As Consequências do Pecado



a) A situação de Purgatório
b) A Situação de Inferno

a) A Situação de Purgatório

O tema do purgatório faz parte dos conteúdos dogmáticos da Fé. Mas não devemos confundir o dogma do purgatório com a linguagem tradicionalmente usada para abordar este tema, pois tal linguagem não serve para dizer o plano de Deus para o Homem.

É evidente que não se trata de um lugar criado por Deus para castigar os seres humanos. A situação de purgatório é um estado interior da pessoa criado pelas decisões escolhas e atitudes da pessoa. Se for bem equacionada, a questão do purgatório, ajuda-nos a adquirir uma compreensão muito mais profunda do mistério do Homem. Por outras palavras, se os crentes equacionarem a questão do purgatório de modo adequado chegam a um conhecimento da verdade de Deus e do Homem que de outro modo não possuem. Isto quer dizer que a situação de purgatório não deve ser considerada uma verdade pouco importante.

Em primeiro lugar, como já vimos, o purgatório não é uma questão de lugar. Na verdade, os seres humanos libertam-se das coordenadas do espaço através do acontecimento da morte. Do mesmo modo, pela morte, a pessoa já não está nas coordenadas do tempo. No entanto, o purgatório tem a ver com uma questão de temporalidade, pois não é uma situação eterna e definitiva como o estado de inferno. Mas seria um erro conceber a situação de purgatório em termos de prisão temporária.

Outro aspecto importante a termos presente é o facto de que, apesar de estarem em estado de purgatório, as pessoas não estão fora da Comunhão Universal da Família de Deus. Pelo contrário, as pessoas que estão em estado de purgatório já saboreiam a festa do Reino, embora ainda não na sua plenitude. Além disso, aspiram ardentemente a encontrar-se de modo pleno na Comunhão Universal do Reino de Deus.

Mas para isto acontecer é necessário que sejam superadas definitivamente as causas que bloqueiam esta plena integração na comunhão do Reino de Deus. Estes bloqueios são consequência dos ritmos negativos gerados pela pessoa e que ficaram activos na história a marcar terceiros. Na verdade, o pecado tem consequências pessoais e consequências sociais e históricas. Por outras palavras, os ritmos negativos gerados pelo pecado de uma pessoa ficam a marcar de modo negativo a marcha da História, bloqueando a realização e a felicidade das pessoas que foram vítimas desse.

Face ao pecado, a pessoa pode situa-se como vítima ou como culpado. A maior parte das pessoas adultas as pessoas são simultaneamente vítimas e culpadas. Mas pode haver pessoas que foram apenas vítimas, como as crianças e, segundo a nossa Fé, Maria e Jesus. Ao falar do estado de purgatório, nós considerámo-lo sempre como estado temporário. Isto não quer dizer que as pessoas, após a morte, estejam ainda nas coordenadas do tempo. Significa apenas que os ritmos negativos que bloqueiam a plena inserção da pessoa na Comunhão Universal estão activos na história.

A assunção ou integração plena destas pessoas na plenitude da vida eterna é, pois, gradual e progressiva. Como vemos, uma reflexão feita à luz da Fé sobre o horizonte definitivo da vida, ilumina profundamente o sentido total da vida humana. A luz que ilumina e nos possibilita esta reflexão deriva das Escrituras, da tradição e do aprofundamento da antropologia.

Eis alguns pilares importantes que nos ajudam a compreender a questão do purgatório:
*Deus é uma comunhão de três pessoas em plena reciprocidade de comunhão amorosa.
*O ser humano está a realizar-se como pessoa à imagem e semelhança de Deus.
*A pessoa emerge e estrutura-se em relações com os outros seres humanos.
*Por outro lado, à medida em que emerge como pessoa, converge, tornando-se património da Comunhão Humana Universal.
*Na verdade, a lei da humanização é a seguinte: “Emergência pessoal mediante relações de amor e convergência para a Comunhão Universal do Reino de Deus. A pessoa humana encontra a sua plenitude precisamente na medida em que faz parte da reciprocidade amorosa da Comunhão Humana Universal.

*A plenitude da pessoa, portanto, é a comunhão Universal, a qual engloba não apenas os que já partiram, mas também os que estamos agora a emergir na história.
*A Humanidade forma um todo, isto é, uma união orgânica e interactiva que engloba os que estão na História, como aqueles que já a deixaram.
*Hoje estamos nós de turno na edificação desta Humanidade. Mas muitos outros estiveram de turno antes de nós, edificando a mesma Humanidade que é uma união orgânica e dinâmica.

*Graças ao mistério da Encarnação, a Humanidade foi assumida e incorporada na comunhão familiar da Santíssima Trindade. Ao encarnar, diz o evangelho de São João, Cristo deu-nos o poder de nos tornarmos filhos de Deus, não pela vontade do homem ou pelos impulsos da carne, mas sim pelo Espírito de Deus (Jo 1, 12-14).

*As pessoas humanas são incorporadas na Família de Deus, não de modo individual, mas como pessoas que fazem um todo com a Humanidade cuja cabeça é Cristo.
*Deus só tem um Filho Unigénito, mas pelo facto de estarmos organicamente unidos ao Filho de Deus somos também filhos e herdeiros de Deus Pai, bem como irmãos e co-herdeiros do Filho de Deus (Rm 8, 14-16).

*A Carta aos Romanos diz que pelo facto de termos sido configurados com Cristo, todos nós fomos constituídos filhos de Deus. Deste modo, O Filho Unigénito de Deus deixou de ser unigénito para se tornar primogénito de muitos irmãos (Rm 8, 29).
*A plenitude da pessoa não está em si, mas na comunhão.
*Na verdade, a pessoa só se possui plenamente na reciprocidade da comunhão.

*Com o acontecimento da morte, a pessoa fica nas coordenadas da Universalidade e da equidistância, tornando-se presente a tudo e a todos. Com efeito, a Comunhão Universal dos Santos envolve a Humanidade inteira e não apenas os que já partiram. Se os pecados de uma pessoa que já partiu deixaram ritmos negativos que estão a afectar outras pessoas na História, a pessoa não se encontra na plenitude de comunhão. É esta a raiz do estado de purgatório. As nossas recusas de amor, portanto, produzem, pois, ritmos negativos que ficam a marcar terceiros na história, mesmo após a nossa morte.

O Estado de purgatório, portanto, é o termo para designar a situação de uma pessoa que já partiu da História mas que ainda não está a saborear a plenitude da Comunhão Universal da Família de Deus. Não está fora da Festa, mas não a está a saborear de modo pleno devido aos ritmos negativos criados pelo seu pecado os quais ainda estão a marcar terceiros na História.

Agora já nos é fácil compreender a razão pela qual, ao terminar a História, deixa de existir de modo definitivo o estado de purgatório. Pelo acontecimento da morte, a pessoa passa da face exterior da realidade para a sua face interior, cujo coração é a comunhão da Santíssima Trindade.
O aspecto temporário é, pois, essencial, a fim de entendermos esta realidade do estado de purgatório. Seria uma distorção grave imaginar a situação de purgatório como se de um inferno temporário se tratasse. Com efeito, a situação de purgatório e o estado de inferno são realidade de natureza e essência totalmente distintas.

A pessoa que se encontra em estado de inferno chegou a este estado através de uma cadeia de recusas ao amor que se foram estruturando como orientação gradual, progressiva e incondicional de uma vida. É isto o pecado mortal. Não se trata de um acto isolado, mas de uma opção gradual, progressiva e incondicional contra o amor.

Com efeito, a pessoa humana é incapaz de se humanizar de modo total e definitivo através de um só acto, pois é um ser em construção gradual e progressiva. Do mesmo modo, a pessoa em construção não é capaz de malograr de modo definitivo a sua existência através de um só acto isolado.

A linguagem tradicional chama pecado venial a estas recusas circunstanciais ao amor. No entanto, como acabámos de ver, o pecado é sempre uma força negativa que condiciona e bloqueia a dinâmica da humanização. Portanto, além das consequências pessoais, o pecado tem também consequências sócio-históricas que são os ritmos negativos que afectam terceiros e a própria marcha da história.

A nível das consequências pessoais, podemos dizer que o pecado cria um “rasgão” na estrutura da pessoa que peca. Este rasgão consiste na não identidade entre os possíveis ou talentos recebidos e os realizados. Com efeito, a pessoa não é igual aos possíveis ou talentos que tem, mas sim aos que realiza. Podemos dizer que a pessoa faz-se, fazendo. O ser humano constrói-se, construindo. A pessoa, como ensina o Evangelho, não vale pelos talentos que tem, mas pelos que realiza. No ser da pessoa que recebeu muitos talentos e não os realizou existe uma não identidade entre o possibilitado e o realizado.

A isto chamaríamos as consequências espirituais do pecado na pessoa do pecador. As consequências sócio-históricas são os bloqueios que vamos inscrevendo no tecido social, mais concretamente, nas pessoas que marcámos negativamente e que agora continua a marcar terceiros. Através do bem que fazemos possibilitamos os outros. Através das nossas recusas de amor geramos os ritmos que marcam terceiros e, através destes, outros que se cruzam na vida com eles.

No fundo está presente aqui a dinâmica do amor, pois, como sabemos, ninguém é capaz de amar antes de ter sido amado. Por outro lado, o mal amado ama mal, isto é, com tropeções e bloqueios. Por outras palavras, o amor dos outros capacita-nos para amar, mas também é verdade que as suas recusas de amor bloqueiam as nossas capacidades de amar.

Do mesmo modo, nós podemos possibilitar ou condicionar a realização dos outros, mas não os podemos substituir. É nesta interacção relacional que se estruturam as consequências sócio-históricas do agir humano. É esta a dinâmica do bem e do mal a difundir-se de uns para os outros, no tecido social humano.

No momento da sua morte, o ser humano é imediatamente assumido na comunhão Universal Família de Deus. Todas as pessoas que têm um coração capaz de amar, têm a veste nupcial adequada para participarem na festa das bodas de Cristo ressuscitado. Por outras palavras, entra na sala da festa da Vida Eterna.

No momento da sua assunção e incorporação na Comunhão com Deus, a pessoa encontra-se na Festa e saboreia os ritmos positivos que resultaram das suas opções de amor enquanto viveu na história. Isto é factor de contentamento e reforço dos elos que ligam a pessoa à comunhão orgânica universal. Mas também saboreia o amargo dos ritmos negativos que resultam do seu pecado e que continua a marcar terceiros.

É este sabor amargo que bloqueia os vínculos que a ligam à plenitude que a ligam à comunhão universal. Portanto, enquanto na história existirem ritmos negativos que são consequências directas das recusas de amor da pessoa, esta não se encontra de modo perfeito na Comunhão Universal.

Não nos esqueçamos que, após a morte, a pessoa fica nas coordenadas de Universalidade, presente a tudo e a todos. Por outro lado, é evidente que a pessoa já não pode fazer nada por si, pois já saiu da História e é na história que estão activos os ritmos negativos que resultaram das suas recusas de amor. Portanto, isto que dizer que só nós, os que estamos de turno na Histórica, podemos fazer algo por eles.

Estamos a tocar o sentido mais rico e profundo do mistério da Comunhão dos Santos. Como é evidente, o fim do estado de purgatório de uma pessoa não é uma questão que dependa arbitrariamente do querer de Deus, pois Deus não está metido na sequência de causas e efeitos da marcha da História humana. Na verdade, Deus está connosco mas não está em nosso lugar. Mas isto não quer dizer que Deus é totalmente indiferente à situação dos que estão em estado de purgatório. A sua plenitude está mutilada e isso é motivo de não alegria plena.

A acção de Deus neste caso é interpelar-nos, no sentido de fazermos o bem em união dos que já partiram, pois se progredirmos na dinâmica do amor, estamos a anular ritmos negativos, inclusive os ritmos negativos daqueles que nos precederam. Quando orar em comunhão com os que já partiram estamos realmente a dispor-nos a escutar os apelos de Deus neste sentido.

No momento da sua morte, todos os eleitos são introduzidos na sala da festa do Reino de Deus. Já nada os pode separar da comunhão Universal da Família de Deus. Podemos comparar o estado de purgatório a uma pessoa tímida que está numa festa de casamento com uma grande multidão. Esta pessoa conhece apenas a noiva da qual é amiga. Encontra-se na sala da festa, mas não está a saborear plenamente essa festa. Com efeito, ninguém a trata mal essa pessoa, mas ela não se sente em perfeita reciprocidade porque existem ritmos bloqueadores.

A reflexão sobre o purgatório ilumina a verdade do projecto humano, ajudando-nos a compreender o alcance universal das nossas opções. Podemos concluir, portanto, que quando dizemos sim ao amor, estamos a unir-nos de modo orgânico e dinâmico com toda a Humanidade. Na verdade, quando agimos em harmonia com os apelos do amor aos irmãos estamos a dizer sim ao amor com que fomos amados pelos outros. De facto, ninguém é capaz de amar antes de ter sido amado.

Além disso, estamos a humanizarmo-nos, pois é impossível amar sem emergir e crescer como pessoa e, ao mesmo tempo, convergir para a comunhão amorosa. Estamos a dizer sim aos apelos do Espírito Santo no íntimo do nosso coração. Não há humanização do ser humano sem a presença dinâmica do Espírito Santo que, no nosso íntimo nos interpela e convida no sentido de agirmos em conformidade com os apelos do amor.

Finalmente, sempre que, no nosso dia a dia agimos numa linha de fidelidade ao amor, estamos a possibilitar a plena incorporação na comunhão universal daqueles que nos precederam na história. Santa Teresinha dizia isto de modo muito simples mas sugestivo: uma alma que se eleva levanta o mundo!


b) A Situação de Inferno

A Primeira Carta de São João diz que Deus é Amor e que a pessoa humana só pode conhecer Deus mediante o amor (1 Jo 4, 7-8). Na verdade, a Divindade é uma comunhão amorosa de três pessoas. Rejeitar Deus, portanto, é recusar o amor. O pecado é precisamente a rejeição ou oposição ao amor. Pecar é dizer não ao amor e, por esta mesma razão, dizer não a Deus.

Como vimos acima, o pecado, por ser uma recusa ao amor, mutila a pessoa que peca e bloqueia a realização dos outros. Bloquear a realização do irmão é impedir que os seus possíveis de realização pessoal se possam concretizar-se. É uma oposição ao plano de Deus. Na verdade, os dons de Deus são-nos feitos sempre em forma de possíveis ou talentos, a fim de os podermos aceitar ou não.

A maneira concreta de aceitar os dons de Deus, portanto, é realizar os talentos que temos. O pecado cria em nós condicionamentos que impedem a aceitação do dom da salvação. Não basta que Deus tenha tomado a iniciativa de nos reconciliar consigo, é preciso aceitar essa reconciliação vivendo uma dinâmica de Aliança amorosa com ele.

Além da vertente pessoal, o pecado tem também a vertente orgânica ou sócio histórica. Como vimos acima, as nossas recusas de amor deixam ritmos negativos na marcha da história humana. O mal que fazemos, tal como o bem, afecta os outros, pois fazemos uma união orgânica.

O pecado original ou pecado de Adão não é mais que a acção dos ritmos negativos no todo orgânico da Humanidade em construção na História. A verdade do pecado original, portanto, é esta: todos nós, ainda antes de sermos pecadores, já somos vítimas do pecado. Na verdade, os outros possibilitam-nos, mas também nos condicionam, pois as suas recusas de amor marcam-nos para toda a vida.

Como vemos, os outros habitam-nos por dentro, pois fazem parte do entretecido das nossas vivências históricas. Por outras palavras, levamos os outros connosco, tanto para bem como para mal. Realmente levamos connosco as possibilidades que recebemos deles através do amor, mas também levamos os condicionamentos com que nos marcaram.

As nossas recusas de amor imprimem as suas impressões digitais, tanto nas pessoas como no tecido social. Basta ver como a solidão está a fazer sofrer tantos milhões de pessoas no nosso mundo, apesar dos sofisticados meios de comunicação que a técnica tem criado.

O estado de inferno é o resultado de uma opção gradual, progressiva e incondicional contra o amor. É verdade que Deus quer a salvação de todas as pessoas. A primeira Carta a Timóteo diz que Deus quer a salvação de todos os homens e deseja que todos cheguem ao conhecimento da verdade (1 Tim 2,4).

Mas a salvação é um dom, não uma imposição. O ser humano pode aceitar ou não este dom. Na verdade, por ser Amor, Deus não condena ninguém. As pessoas que entram no estado de morte eterna condenam-se pela cadeia das suas decisões e escolhas, não por decisão de Deus.

O estado de inferno é a ausência total de comunhão e encontro com as pessoas divinas, as humanas e todas as outras que possam existir. É uma situação de solidão total, a qual deriva do facto de a pessoa não ter ninguém para comungar. O amor é uma dinâmica de bem-querer que tem como origem a pessoa e como meta a comunhão. O estado de inferno é precisamente o oposto do amor. Eis a razão pela qual a pessoa, no estado de inferno, não encontra a sua plenitude, pois a plenitude da pessoa apenas se encontra no face a face da comunhão.

Eis a razão pela dizemos que, opor-se ao amor é optar pela morte. A pessoa, por ser espiritual, é imortal. Isto que dizer que nunca será reduzida ao nada. Mesmo no estado de morte eterna, a pessoa subsiste, embora não encontre a sua plenitude pessoal. Como vemos, dizer não ao amor é rejeitar a possibilidade de atingir a plenitude pessoal.

O Estado de Inferno não é uma decisão de Deus para nós. Na situação de inferno, a pessoa está totalmente estruturada no desencontro. A pessoa que se encontra em estado de Inferno não tem capacidade para saborear a riqueza das outras pessoas e é incapaz de partilhar, pois estas estão congeladas pelo total enroscamento sobre si própria.

A pessoa em estado de inferno não tem capacidade para dançar o ritmo do amor e é incapaz de se alegrar com o bem dos outros. Na plenitude da Comunhão da Família de Deus, as pessoas dançam o ritmo do amor com o jeito que treinaram enquanto viveram na história. A pessoa em estado de inferno não tem coração para acolher a multidão dos eleitos que têm um coração aberto para a acolher. Não suporta a ternura maternal do Espírito Santo e por isso está totalmente incapacitada para ser acolhida na Família de Divina. No estado de Inferno, a pessoa tem o coração totalmente fechado às vibrações do encontro e da Comunhão Universal.

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