Forças Desumanizantes da História




a) Pobreza e Desumanização
b) O Perigo Ecológico
c) Forças Desumanizantes e Fé Cristã
d) História, Humanização e Vida Eterna
e) Diálogo Com o Deus da Humanização



a) Pobreza e Desumanização

Apesar dos enormes progressos técnicos e científicos, a fome no mundo continua a matar milhares de pessoas todos os dias. Devido à subnutrição de muitas populações e camadas sociais mais pobres, estão a surgir novos surtos de antigas epidemias, além de novos surtos de doenças que eliminam milhões de seres humanos. É chocante ver que enquanto os pobres estão cada vez mais pobres, os ricos exibem luxos e caprichos cada vez mais dispendiosos.

Estas assimetrias não podem continuar a crescer sob pena de a Humanidade a caminhar a passos rápidos para a autodestruição devido a um processo de desumanização. O Homem ou se humaniza e cresce no sentido da fraternidade ou caminha para a desagregação e a acção destrutiva, tanto a nível das relações com a natureza como a nível das nações, das culturas.

As ciências estão cada vez mais a ser utilizadas no sentido de criar técnicas sofisticadas para matar ou então para servir os interesses mesquinhos dos ricos e dos poderosos. O egoísmos está a crescer assustadoramente no nosso mundo, gerando sociedades egoístas onde a indiferença e a solidão das pessoas aumentam sem cessar.

As propostas da Palavra de Deus vão numa linha bem diferente: Deus deu a terra ao Homem, a fim deste colocar os seus bem em favor de todos os homens. O projecto de Deus acerca dos bens da terra vai no sentido de que estes sejam postos ao serviço de todos os homens.

Ao entregar a terra ao Homem, Deus quis que as suas riquezas fossem geridas de modo a produzirem bem-estar para todos os seres humanos. Isto quer dizer as pessoas que possuem bens têm uma vocação distinta daquelas que não os possuem. As pessoas que têm riquezas são chamadas por Deus a fazê-las circular em benefício dos que não têm, sob pena de entrarem num processo que vai impedir a sua plena realização e felicidade.

Os evangelhos dizem que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar na Comunhão Universal da Família de Deus. Esta afirmação e outras parecidas levaram muitas pessoas a pensar que Deus mandava os ricos para o inferno. Por ser amor, Deus não manda ninguém para a morte eterna. Por este ponto de vista, os ricos podem estar tranquilos.

Mas é importante dizer aos ricos que se recusam a entrar numa dinâmica de comunhão fraterna com os pobres, partilhando as suas riquezas que estão a impedir a sua entrada na plenitude da vida. Por outras palavras, Deus não condena ninguém, mas as pessoas que vão para a morte eterna condenam-se por sua própria decisão.

Os ricos que se vão enroscando progressivamente nas suas riquezas estão a impedir o processo da sua própria humanização, bloqueando as possibilidades de comunhão. Não podemos ignorar o facto de que a pessoa faz-se, fazendo. Além disso, é na história que está a construir a sua identidade pessoal-espiritual, a única que é eterna. Podemos dizer que, no Céu, a pessoa humana dançará eternamente o ritmo do amor com o ritmo que treinou na história.

Para bem dos ricos não podemos deixar de os avisar que a recusa em partilhar os seus bens com os pobres é um pecado. Ora, o pecado tem consequências pessoais e consequências sociais e históricas. As consequências pessoais do pecado consistem em que a pessoa vai bloqueando progressivamente o próprio processo da sua humanização.

As consequências sociais e históricas são as estruturas injustas e opressoras que os ricos vão criando, a fim de aumentar o seu poder de enriquecer através do empobrecimento progressivo dos fracos e desprotegidos. É a lei da selva ao nível da Humanidade: o mais forte, mata, explora e oprime o mais fraco.

É esta a dinâmica da desumanização dos ricos, os quais estão impedindo o desenvolvimento e humanização dos pobres. Os evangelhos são muito duros em relação aos ricos que se fecham à dinâmica da partilha, o único caminho capaz de gerar abundância.

No evangelho de São Lucas, Jesus faz um ensinamento muito sugestivo a este propósito: “E eu digo-vos: arranjai amigos com o vil dinheiro, a fim de que, quando este faltar, possais ser recebidos por eles na comunhão Eterna. Quem é fiel no pouco também é fiel no muito e quem é infiel no pouco também é infiel no muito. Se, pois, não fostes fiéis no que toca ao vil dinheiro, quem vos há-de confiar o verdadeiro bem?” (Lc 16, 9-1).

Isto quer dizer que comungaremos para sempre na festa do Reino de Deus com a qualidade de coração que construirmos enquanto estamos na História. A nossa identidade genética, isto é, o nosso ADN, recebemo-la no momento da concepção e perdemo-la no cemitério. A nossa identidade pessoal-espiritual, pelo contrário, é histórica, pois vai-se construindo de modo gradual e progressivo através das nossas decisões e realizações no sentido do amor.

À luz da fé cristã, os ricos têm no mundo uma vocação especial: partilhar com os pobres, a fim de serem uma mediação do amor e da providência de Deus. Podemos dizer que nada há de essencialmente errado no que se refere à existência do dinheiro. Em si mesmo, o dinheiro é uma ferramenta para facilitar a vida das pessoas.

O problema está em que esta ferramenta pode ser fonte de fraternidade ou de fratricídio. O que as pessoas fazem com o dinheiro mostra realmente o que elas pensam e são em relação a si e aos outros. Um dia, Jesus disse: “Onde estiver o vosso tesouro, aí estará o vosso coração (Mt 6, 21). Quando pomos o nosso dinheiro ao serviço da fraternidade e do amor estamos a sintonizar com o coração do nosso Deus que é Amor (1 Jo 4, 7-8).

Deus convida as pessoas que têm bens a partilharem, a fim de colaborarem com o projecto amoroso de Deus para a Humanidade. A pobreza e as desigualdades estão a aumentar no mundo, mas isto não tem necessariamente de ser assim. Jesus ensinou-nos que a partilha é o caminho da abundância.

O milagre da multiplicação dos pães e dos peixes foi um sinal que Jesus fez para nos ensinar que a partilha faz que os bens cheguem para todos e ainda sobrem (Mt 14, 13-21; Mc 6, 34-44; Lc 9, 10-17). As pessoas que se recusam a partilhar estão a impedir que a fraternidade e do amor se difundam no mundo através da circulação dos bens.

O projecto de Deus, diz Nossa Senhora no seu canto do Magnificat, é encher de bens os famintos e despedir sem nada os ricos que se recusam a partilhar (Lc 1, 53). A avareza é uma forma de resistir ao plano de Deus sobre a finalidade dos bens. Os ricos que se recusam a partilhar, dizem os evangelhos, estão a amontoar tesouros que a traça e o caruncho podem destruir e os ladrões podem roubar, dizem os evangelhos (Mt 6, 19-20; Lc12, 33-34).

Os evangelhos dizem que os avarentos são pessoas insensatas. Trabalham para encher o celeiro. Depois de o terem enchido, fazem obras para o aumentar. Estas pessoas têm a morte dos insensatos. Quando julga que está a ficar seguro, diz o evangelho de São Lucas, chega a morte, e despoja-o de tudo o que tinha. Tudo o que amontoou de nada lhe serviu, pois nem o comeu nem o levou consigo (Lc 12, 13-21).

Para ressaltar a insensatez das pessoas que gastaram a vida a amontoar riquezas, os evangelhos os põem a seguinte questão: Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se o resultado for o seu malogro e o fracasso da sua existência? (Mt 16, 26; Mc 8, 36; Lc 9, 25).

A partilha introduz o ser humano na dinâmica da salvação, como diz o evangelho de São Mateus: “Vinde benditos de Deus, pois tive fome e sede, estava nu, preso e doente e vós atendestes-me” (Mt 25, 34-45). São Lucas diz que não há verdadeira conversão dos ricos a Deus se não houver uma mudança de atitude face às riquezas. São Lucas, diz isto de modo muito claro no relato da conversão de Zaqueu: “Senhor, eis que dou metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém, restituo-lhe o quádruplo” (Lc 19, 8).

Os Actos dos Apóstolos descrevem de modo um tanto ideal o que pode acontecer numa comunidade que se põe a partilhar: “Não havia entre eles qualquer indigente, pois os que possuíam terras ou casas vendiam-nas e colocavam o dinheiro aos pés dos apóstolos, a fim de se distribuir a cada um conforme as suas necessidades (Act 4, 32-35).

O pecado dos ricos que se recusam a partilhar radica no facto de que, com o seu procedimento, estão a travar a marcha da humanização dos pobres. É importante termos consciência de que as pessoas não valem pelo que têm mas pelo que são (Lc 12, 15).

O Evangelho não nos fornece receitas sobre a partilha, pois esta nasce do amor e, como sabemos, o amor não se impõe por decreto. Por outras palavras, o Evangelho apresenta critérios, mas não dá receitas, pois não há receitas para o amor. Na verdade, o amor é uma dinâmica de bem-querer que tem como origem a pessoa e como meta a comunhão.

Jesus não se cansava de insistir que as riquezas são perigosas quando começam a bloquear a comunhão com Deus e os irmãos (Lc 12, 16-21). As riquezas facilmente endurecem o coração, levando as pessoas que as têm a cair na indiferença, ignorando o sofrimento dos que estão em penúria. Na parábola do rico avarento e do pobre Lázaro, São Lucas acentua que a avareza é um caminho que conduz ao malogro e ao fracasso existencial, o qual pode ter consequências definitivas (Lc 16, 19-31).


b) O Perigo Ecológico

Deus elegeu o Homem como seu colaborador na obra da Criação. Apesar de chamados a colaborar com Deus na obra da Criação, a relação dos seres humanos com a Terra tem sido marcada pelo abuso e falta de consideração. Devido à falta de atenção da Humanidade para com a natureza, estamos muito perto de sofrer as consequências de um verdadeiro desastre ecológico.

Na base deste comportamento descontrolado do Homem está a ganância de um progresso que tem como mira apenas o lucro e o enriquecimento de uns poucos senhores. Deus elegeu o Homem como seu colaborador na obra da Criação. Tudo isto tem sido feito sem qualquer controlo e atenção às exigências do equilíbrio ecológico. Por outras palavras, a Humanidade tem explorado de maneira desenfreada e irresponsável os recursos da natureza.

A vida na Terra está também gravemente ameaçada pelo problema da poluição. São cada vez mais assustadores os sinais de que estamos a afectar gravemente o equilíbrio do ecossistema. Convertemos a natureza num recipiente de lixos tóxicos, ao ponto de já serem muitos os sinais de saturação e rotura do mesmo ecossistema. Este já está a ser afectado nos seus pilares fundamentais, isto é, na atmosfera, na energia solar, na circulação dos ventos, nas extensões de água, na fauna, na flora e na vida humana. Todos estes aspectos interagem entre si, pois fazem uma totalidade interactiva.

Deus elegeu o Homem como seu colaborador na obra da Criação. Os resíduos provocados pela actividade humana, uma vez lançados na natureza são absorvidos e entram nos circuitos e interacções do ecossistema, provocando desequilíbrios a nível da atmosfera, da hidrosfera e dos climas, tal como estamos a observar.

Deste modo começam a surgir problemas sérios para os seres vivos, incluindo plantas, animais e a própria Humanidade. Dos diversos desequilíbrios do ecossistema resultam a poluição do ambiente, o efeito estufa, a destruição da camada de ozone, as chuvas ácidas e a alteração dos climas.

Deus elegeu o Homem como seu colaborador na obra da Criação. Tudo isto põe em causa a nossa sobrevivência e sobretudo a existência das gerações futuras. Como vemos, a destruição da natureza não é apenas um pecado contra Deus, autor da natureza, como também um pecado grave contra a Humanidade.

O progresso industrial descontrolado e a utilização irresponsável dos recursos naturais está a gerar uma crise energética grave, bem como uma cada vez maior desigualdade entre os povos. Se a Humanidade continua este ritmo irresponsável e injusto pode provocar, num curto espaço de tempo, desequilíbrios capazes de pôr em perigo a continuidade da vida sobre a Terra.

Deus elegeu o Homem como seu colaborador na obra da Criação. Deus deu-nos esta Terra, a fim de a cuidarmos com amor, procurando ser féis ao seu projecto Criador. Em nome de Deus, os cristãos devem denunciar os abusos que estão a ser cometidos contra esta Terra bonita, generosa e fecunda. A Terra é um dom do amor de Deus. Somos chamados a colaborar com o Criador na obra da Criação. Por outras palavras, Deus chama-nos a pôr a Terra ao serviço da vida e da dignidade humana.

Ao criar o Homem à sua imagem e semelhança, Deus colocou-o à frente da criação, convidando-o a orientar esta mesma criação segundo o seu projecto Criador (Gn 1, 27-30). Deus pede-nos, portanto, para protegermos a nossa Terra e a cuidarmos com solicitude, a fim de a vida se desenvolver de modo equilibrado e feliz. Destruir a natureza é agir contra Deus e o Homem. A Terra é um dom de Deus para todos os homens e para todas as gerações.

É verdade que cada geração tem o direito de usufruir dos bens da para se realizar e ser feliz. Mas também é verdade que tem o dever de cuidar e estimar a Terra, a fim de a entregar às gerações seguintes como morada generosa, bonita e fecunda que Deus nos deu.

Deus elegeu o Homem como seu colaborador na obra da Criação. Como vemos, os homens de uma geração não são os donos absolutos da Terra, pois este deve permanecer uma fonte geradora de vida e bem-estar para as gerações seguintes. Isto significa que pôr em perigo o equilíbrio do ecossistema é pôr em perigo o futuro Humanidade.

Movidos pela sua fé, os cristãos devem defender o respeito pelo equilíbrio entre a natureza, a utilização dos recursos da Terra e o sentido de solidariedade com as gerações futuras. Nós acreditamos que Deus elegeu o Homem como seu colaborador na obra da Criação. A fidelidade a este chamamento de Deus exige da nossa parte um grande esforço para mantermos viva esta terra que Deus nos deu como morada.


c) Forças Desumanizantes e Fé Cristã

Os seres humanos não podem ignorar os perigos de destruição que estão a pôr em perigo o futuro da Humanidade. Pela primeira vez na História, o Homem tem nas mãos o poder de pôr fim ao projecto humano. Eis alguns dos perigos que ameaçam o futuro da nossa espécie: A destruição do equilíbrio ecológico. O perigo da destruição maciça pelo nuclear. A ameaça cada vez mais real e próxima de destruição de grandes parcelas da Humanidade devido à fome e à falta de água.

Na base de todos estes perigos que ameaçam a sobrevivência está a indiferença perante os valores, tais como a fraternidade, a solidariedade, a justiça e da paz. Esta indiferença perante os valores trouxe consequências graves para as relações humanas, tanto a nível interpessoal, como a nível social ou internacional. É verdade que estes perigos ainda podem ser vencidos através do diálogo e da elaboração de projectos que levem a adoptar medidas capazes de gerar uma nova consciência de justiça, de solidariedade e dos direitos humanos. Se a salvação da Humanidade ainda está nas mãos dos seres humanos, então temos de dizer que se trata de um dever ético para toda a Humanidade.

Só entrando na lógica do amor, os seres humanos podem encontrar condições para sobreviver face aos perigos que ameaçam a Humanidade. Para além das técnicas e competências necessárias para vencer os perigos que nos ameaçam é urgente tomarmos consciência da necessidade de cultivar uma vida espiritual profunda, a qual é um fermento capaz de transformar o mundo.

É urgente aprofundar os sentidos da vida, a fim de a pessoa humana encontrar razões para se empenhar na construção da fraternidade, da justiça e da paz. Quando lhes falta o sentido da vida, as pessoas entram em crise e têm tendência a adoptar atitudes e comportamentos destrutivos. A Vida espiritual é uma fonte inesgotável de sentidos para a nossa vida.

É importante que as pessoas cultivem aptidões e conhecimentos científicos capazes de favorecer o progresso humano. Mas não nos podemos esquecer de que o ser humano deu o salto de qualidade para o espiritual, o qual tem de ser cultivado sob pena de a Humanidade ficar desequilibrada. O crescimento espiritual é uma fonte inesgotável de sentidos de vida e razões para a pessoa se comprometer no sucesso da construção humana.

Os cristãos estão chamados a ser no mundo uma luz que ilumina o sentido da vida, bem como um sal que confere sabedoria à vida e um fermento que ajuda as pessoas a viver de acordo com os valores fundamentais da humanização. Graças à Palavra de Deus que o faz compreender o plano de Deus e à presença do Espírito que o ilumina e consagra, o cristão está chamado a ser evangelizador dos nossos irmãos.

A fé faz do cristão uma pessoa optimista, pois tem consciência de que a vida está cheia de sentido. Graças ao mandamento do amor que Jesus nos deixou, o cristão sabe que o amor é uma razão que vale tanto para viver como para morrer: “É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem Maio amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 12-13).

Graças à sua fé na ressurreição de Cristo e da Humanidade, o cristão é um grito de esperança no mundo. Ele tem a missão de anunciar a Boa notícia da vitória de Cristo sobre a morte, da qual deriva a certeza de que o Homem não está a caminhar para o vazio da morte. A Esperança cristã é uma força poderosa chamada a fazer frente às forças desumanizantes que ameaçam o futuro da Humanidade.


d) História, Humanização e Vida Eterna

Quando olhamos a História tendo pano de fundo a eternidade, o tempo ganha um sentido e uma importância fundamental. À luz da eternidade, a História surge como o ventre em cujo interior emerge a vida pessoal-espiritual, atingindo a sua densidade de Vida Eterna. É na História que a pessoa se compromete na tarefa da sua humanização ou bloqueia este processo em si e nos outros.

À luz da fé, o ser humano é divinizado na medida em que se humaniza no tempo que lhe é dado. De facto, a vida pessoal, por ser espiritual, tem consistência eterna. Vista à luz da eternidade, a vocação fundamental da pessoa humana é realizar-se como pessoa mediante o amor.

Se o tempo nos é dado para construirmos a nossa realidade pessoal e eterna, então o tempo deve ser tomado a sério e aproveitado. Olhando as coisas sob este prisma, as manhãs surgem como um convite a aproveitar o novo dia como mais uma oportunidade para realizarmos no tempo o que seremos eternamente.

Quando olhamos a História com os horizontes da eternidade, o amor ganha sabor a vocação fundamental, pois é por ele que podemos viver o amor neste dia único e irrepetível. Se o vivermos de modo empenhado, a pessoa emerge em cada dia com uma novidade chamada a enriquecer o património definitivo da comunhão universal do Reino de Deus.

Por outras palavras, é hoje o tempo de configurarmos a identidade pessoal que desejamos ser para sempre. Na verdade, a nossa identidade espiritual coincide com o nosso jeito de amar. Comparando a dinâmica da vida eterna à festa de umas bodas, podemos dizer que a pessoa humana “dançará” eternamente o ritmo do amor com o jeito que tiver treinado na história.

É agora, portanto, o tempo de moldarmos a nossa capacidade de comungar com os outros no Reino de Deus. Hoje mesmo podemos reorientar o nosso jeito de conviver na festa da vida eterna, mudando o modo de nos relacionarmos com os demais. Hoje é o dia em que podemos burilar e aperfeiçoar o nosso modo de nos relacionarmos e comungarmos com as pessoas divinas, as humanas e todas as outras que possam fazer parte da Comunhão Eterna da Família de Deus.

Por outras palavras, é agora o tempo de edificarmos a plenitude da vida que ultrapassa a morte. Na verdade, o dia de hoje é importante, pois é um tempo que Deus nos dá para edificarmos o que havemos de ser para sempre.

Deus criou-nos inacabados, a fim de nos irmos realizando no tempo, estruturando assim a nossa história pessoal. Com efeito, nós somos os gestores do nosso tempo, condição indispensável para decidirmos no dia a dia da nossa vida o que seremos ser eternamente. Visto à luz da eternidade, o tempo para os seres humanos não é uma mera sucessão de instantes que se juntam para dar consistência e configuração aos segundos, aos minutos, às horas, aos dias, anos, séculos ou milénios.

Como vemos, o tempo é muito mais do que aquilo que os relógios e os calendários contabilizam. À luz da Palavra de Deus cada dia é para o Homem um “kairós”, isto é, a hora de Deus e a oportunidade de o Homem, orientado pelo Espírito Santo, realizar a pessoa que deseja ser eternamente.

Hoje é o dia em que o Espírito Santo nos interpela e ilumina, a fim de completarmos, em nós e no mundo, a criação de Deus. O maior perigo do dia de hoje é a decisão de matar o tempo, pois isto significa decidir não emergir nem crescer como capacidade de comungar mais com Deus e os irmãos. Compete-nos a nós dar a última palavra sobre a fecundidade do dia de hoje.

Na verdade, neste dia temos a possibilidade de dar um salto qualitativo, conferindo à vida uma densidade nova e, deste modo, enriquecer a nossa plenitude definitiva. As pessoas que a longo da sua vida tomaram o tempo a sério, atingiram uma maior realização pessoal e fizeram a Humanidade avançar.

Estamos a tocar o mistério do ser humano cuja realização é um processo histórico. Deus criou-nos inacabados, a fim de completarmos a sua obra, realizando-nos de modo livre, consciente e responsável. Surgimos na vida com um leque de talentos ou possibilidades que podemos realizar ou não. Realizando-os fazemos emergir a pessoa que vai brotando no nosso íntimo como capacidade de comunhão fraterna.

Hoje é o dia em que podemos realizar as nossas possibilidades ou talentos fazendo emergir o nosso ser pessoal. À medida em que vamos construindo a pessoa que temos como tarefa realizar, o Espírito Santo vai-nos configurado com Jesus e incorporando na Família Divina.

Deste modo Jesus Cristo se torna o primogénito entre muitos irmãos. Eis o que diz São Paulo a este respeito: “Porque àqueles que Deus conheceu desde os tempos primordiais, também os predestinou para serem uma imagem idêntica à do seu Filho, de tal modo que ele é o primogénito de muitos irmãos” (Rm 8, 29).

Se, mediante o amor, nos humanizarmos mais neste dia, é hoje que o Espírito Santo nos configura com Jesus Cristo e nos leva a chamar a Deus “Abba”, isto é, papá (Ga 4, 4-7). No coração do homem configurado com Cristo o amor tem um lugar especial, capacitando-nos para vencermos o egoísmo que é a lei da selva.

O tempo é, pois, o alfobre onde as nossas possibilidades atingem o nível de realizações definitivas. É em génese temporal que emerge a pessoa livre através de decisões, escolhas e opções na linha do amor.

Como sabemos, a pessoa não nasce livre, mas vai-se tornando livre à medida em que se humaniza. A liberdade é a capacidade de se relacionar amorosamente com os outros e de interagir de modo criativo com os acontecimentos sociais e as coisas. A possibilidade de sermos livres é o nosso livre arbítrio, isto é, a capacidade de optarmos pelo bem ou pelo mal. A liberdade emerge como fruto da das opções na linha do amor. De facto, ninguém pode ser livre sem exercitar o seu livre arbítrio. Mas não baste exercitar o livre arbítrio para se tornar livre. Por outras palavras, a liberdade é um processo de libertação, realizado a partir do livre arbítrio.

Ao contrário das pessoas humanas, as pessoas divinas são infinitamente livres. Eis a razão pela qual não têm livre arbítrio ou seja a possibilidade de se tornarem livre. De facto as pessoas divinas não têm a possibilidade de optarem pelo mal. O amor é uma dinâmica de bem-querer que tem como origem a pessoa e como meta a comunhão universal do Reino de Deus. Deus é amor pleno e total diz a Bíblia (1 Jo 4, 7-8). Eis a razão pela qual é o próprio Deus que assume as nossas realizações de amor na comunhão familiar de Deus (Rm 8, 14-17).

Esta dinâmica leva a pessoa a eleger o outro como alvo de bem-querer, aceitá-lo assim como é e agir de modo a facilitar a sua realização e felicidade. Por ser o resultado de um processo de libertação que se concretiza em decisões, e opções de amor, a liberdade é a capacidade de a pessoa se relacionar amorosamente e interagir de modo criativo com os outros. Dizer que a liberdade é um processo de libertação significa que se vai tornando realidade o que em nós começa por ser apenas uma possibilidade.


e) Diálogo Com o Deus da Humanização

Deus Santo,
A Encarnação do Vosso Filho é o sinal mais claro
de que sois o Deus da Humanização.
Na verdade, pelo mistério da Encarnação o divino enxertou-se no humano,
a fim de o optimizar e assumir na própria Família Divina.

Vós bem sabeis que os seres humanos não nascem humanizado.
Além disso, só são capazes de amar depois de terem sido amados pelos outros.
O pecado é sempre uma recusa de amor que empobrece a nossa humanização.
De facto, as recusas de amor dos outros para connosco
empobrecem ou bloqueiam as nossas possibilidades de amar.
Do mesmo modo, as nossas recusas de amor em relação aos outros
empobrecem ou limitam as suas possibilidades de amar.

O pecado é sempre a recusa da pessoa a entrar na dinâmica da humanização
e facilitar a humanização dos outros através do amor.
No que se refere às nossas possibilidades de humanização,
nós começamos por ser o que os outros fizeram de nós.
Do mesmo modo, em relação ao mal, nós começamos por ser vítimas,
ainda antes de sermos culpados.
Por outras palavras, todos nós, ainda antes de sermos pecadores,
somos vítimas do pecado.
Eis a razão pela qual o leque das possibilidades ou talentos
varia tanto de uma pessoa para outra.

Em relação à força desumanizante do pecado,
os seres humanos começam por ser vítimas, ainda antes de serem culpados.
A esta dinâmica interactiva que nos condiciona ainda antes de sermos pecadores,
a nossa fé dá o nome de pecado de Adão ou pecado original.
Começamos por ser vítimas do pecado e, depois,
à medida em que começamos a dizer não aos apelos da humanização,
passamos a ser culpados.

Os apelos da humanização são os próprios apelos do amor.
Na verdade, o amor é a grande razão que vale para viver e morrer.
Por outras palavras, começamos por ser o que os outros fizeram de nós.
É dos outros que recebemos o leque primordial dos talentos,
a matéria-prima de que dispomos para nos humanizarmos.
Depois realizamo-nos ou não a partir da nossa fidelidade aos talentos recebidos,
como Jesus diz no evangelho de São Mateus (Mt 25, 14-30).

Deus Santo,
Humanizar-se é uma tarefa que temos de realizar.
Ninguém a pode realizar por nós.
Mas nós sentimos a nossa fragilidade,
pois são muitas as forças de bloqueio que habitam o nosso coração.

Estas forças manifestam-se em atitudes de cunho negativo:
Atitudes de orgulho, de egoísmo, ganância e falta de atenção
às necessidades dos nossos irmãos.
Na verdade, muitas vezes somos indiferentes e insensíveis
ao clamor dos nossos irmãos.
Há ainda as atitudes de arrogância motivadas
pela fome de poder e vontade de dominar os outros.

Espírito Santo,
Tu está em nós como uma fonte permanente de inspiração.
Com o teu jeito maternal de amar,
vais-nos sugerindo modo de agir em conformidade com a vontade Deus.
Ajuda-nos a ser fieis ao plano de Deus, pois nós sabemos
que a sua vontade coincide rigorosamente com o que é melhor para nós.
Vem dizer a Palavra de Deus no nosso coração, a fim de sabermos discernir
e enveredar pelo caminho da humanização, o único que conduz à divinização.

Dá-nos a capacidade de nos preocuparmos com o bem dos outros,
a fim de vencermos o egoísmo que impede a emergência
do Homem Novo configurado com Cristo.
Ilumina a nossa mente e fortalece o nosso coração,
a fim de fazermos o bem e evitarmos o mal.
Vem com tua ternura maternal e ajuda-nos a moldar o nosso coração
de acordo com o coração de Jesus.

Com a tua força e inspiração também nós podemos dizer
com São Francisco de Assis:
“Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz.
Onde haja ódio que eu semeie o amor. Onde haja injúria que eu difunda o perdão”.
Ajuda-nos a vencer a indolência e dá-nos a força dos profetas,
a fim de não conduzirmos a História para a marcha regressiva da desumanização.
Isto significaria inverter o impulso do Espírito Santo
que insuflaste no barro primordial do qual saiu Adão.

Deus Santo,
Ajudai-me a ser um agente de humanização nesta História
que é tarefa de todos nós!

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