiam pelos ares. Depois disto entregaria o Reino ao Pai, a fim de Deus ser tudo em todos (1 Cor 15, 24-28). O autor do Apocalipse diz que o Reino Messiânico, sobre a terra, durará mil anos. Seria constituído pelos justos do Antigo Testamento e pelos cristãos, os quais reinarão com Cristo durante mil anos vivendo em pleno “Shalom”, isto é, na plenitude da felicidade e bem-estar (Apc 20,4).

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