a) E Jesus Venceu a Morte
1- A Visão Bíblica da Morte
2- A Morte na Visão Cristã
2.1 - É Importante Aprender a Viver e a Morrer
2.2 - A Vida Que Vence a Morte
3- Eis como Cristo Venceu a Morte
4- A Acção Ressuscitante do Espírito Santo
b) As Coordenadas da Vida Eterna
c) A Morte e a Assunção de Maria
1- Enquadramento Histórico
2- A Assunção Como Plenitude da Salvação
a) E Jesus Venceu a Morte
1- A Visão Bíblica da Morte
A esperança da ressurreição, no povo bíblico, precedeu o acontecimento de Cristo. Surgiu logo após a experiência dolorosa do exílio (séc. VI a.C.). Com a experiência do sofrimento justos, escravizados no exílio da Babilónia, as coisas não são, afinal, como nós imaginávamos. Nós penávamos que apenas os pecadores seriam sujeitos ao sofrimento. Deus premeia o justo e castiga com sofrimentos o pecador aqui na terra (Juiz 2, 11-15; 3, 7-8: Dt 28; Job 11, 14; 15, 15; 18, 21; Prov 3, 2ss; 10, 23; 10, 26; 4, 10-22; 9, 11). Após a morte, justos e pecadores terão sorte igual: habitar o Sheol, isto é, a mora dos mortos.
A morte física não destrói o ser humano. Com efeito, após a morte, os seres humanos subsistem, mas estão em estado de morte. Para o pensamento bíblico, o homem só vive na medida em que convive. Quando Deus criou o Homem do barro, baixou-se para lhe dar um beijo. Nesse momento, o hálito vital de Deus, o Espírito Santo, passou para o interior do Homem e este tornou-se um ser vivente. O Espírito Santo é o princípio animador de relações e o vínculo de comunhão com Deus e os irmãos.
O momento da morte, segundo o pensamento hebraico antigo, é decidido por Deus. Por outras palavras, a morte acontece no momento em que Deus decide retirar o seu hálito vital, o Espírito Santo, do interior do ser humano. O homem subsiste, mas está em estado de morte, pois está incapacitado de se relacionar, conviver e comungar com Deus e os outros. O reino dos mortos situa-se debaixo das águas inferiores (Gn 37, 25; Dt 32, 22; 1Rs 2, 6; Prov 9, 18; Job 10, 21ss; Sal 19, 18). Os mortos ficam reduzidos a sombras de vida no reino das sombras (Is 14, 9).
Com Cristo ressuscitado, o dom messiânico do Espírito Santo é total. Não só encheu a terra inteira, mas foi mesmo ao Sheol para revitalizar as sombras de vida inertes e vazias que lá estavam. Este conceito de Sheol está muito próximo do nosso conceito de inferno, a situação da pessoa reduzida a si, isto é, sem possibilidade de encontro e comunhão. A diferença entre a noção de Sheol e de inferno é que as pessoas, no Sheol não sofriam. A nossa noção de inferno implica o sofrimento da pessoa que, por decisão própria, se estruturou em estado radical de solidão. Para se possuir, se conhecer e valorizar, a pessoa precisa da mediação das relações amorosas.
O sofrimento do estado de inferno, portanto, radica no facto de o ser humano ser uma pessoa estruturada para a comunhão. A pessoa que decidiu pelo estado de inferno está reduzida a si. Ora a plenitude da pessoa não está em si, mas na reciprocidade da comunhão. Por outras palavras, a pessoa que fica em estado de inferno está profundamente mutilada.
A experiência do exílio leva os hebreus a verificar que muitos justos morreram exilados e ficaram privados do prémio merecido pela sua justiça. Começa deste modo a nascer a ideia da ressurreição, a fim de os justos poderem ser recompensados pela sua justiça. O profeta Isaías tenta responder a esta questão, dizendo que Deus ressuscitará os justos e dar-lhes-à a recompensa do seu trabalho pelo bem (Is 53, 10-1; Dan 12, 2ss; 2Mac 7, 9-23; 12, 44ss; 14, 46). Os Livros Sapienciais, por influência da filosofia pagã dos gregos, falarão da imortalidade feliz da alma dos justos junto de Deus (Sab 3, 7ss; 3, 14; 4, 2; 5, 16; 6, 19; Sal 48).
No tempo de Jesus a esperança da ressurreição ainda não era partilhada por todos os judeus. Isto quer dizer que a doutrina da ressurreição não era um dogma da fé judaica e, portanto, não era universalmente aceite: “Os saduceus negam a ressurreição bem como a existência dos anjos e espíritos. Os fariseus ensinam precisamente o contrário (Act 23, 8; cf. Mt 22, 23; Mc 12, 18; Lc 20, 27).
Apesar da crença na ressurreição, nenhum judeu a esperava antes do fim do mundo: “Eu sei que há-de ressuscitar no último dia” (Jo 11, 24). No fim do mundo, os justos, ao ressuscitar, serão retribuídos pelo bem que fizeram: “Serás feliz por eles (os pobres) não terem com que te retribuir. Ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos» (Lc 14, 14; cf. Jo 5, 29).
Eis a razão pela qual os discípulos de Jesus nunca poderiam esperar uma ressurreição imediata de Jesus. A morte de Cristo foi vivida por eles como sinal de um fracasso total. Após a experiência pascal, apercebem-se de que os últimos tempos, isto é, a fase dos acabamentos humanos, estão inaugurados. Ressurreição de Jesus, portanto, é a certeza e a garantia da nossa: “Se pregamos que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou» (1Cor 15, 12-13).
2- A Morte na Visão Cristã
2.1 - É Importante Aprender a Viver e a Morrer
O Acto de morrer é, na realidade, a derradeira possibilidade de renascer. A consciência da nossa morte ilumina o sentido que a vida tem. Os animais não sabem que irão morrer mas também não têm capacidade de criar sentidos para viver. Com efeito, os sentidos da vida e da morte caminham a passo igual. O horizonte mais amplo do sentido que a vida tem acontece na fase terminal. Nessa altura descobrimos que há causas que valem para morrer que valem igualmente para viver: o amor. Jesus disse que o sentido máximo do amor é dar a vida pelas pessoas que amamos. Quem ama até à morte nasce para a plenitude da vida. Felizes dos que gastam a vida pelas causas do amor. Para estas pessoas, a morte final já não tem o sentido de uma tragédia sem saída. De facto, souberam ir morrendo todos os dias ao homem egoísta que há em todos nós.
Este homem egoísta é o homem velho que torna a morte uma tragédia. Morrer para dar vida é a maneira mais perfeita de rebentar os muros da própria finitude. O Homem Novo não pode nascer sem que o velho vá morrendo. Não nasce a vida nova sem que a velha se vá gastando pelas causas do amor. Felizes dos que sabem ir morrendo, dando vida aos outros. Na verdade, há seres humanos que estão a renascer todos os dias para a plenitude da vida. São as pessoas que sabem morrer em cada dia ao egoísmo que há nelas.
Em geral, as pessoas, ao tomarem consciência da proximidade da morte, sentem-se mais profundamente chamadas a gastar a vida pelo amor. Na verdade, é o amor torna fecunda a vida das pessoas. Por isso a consciência da proximidade da morte é um apelo a amar mais plenamente.
Morrer... Parto fundamental para o nascimento definitivo. Convite a criar sentidos para viver. À luz da fé, a morte surge como o rebentar da casca do ovo em cujo interior está a germinar o pintainho, a interioridade pessoal e espiritual. Por ser espiritual, a nossa interioridade pessoal não cai sob a alçada da morte. O nosso ser exterior ou individual acaba no cemitério. Entra nos circuitos físicos e químicos da natureza. A nossa interioridade pessoal-espiritual, pelo contrário, entra na plenitude da comunhão universal. A morte é a porta para esta entrada definitiva. Sabemos que não há ressurreição sem morte.
Felizes são as pessoas que sabem aproveitar a vida presente para construir a vida pessoal espiritual. A razão da nossa vida na história não é apenas prolongar a vida mortal, mas construir a vida eterna. De facto, apenas o nosso ser interior, por ser pessoal e espiritual, tem densidade de vida eterna. Vista a esta luz, a morte é condição para atingirmos a nossa glorificação com Cristo Ressuscitado.
Graças ao mistério da Encarnação, a salvação já está ao nosso alcance! O Filho de Deus fez-se nosso irmão, a fim de sermos membros da família divina. Mediante esse parto derradeiro que é a morte, nascemos para a vida em plenitude. Nascemos definitiva e plenamente para Deus. A morte é a última possibilidade que nos é dada para conquistarmos a vida eterna. Ao anular o nosso ser exterior ou individual, a morte possibilita a libertação definitiva do eu interior, pessoal e espiritual. Esta é a condição para entrarmos na intimidade de Deus, Família primordial. A morte não mata a pessoa. Apenas destrói o nosso ser exterior, o qual é individual, biológico, psíquico, linguístico, rácico e espácio-temporal.
Cristo Ressuscitado tornou-se para nós a Árvore da Vida. É ele que nos oferece o fruto que nos proporciona a vida eterna. O nome deste fruto é Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade Divina. Com seu jeito maternal de amar, O Espírito Santo configura-nos interiormente com Cristo e introduz-nos na Família Divina (Rm 8, 14-17; Ga 4, 4-7). Somos gerados de novo pelo Espírito Santo. Jesus insistiu que temos de nascer de novo pelo Espírito Santo.
Graças a Cristo ressuscitado, voltamos a ter acesso ao fruto da vida eterna do qual Adão nos tinha privado (cf. Gn 3, 22-24). O Paraíso, fechado por Adão, foi reaberto para todos nós em Jesus Cristo. De Adão, homem tirado da terra, veio o nosso ser individual, exterior e mortal. Do Novo Adão, Cristo ressuscitado, veio o Homem Novo, espiritual e membro da Família de Deus.
São Paulo diz que Cristo Ressuscitado é o Novo Adão (Rm 5, 17-19). Ele é a cabeça da restaurada. É o medianeiro da reconciliação universal com Deus (2 Cor 5, 17-19). Por Ele veio a plenitude humana, isto é, o Homem assumido e integrado na Comunhão Universal do Reino de Deus. E deste modo somos organicamente inseridos na comunhão da Santíssima Trindade.
Eis o novo nascimento que culmina na nossa divinização. Mas só pela morte entramos nesta plenitude da vida eterna. O Espírito Santo, fruto precioso da Árvore da Vida, é o Espírito de Cristo, pois vem em nome de Cristo inserir-nos na Comunhão Familiar de Deus. Ao morrer, Cristo destruiu a nossa morte. Ao Ressuscitar, restaurou a nossa vida, incorporando-a na comunhão familiar da Santíssima Trindade.
2.2 - A Vida Que Vence a Morte
A curva da vida a caminhar para a morte é implacável e impõe-se a todos os seres constituídos pela vida natural. Os passos fundamentais desta curva a orientar-se para a morte são: nascimento, crescimento, envelhecimento e morte. Apenas a vida pessoal, por ser espiritual, escapa à ditadura implacável desta curva da vida a caminhar para a morte.
O ser humano está a realizar-se como pessoa. Realizar-se como pessoa implica uma série de relações, compromissos e realizações marcadas com a densidade da fraternidade e amor. A humanização dos seres humanos tem uma vertente exterior, isto é, social e histórica e outra espiritual ou interior. Crescer como interioridade pessoal-espiritual significa emergir progressivamente como interioridade livre, consciente, responsável, única, original, irrepetível e capaz de interagir amorosamente com as outras pessoas, sejam humanas ou divinas.
A este nível, a pessoa humana transcende a curva da vida natural a caminhar para a morte. Por outras palavras, a nível pessoal-espiritual não estamos talhados para terminarmos no vazio da morte. Nascemos para renascer mediante o Espírito Santo, diz o evangelho de São João (Jo 3, 3-6). Renascemos na medida em que emergimos como interioridade pessoal. Este renascimento acontece mediante relações de amor e comunhão.
A comunhão com os irmãos culmina na comunhão familiar da Santíssima Trindade. Nascemos para entrar na dinâmica da humanização cuja lei é: emergência pessoal mediante relações de amor e convergência para a Comunhão Universal do Reino de Deus. Emergir como pessoa significa crescer em densidade espiritual e capacidade de interagir com os outros em dinâmica de comunhão. A plenitude da pessoa, portanto, não está em si, mas na comunhão com os outros.
O ser humano está a realizar-se em duas dimensões: a exterior ou eu individual e a interior que é o eu pessoal-espiritual. A nossa interioridade espiritual emerge no interior do eu individual como o pintainho dentro do ovo. Virá um dia em que o ovo vai rebentar e o pintainho nasce para a comunhão universal. A morte é este rebentamento da casca do ovo, condição para que o pintainho possa atingir a sua plenitude na Comunhão Universal do Reino de Deus.
Cada pessoa é um ponto de encontro através do qual podemos entrar em comunhão com a Humanidade e a Divindade. É como um “link” através do qual podemos conectar com Deus e o Homem. A maneira correcta de abrir este “link” é abeirar-nos dele com respeito pela dignidade da pessoa humana e veneração pela sua condição de filho amado de Deus. O drama está quando o “link” se enrosca sobre si mesmo. Neste caso, deixa de ser uma mediação para, através dele, encontrarmos Deus e o Homem.
Nascemos para renascer, emergimos como pessoas a convergir para a comunhão. A interioridade pessoal cresce em dinâmica de relações e tem densidade de vida eterna. A Divindade é pessoas e a Humanidade também. A plenitude não é constituída por pessoas isoladas, mas pela comunhão das pessoas. Por isso existe uma só Divindade, apesar de serem três pessoas. Do mesmo modo só existe uma Humanidade, apesar de serem biliões as pessoas que a constituem.
Fechada em si e separada da dinâmica da comunhão, a pessoa está estado de perdição. Apenas em relação com os outros a pessoa se possui e encontra a sua plena identidade. Isolada da comunhão, a pessoa fica em estado de inferno. Somos pessoas realizadas na medida em que temos um coração capaz de eleger o outro como alvo de bem-querer. Com efeito, a pessoa tem a capacidade de eleger os outros como irmãos, para lá dos laços do sangue.
Foi assim que as pessoas divinas nos elegeram como membros da sua Família: filhos em relação a Deus Pai e irmãos em relação a Deus Filho. O Espírito Santo é a pessoa que anima as relações familiares entre Deus e o Homem. Por isso o Filho de Deus encarnou pelo Espírito Santo. As pessoas humanas não são iguais às divinas em densidade e plenitude, mas são-lhe proporcionais. Por isso pode acontecer comunhão entre o Homem e Deus.
As pessoas humanas são resultado de um processo de realização histórica. A nossa identidade pessoal é histórica. Para nos dizermos temos de contar uma história. Seremos eternamente segundo nos realizemos agora. As pessoas divinas, pelo contrário, são uma emergência permanente de perfeição pessoal infinita em total convergência de comunhão amorosa.
Não nascemos feitos, pois nascemos para renascer. O nosso ser exterior ou individual mede-se por quilos, densidade de emoções e propriedades adquiridas. É avaliado pelo que tem. O interior pessoal-espiritual, pelo contrário, mede-se pela capacidade de amar e comungar. Não vale pelo que tem mas pelo que é. É a nossa identidade definitiva. De facto, dançaremos eternamente o ritmo do amor com o jeito com que treinarmos agora.
Nascemos para emergir como interioridade livre, consciente e responsável. Estamos talhados para a comunhão com Deus. Por outras palavras, a plenitude da Humanidade acontece mediante a assunção ou incorporação na comunhão com a Divindade. Eis o sentido desta fome de renascer que levamos connosco: Transcender os limites do nosso ser individual e emergir como eu pessoal espiritual.
O nosso ser individual está votado à morte. O seu fim é o cemitério. É como a casca do ovo que, depois de o pintainho ter nascido, entra nos circuitos físicos e químicos da Natureza. Apenas a nossa interioridade pessoal, por ser espiritual e proporcional a Deus, pertence à esfera da transcendência. O sentido profundo da existência não é apenas prolongar a vida mortal, mas construir a vida imortal. Eis a razão pela qual nascemos para renascer. Dos pais recebemos a vida individual, isto é, o nível biológico e psíquico do nosso ser. Por isso temos de renascer pelo Espírito (Jo 3, 3-6).
Na medida em que emerge a nossa interioridade espiritual, passamos a pertencer à galáxia da vida personificada. É este o nível da vida eterna constituída pela comunhão das pessoas divinas, humanas e todas as outras que possam existir. O nosso ser exterior ou individual acaba no silêncio da solidão cósmica. O nosso ser interior, por ser pessoal, está chamado à plenitude amorosa da Comunhão Universal do Reino de Deus.
No mais íntimo do nosso ser, portanto, está a emergir esse núcleo espiritual que se constitui de modo gradual e progressivo em densidade pessoal livre, consciente, responsável, único, original, irrepetível e capaz de comunhão amorosa. Eis o que significa termos sido criados à imagem e semelhança de Deus e estarmos a caminhar, não para o cemitério, mas para a comunhão dos ressuscitados com Cristo.
É neste núcleo pessoal e espiritual que habita o Espírito Santo como num Templo. É este o coração do nosso ser onde foi derramado o amor de Deus pelo Espírito Santo que nos é dado (Rm 5, 5). É neste santuário construído não pelo homem mas por Deus que o Espírito Santo torna presente e eficaz a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e o Amor de Deus nosso Pai.
Renascer é abrir-se à dinâmica da Salvação que Deus nos oferece em Cristo ressuscitado. A vitória da vida sobre a morte, portanto, implica a nossa união orgânica com Cristo ressuscitado e através dele e com ele a comunhão eterna com Deus: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive e eu vivo pelo Pai, também aquele que me come, viverá por mim” (Jo 6, 56-57). À pessoa compete a tarefa da sua humanização, isto é, do seu crescimento espiritual. O Espírito Santo, com seu jeito maternal de amar, diviniza e introduz na comunhão da Santíssima Trindade, aquilo que a pessoa foi capaz de emergir espiritualmente.
3- Eis Como Cristo Venceu a Morte
A Carta aos Hebreus, fazendo alusão à oração de Jesus no jardim das Oliveiras, diz que Cristo fez orações àquele que o podia libertar da morte e foi atendido, devido à sua piedade (Heb 5, 7). Segundo este texto, Deus libertou Jesus da morte ressuscitando-o. Esta libertação deve ser entendida como algo simultâneo ao próprio acto de morrer.
Por outras palavras, Jesus não esteve um só momento sob o domínio da morte. A vitória de Cristo sobre a morte aconteceu pela acção do Espírito Santo de modo simultâneo com o próprio suceder da morte. A primeira Carta de Pedro diz que Jesus não podia permanecer sob o domínio da morte, pois nele estava o Espírito Santo, a dinâmica da ressurreição. Jesus é a própria ressurreição como diz o Evangelho de João: “ Jesus disse a marta: Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido viverá” (Jo 11, 25).
Como o grupo apostólico só fez a experiência do ressuscitado ao terceiro dia, o autor desta carta diz que Jesus nesse tempo não esteve sob o domínio da morte. Nesse tempo intermédio entre a ressurreição e as aparições, Jesus esteve profundamente dinâmico, como diz a Escritura. Foi à morada dos mortos levar o Evangelho e ressuscitar os que estavam sob o domínio da morte (1 Pd 3, 18-19).
Esta dinâmica ressuscitante é obra Espírito e acontece, graças à união orgânica que existe entre nós e Jesus. O mistério da Eucaristia exprime de modo admirável esta interacção ressuscitante e salvadora. Jesus, no evangelho de João, lê esta dinâmica ressuscitante de Cristo na Humanidade na óptima da união orgânica e vital que existe entre Cristo e Deus Pai: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive e eu vivo pelo Pai, também quem me come viverá por mim” (Jo 6, 56-57).
Como já dissemos, a ressurreição de Jesus foi um acontecimento progressivo a acontecer em simultâneo com o acto de morrer. O mesmo acontece com a Humanidade depois da ressurreição de Cristo. À medida em que, no alto da cruz, Jesus ia morrendo, a ressurreição ia acontecendo, pela acção recriadora e glorificante do Espírito Santo.
Quando Jesus acabou de morrer estava totalmente ressuscitado. Enquanto a morte ia destruindo que no homem é destruído pela morte, o Espírito Santo, com seu jeito maternal de amar, ia recriando e incorporando na comunhão divina o que tinha densidade para ser assumido e glorificado na Família da Santíssima Trindade. Não existe, portanto, distância temporal entre morte e ressurreição em Jesus Cristo. À medida em que ia morrendo, o Espírito Santo ia realizando a vitória sobre a morte.
Por seu lado, a ressurreição de Cristo inicia a plenitude dos tempos, isto é, a fase dos acabamentos do projecto humano. Por outras palavras, no momento da morte e ressurreição de Cristo, inicia-se a ressurreição da Humanidade. Os que tinham vivido antes de Cristo entram com ele na plenitude da vida eterna, como Jesus garantiu ao Bom Ladrão: “Em verdade te digo, hoje mesmo estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Mateus exprime esta mesma verdade dizendo que, no momento em que Jesus morre, os túmulos começam a abrir-se e os justos a ressuscitar (Mt 27, 52-53).
O evangelho de São João, referindo-se a este momento, chama-lhe a “A HORA DE JESUS” ou “A MINHA HORA”. Esta hora, na perspectiva do quarto evangelho, é o momento da glorificação de Jesus Cristo (Jo 7, 34; 8, 21-22; 14, 2-4). A Hora é o momento de Cristo subir para onde estava antes, referindo-se à presença eterna do filho de Deus junto do Pai (Jo 6, 62). É o momento da difusão do Espírito Santo (Jo 16, 7-8; 7, 37-39).
Em relação à morte cruel sofrida por Jesus, temos de dizer com toda a clareza que, aquilo que agradou a Deus não foi essa morte bárbara e cruel, mas a fidelidade total de Jesus que, apesar de ver que os inimigos o iam matar, não se desdisse. Jesus foi incondicionalmente fiel à vontade do Pai como ele mesmo declarou muitas vezes: “O meu alimento é realizar a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo 4, 34). E ainda: “O mundo há-de saber que amo o pai e faço como o pai me ordenou” (Jo 14, 31).
A vontade de Deus Pai, diz São Paulo, consiste em que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1 Tim 2, 4). Jesus, no evangelho de João diz que não procurava a sua vontade, mas a vontade daquele que o enviou (Jo 5, 30). A partir do acontecimento da morte-ressurreição de Jesus, a dinâmica ressuscitante do Espírito Santo está plenamente activa na génese humana. A ressurreição implica assunção e incorporação da pessoa humana na Família de Deus. Esta acção está em processo, graças à presença dinâmica do Espírito Santo no coração das pessoas.
A ressurreição é algo que só acontece após a morte e ressurreição de Jesus e pressupõe, naturalmente, o mistério da Encarnação ou seja, o enxerto do divino no humano, a fim deste ser divinizado. Ressuscitar é entrar na vida eterna após o acontecimento da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Ressuscitamos porque temos uma dimensão espiritual.
A ressurreição não significa restauração biológica ou recuperação do que no homem é mortal. Mas implica a recuperação da identidade histórica da pessoa na Comunhão com as outras pessoas, humanas, divinas ou outras que possam existir. A nossa identidade histórica é o jeito de amar que fomos adquirindo ao longo da história mediante as nossas decisões, opções, escolhas e atitudes de amor para com os outros.
No acto de morrer, o Espírito Santo restaura, assume e glorifica a identidade da pessoa humana na plenitude da comunhão universal da Família de Deus. A salvação, portanto, é integração das pessoas na comunhão da Santíssima Trindade. Eis o que diz São Paulo na Carta aos Gálatas: “Mas quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adopção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho que clama “ABBA”, Papá. Deste modo já não és escravo mas filho e, se és filho, és herdeiro pela graça de Deus” (Gal 4, 4-7).
Na carta aos Romanos, São Paulo insiste de modo ainda mais explícito que a salvação acontece pela acção do Espírito Santo em nós: “Todos os que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8, 14). omo dissemos acima, a divinização da humanidade só podia acontecer pelo mistério da Encarnação, isto é, pelo enxerto do divino no Humano. Mas este enxerto só atingiu as coordenadas da universalidade pelo acontecimento da morte e ressurreição de Jesus Cristo.
4 – A Acção Ressuscitante do Espírito Santo
Segundo o pensamento Bíblico, a ressurreição é obra do Espírito Santo. A morte acontece no momento em que Deus retira do interior do ser humano o hálito da vida, isto é, o Espírito Santo. A ressurreição, portanto, acontecerá quando o Espírito Santo descer á morada dos mortos e habitar de novo o coração dos que estão na morada das sombras. is a razão pela qual os cristãos afirmam no credo que Jesus, ao morrer e ressuscitar, foi à morada dos mortos, a fim de lhes comunicar o Espírito Santo. Nesse momento os túmulos abrem-se e os santos, isto é, os justos ressuscitam (Mt 27, 52-54). Por outras palavras, Jesus não foi ao Sheol como morto, mas como vitorioso sobre a morte.
Depois volta para aparecer aos seus discípulos e comunicar-lhes também o Espírito Santo, tal como faz aos habitantes da morada dos mortos. Deste modo, o sopro vital de Deus difunde-se sobre a humanidade, iniciando a dinâmica da ressurreição universal: “Subitamente ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento” (Act 2, 2).
Os discípulos vêm nisto a realização das antigas profecias: “Nos últimos dias, diz o Senhor, derramarei o Meu Espírito sobre toda a criação (...). Os meus servos e servas, sobre os quais, nesses dias, derramarei o meu Espírito, hão-de profetizar” (Act 2, 17-18). É na alegria e na força do Espírito Santo que os discípulos testemunham a ressurreição (Act 5, 32).
O Espírito é a nascente da Vida Nova que germina como Vida Eterna: “A água que eu lhe der tornar-se-á, no seu interior, uma nascente de água a jorrar para a vida eterna” (Jo 4, 14b). “Jesus falava do Espírito Santo que havia de receber os que nele acreditassem. Com efeito, o Espírito ainda não tinha vindo por Jesus não ter sido ainda ressuscitado e glorificado (Jo 7, 39). O Espírito Santo realiza em nós a vitória plena sobre o pecado e a morte: “A lei do Espírito de vida libertou-me da lei do pecado e da morte” (Rm 8, 2). Os que aceitam Cristo unem-se a Ele e passam a participar da Sua ressurreição fazendo um com Ele (1Cor 12,13).
O Espírito Santo vai forjando em nós o homem interior, pessoal-espiritual, que será assumido e incorporado na família de Deus: “Ainda que em nós se destrua o homem exterior, o interior renova-se diariamente” (2Cor 4, 16). É nisto que consiste o nascer de novo pelo Espírito, diz o evangelho de João (Jo 3, 6). Este nascimento lava consigo a dinâmica da ressurreição e da glorificação: “Todos nós, com a cara descoberta e reflectindo a glória do Senhor como num espelho, somos transformados de glória em glória. Somos configurados com a imagem de Cristo que reflectimos de modo cada vez mais resplandecente, pela acção do Espírito do Senhor» (2Cor 3, 18).
É este homem interior que toma parte na plenitude da comunhão universal dos ressuscitados: “Semeia-se corpo natural e ressuscita-se corpo espiritual. Se há corpo natural, também existe corpo espiritual. O primeiro homem, Adão, foi feito um ser vivente. O último Adão tornou-se Espírito vivificante. Mas não é o espiritual que vem primeiro. Primeiro vem o natural. O espiritual vem depois» (1Cor 15, 44-46a). É este homem pneumático, pessoal-espiritual, que se torna filho de Deus e herdeiro do Reino de Deus com Cristo (Rm 8, 15-17; Gal 4, 5-7). Ao formarmos uma unidade pneumática com Cristo, tornamo-nos corpo de Cristo: “Vós sois corpo de Cristo e seus membros, cada um na parte que lhe toca” (1Cor 12, 27).
Tudo isto se deve à diversidade da acção do Espírito Santo nos crentes: “Há, pois, diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. A manifestação do Espírito é dada a cada um para proveito de todos” (1Cor 12, 4-7).
Como dinamismo ressuscitante, o Espírito Santo foi comunicado à Humanidade apenas depois de Cristo ter sido ressuscitado. Como sabemos, o Espírito Santo é uma pessoa. Ninguém pega numa pessoa para a dar a outra como se de uma coisa se tratasse. Quando dizemos que Cristo ressuscitado nos comunica o Espírito ressuscitante, queremos dizer que Jesus ressuscitado, homem igual a nós, mas em coordenadas de plenitude e universalidade nos dá a possibilidade de, através dele, interagirmos com o Espírito Santo de modo intrínseco (Jo 7, 37-39).
Por outras palavras, é por Jesus Cristo ressuscitado que somos incorporados na plenitude dos ressuscitados, graças à ternura maternal do Espírito Santo: “Quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus (...) Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus. O que nasce da carne é carne. O que nasce do Espírito é espírito. Não te admires de eu te dizer: tendes de nascer de novo» (Jo 3, 3-7).
Com Cristo ressuscitado foram inaugurados os últimos tempos. Teve início a fase dos acabamentos, isto é, começou a dinâmica da ressurreição. Com Cristo ressuscitado a história humana ganhou uma nova dimensão: a dinâmica pascal que é o processo da divinização do Homem. A Humanidade está já em processo de ressurreição no Espírito e as pessoas, no momento da sua morte, ficam em plenitude de ressuscitadas.
A incorporação na comunhão da Família divina acontece como assunção, plenificação, divinização e incorporação na comunhão das pessoas divinas. Pela qualidade da acção da vida se conhece e manifesta a sua densidade e qualidade. Quando o Messias vier, anunciavam os profetas, a difusão do Espírito proporcionará a capacidade de interagir em densidade nova com o Senhor Deus. Era esta Vida Nova no e com o Espírito Santo que os profetas anunciaram.Graças a esta interacção nova com o Espírito Santo, a Humanidade é reconciliada com Deus, pois o Senhor concede a todos os homens o perdão e a reconciliação (Jer 31, 31-34).
São Paulo diz que os que estão em Cristo ressuscitado são uma nova criação. Tudo isto é realizado por Deus que nos reconciliou consigo, não levando mais em conta os pecados dos homens (2 Cor 5, 17-19). Este não levar mais em conta os pecados dos homens quer dizer que, na Nova Aliança, Deus não condena ninguém. As pessoas que vão para a morte eterna condenam-se por sua própria decisão.
b) As Coordenadas da Vida Eterna
No plano de Deus, a Salvação tem como meta a incorporação da Família Divina. As três pessoas divinas, os biliões de pessoas humanas e todas as outras que possam existir neste Universo quase infinito, formam a Comunhão Universal do Reino de Deus. Nesta comunhão cada pessoa é um ponto de encontro e uma possibilidade de comunhão amorosa para as outras pessoas.
Por estar em coordenadas de universalidade e em estado de plenitude, as aspirações das pessoas têm realização imediata. Por outras palavras, no Reino de Deus, as aspirações de encontro, diálogo e comunhão de uma pessoa tornam-se imediatamente realidade. Não devemos esquecer que, no Reino de Deus, a pessoa está assumida e incorporada na comunhão universal dos santos cujo coração é a comunhão da Santíssima Trindade.
Na plenitude da vida a pessoa está realmente presente a tudo e a todos. Não por se deslocar a velocidades superiores à da luz, mas porque os desejos do seu coração têm emergência e realização simultâneas. Tudo isto acontece dentro da organicidade e dinamismo da comunhão universal. ma pessoa que se tenha excluído da comunhão universal não se encontra nem encontra ninguém, pois está fora das coordenadas da comunhão universal. Demos um exemplo: imaginemos a comunhão universal do Reino de Deus constituída por biliões e biliões de pessoas.Uma pessoa, que aspire encontrar-se em interacção dialogante e amorosa com outra pessoa não precisa de andar a buscar essa pessoa no meio de uma multidão incontável.
Como vimos acima, as aspirações da pessoa tornam-se realidade na medida em que emergem no seu coração. Enquanto está em realização na História, o ser humano habita as coordenadas do espaço e do tempo. Deus, pelo contrário, não habita a espacio-temporalidade, pois está em coordenadas de omnipresença amorosa.
Deus está presente ao universo mediante uma relação de criação amorosa. Com efeito, no início do Universo estava o amor, pois Deus é amor. O amor é um impulso de bem-querer que tem como origem a pessoa e como meta a comunhão. Como sabemos, Deus é uma comunhão amorosa de três pessoas. E o Universo surge a partir do diálogo e comunhão amorosa da Trindade Divina. Não como um prolongamento necessário, mas como a realização de um projecto que brotou do diálogo amoroso das pessoas divinas. E Deus imprimiu as suas impressões digitais no tecido da criação. Eis a razão pela qual a Humanidade, por ser constituída por pessoas, atinge a sua plenitude na comunhão com a Divindade.
Mediante a morte, o ser humano liberta-se das coordenadas biológicas, psíquicas, rácicas, linguísticas e espacio-temporais. À luz da Fé, a morte surge realmente como o parto final através do qual a pessoa humana atinge a sua plenitude, isto é, a comunhão universal nas coordenadas de Deus. Pela incorporação na comunhão familiar da Santíssima Trindade, o ser humano é divinizado. A divinização, portanto, não acontece como coisa individual, mas como resultado da assunção pessoal na comunhão humana universal.
Esta incorporação na comunhão divina assenta sobre dois pilares fundamentais: a Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e a ressurreição de Jesus Cristo. Pela encarnação, o divino enxerta-se no humano em Jesus Cristo. Como resultado deste enxerto, todos os seres humanos ficam com a possibilidade de se tornarem membros da família divina: “Mas, a quantos o receberam, aos que nele crêem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram dos laços do sangue, nem dos impulsos da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus. E o Verbo encarnou e habitou entre nós” (Jo 1, 12-14).
Pela ressurreição de Cristo, a Humanidade é divinizada pelo Espírito Santo: “No último dia, o mais solene da festa, Jesus, de pé, bradou: “Se alguém tem sede venha a mim; e quem crê em mim que sacie a sua sede! Como diz a Escritura, hão-de correr do seu coração rios de Água viva”. Jesus disse isto referindo-se ao Espírito Santo que iam receber os que cressem nele. Com efeito, o Espírito Santo ainda não tinha vindo em virtude de Jesus não ter sido ainda glorificado” (Jo 7, 37-39).
O Espírito actuava no mundo desde a criação do homem. Foi a comunicação primordial do Espírito Santo que fez do Homem um ser vivente, diz o livro do Génesis (Gn 2, 7). Mas o Senhor ressuscitado comunica o Espírito de maneira divinizante, isto é, de forma intrínseca, de tal modo que o Espírito Santo faz de nós um todo orgânico com Cristo. Jesus é a cepa da videira, diz o evangelho de João, e nós somos os ramos que recebem a seiva vital dessa cepa (Jo 15, 1-8).
São Paulo diz esta mesma verdade mas com outro exemplo: nós somos os membros de um corpo cuja cabeça é Jesus Cristo (1 Cor 10, 17; 12, 27). E isto acontece pelo Espírito Santo: “De facto, fomos baptizados num só Espírito, a fim de formarmos um só corpo tanto os escravos como os homens livres, todos bebem de um só Espírito” (1 Cor 12, 13).
O Espírito Santo, diz Paulo, é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5). Como ternura maternal de Deus e princípio animador de relações, o Espírito Santo confere dinamismo amoroso à nossa relação familiar com Deus. Graças a esta acção dinâmica do Espírito Santo, somos acolhidos por Deus Pai como filhos e por Deus Filho como irmãos.
Eis o que diz São Paulo a este propósito: “De facto, todos os que são conduzidos pelo Espírito Santo são filho de Deus. Vós não recebestes um espírito que vos escravize. Pelo contrário, recebestes o Espírito Santo que faz de vós filhos adoptivos. É por este Espírito que clamamos “Abba”, ó pai. O próprio Espírito Santo dá testemunho no mais íntimo do nosso espírito de que somos realmente filhos de Deus. Ora, se somos filhos de Deus, somos também herdeiros: herdeiros de Deus Pai e co-herdeiros com Cristo” (Rm 8, 14.17). ó um amor infinito e incondicional era capaz de sonhar um projecto com esta ternura e beleza em favor da Humanidade!
c) A Morte e a Assunção de Maria
1- Enquadramento Histórico
Nunca passou pela cabeça dos Santos Padres que os cristãos pudessem, um dia, duvidar da morte de Maria. Isto compreende-se, pois nunca lhes passou pela cabeça que Maria não participasse da condição de Adão. Como Adão, diz S. Agostinho, Maria teve de saldar a divida do pecado original através da morte. O seu filho, pelo contrário, morreu para destruir o pecado [Comm. in Ps. 34, 3].
Este era o pensar comum dos Santos Padres. A Teologia posterior, baseando-se nos evangelhos apócrifos ou pseudo evangelhos e movida por uma devoção desvinculada das fontes bíblicas, vai afirmar que Maria não morreu. Os Apócrifos ou pseudo evangelhos inspiradores desta distorção são sobretudo o conjunto de escritos conhecidos como “Trânsito da Bem-aventurada Virgem Maria”. Trata-se de uma colectânea de textos que relatam uma variedade enorme de prodígios relacionados com os últimos momentos de Maria.
Naturalmente que se trata de pura imaginação devocional. Estes escritos afirmam que Maria não morreu. Ao aproximar-se o tempo de sair da terra, aparece-lhe o Seu filho que a previne da proximidade da passagem para a plenitude da glória. Poucos momentos antes da sua passagem para a glória, os apóstolos são transportados das diversas partes do mundo onde estavam a pregar e encontram-se miraculosamente todos reunidos junto do leito de Maria.
A seguir acontecem vários milagres para indicar a passagem de Maria para junto do Seu filho. A passagem de Maria acontece sob a forma de morte aparente. Como os discípulos pensam que Maria está morta, sepultam-na no Jardim das Oliveiras. Em seguida é levada milagrosamente pelos anjos para o para o céu (cf. Melchor de Santa Maria, Maria en los escritos de los doce primeiros siglos, in Theotocos, op. cit., p. 76).
Os Padres gregos, sempre mais predispostos ao maravilhoso, sobretudo quando se trata de Maria, no século sétimo introduzem no seu calendário litúrgico uma festa para celebrar a passagem de Maria para o céu. Antes desta data falava-se da dormição ou migração de Maria. Nos finais do século sétimo, esta festa passa também para o Ocidente.
O sentido dado a esta festa está todo ele fundamentado nos textos dos pseudo evangelhos do Trânsito da Bem-aventurada Virgem Maria. As homilias relacionadas com esta festa não são mais que repetições dos textos apócrifos (Melchor de Santa Maria, Maria en los escritos de los doce primeiros siglos, in Theotocos, op. cit., p. 76).
No princípio ainda se admitia que a dormição ou migração significava morte real seguida de ressurreição imediata. O corpo de Maria é transformado e torna-se corpo pneumático durante o tempo que mediou entre a morte e ressurreição, inspirando-se na descrição de São Paulo sobre ao que não haviam de morrer, aquando da vinda de Cristo (cf. 1Cor 15, 42-50).
Embora entendendo a ressurreição de modo biológico, os teólogos dos séculos VII e VIII eram mais realistas que os posteriores. Com efeito, a partir do século IX, os teólogos começam a afirmar que o corpo de Maria foi trasladado, tal como estava no momento da morte, para o paraíso terrestre onde permanece incorrupto. O paraíso terrestre, nesta perspectiva, não era o céu, mas o lugar privilegiado do qual Adão tinha sido expulso.
Estes modos distorcidos de descrever as coisas vão dar origem à doutrina de Maria isenta do pecado original. Como a morte é fruto do pecado original, não tinha sentido falar da morte de Maria. Estes escritos bizarros vieram a inspirar em grande parte a doutrina dos “Mórmones”. passagem de Maria para a glória dá-se, portanto, em duas etapas: Em primeiro lugar, o corpo de Maria vai para o paraíso, o lugar onde viveu Adão e Eva antes do pecado original. Por seu lado, alma de Maria vai para o céu, onde intercede em favor da ressurreição do seu corpo e da ressurreição dos nossos corpos (Melchor de Santa Maria, Maria en los escritos de los doce primeiros siglos, in Theotocos, op. cit., p. 76).
Esta teologia estranha a toda a tradição nasce no Oriente. Ainda no século IX, surgem no Ocidente alguns teólogos que se opõem à ideia da ressurreição antecipada de Maria. A mãe de Jesus ressuscita apenas quando os na mesma altura em que acontecer a ressurreição universal dos mortos. O pensamento teológico do Ocidente começa a opor-se cada vez mais à doutrina da dormição, vinda assim a instaurar-se a festa da Assunção de Maria, a qual vai cair em distorções muito parecidas às do Oriente. O teólogo que combate mais estas distorções teológicas de tipo devocional é Pascásio Radberto (Melchor de Santa Maria, Maria en los escritos de los doce primeiros siglos, in Theotocos, op. cit, p. 77).
No século XII, são já muitos os escritos em favor da Assunção de Maria ao céu em corpo e alma. O corpo de Maria foi elevado ao céu, mesmo antes de ter sido sepultado. Para justificar esta doutrina recorre-se ao paralelismo antitético dos Padres que opunham Maria a Eva (cf. Dial. Tryph. 100; Adv. Haer. III, 22, 4; V, 19, 1; De Car. Christi, 17). Eva foi a mãe da morte para os homens. Maria foi a mãe da vida. Eis a razão pela qual a mãe da vida não podia ficar sujeita à morte. A salvação da humanidade deve-se ao «Fiat» de Maria.
A gratuidade do amor salvador de Deus e a salvação radicada no dom do Espírito Santo ficam esquecidos. Não se entendia que o plano salvador de Deus não estava condicionado a Maria. Com efeito, nenhuma mediação, por si só, é capaz de alterar o plano criador e salvador de Deus. Neste período, interpretava-se a figura de Eva como realidade histórica. Opondo Maria a Eva, atribuía-se a Maria um papel determinante, exactamente tão determinante como o papel oposto de Eva.
É fundamental termos presente que a Assunção de Maria não pode ser a proclamação de uma excepção em relação ao plano de Deus para todos os homens. As prerrogativas proclamadas pela dogmática da Igreja acerca de Maria são uma Boa Nova para todos os homens. Doutro modo, não passariam de meras curiosidades. Na mariologia tradicional, Deus aparecia como um ser arbitrário que substitui as pessoas. Isto é a negação da própria realidade divina. Deus não concede um dom a ninguém sem que a pessoa o possa aceitar. Aliás, não seria dom, mas imposição.
Falar da assunção de Maria significa falar da assunção da Humanidade. Proclamar a assunção de Maria após a morte é falar da nossa assunção, a qual implica a nossa incorporação, plenificação e incorporação na comunhão universal do Reino de Deus. É esta a sorte de todos os homens que orientaram a sua vida pelos critérios do amor. Através de Cristo, tal como nós, Maria foi ressuscitada, assumida e glorificada na plenitude da comunhão do Reino de Deus.
É verdade que isto aconteceu logo após a sua morte, tal como sucede connosco. Esta realidade, no entanto, nada tem de biológico. Em 1950, Pio XII ainda duvidava se Maria teria morrido. Por isso a forma da definição ainda tem uma carga biológica. O papa ainda fala do corpo e da alma e não menciona a morte de Maria (cf. Denz. 3903).
Como já vimos, graças à ressurreição de Cristo foi-nos comunicado o princípio ressuscitante que é o Espírito Santo. É também no mesmo Espírito Santo que acontece a nossa assunção, pois somos assumidos comunhão da Santíssima Trindade como membros da Família Divina. Em Jesus Cristo ressuscitado, a força do Espírito Santo passa a circular no íntimo do nosso coração. sangue de Deus, a vida espiritual do Espírito Santo, passa a circular no nosso tecido espiritual: “Se alguém está em Cristo é uma nova criação. Passou o que era velho. Eis que tudo se fez novo. Tudo isto vem de Deus que, por meio de Cristo, nos reconciliou consigo, não levando mais em conta os pecados dos homens” (2Cor 5, 17-19).
Pela ressurreição, o homem carnal torna-se espiritual (1Cor 15, 44-16). Mas atenção, pois a carne e o sangue não podem participar no Reino de Deus (1Cor 15, 50). Para entrar na vida nova do Espírito Santo é preciso nascer de novo, diz o evangelho de João (Jo 3, 6).
2- A Assunção Como Plenitude da Salvação
Não há ressurreição sem morte. O homem interior, isto é, a nossa interioridade pessoal-espiritual não pode nascer sem que vá morrendo o homem exterior no que ele tem de leis contrárias ao amor e à comunhão. Se Maria não tivesse morrido, não podia ter sido assumida na plenitude dos ressuscitados. Esta plenitude, como já vimos, nada tem a ver com um corpo biológico: “Quando ressuscitarem de entre os mortos, nem casarão nem se darão em casamento. Serão como os anjos, no céu” (Mc 12, 25).
Também não se trata de mera imortalidade. Os que estão em estado de inferno são imortais, mas estão, como vimos acima, em estado de morte. A Sagrada Escritura vê a plenitude da vida em termos de ressurreição com Cristo. É esta a condição de Maria, a primeira ressuscitada. rimeira, entenda-se não porque ressuscitou em primeiro lugar, mas pela sua dignidade de mediação privilegiada para o acontecimento messiânico: “A plenitude de Maria, portanto, não radica numa a-mortalidade, isto é, numa ausência de morte biológica. A morte biológica é um acontecimento universal. É o termo da curva biológica. É certo que o homem começa por ser um dado biológico. A realidade humana, no entanto, não se esgota neste dado. A dimensão biológica do homem é a matriz para a emergência da interioridade pessoal-espiritual (cf. Calmeiro Matias, Deus quis o Homem em Construção, ed. do Autor, 1981, Lisboa, pp. 99-106).
À medida em que se realiza, a pessoa emerge como interioridade consciente, livre, responsável, única, original, irrepetível e capaz de reciprocidade amorosa. É nesta realidade interior que radica a possibilidade de Deus incarnar mediante o Espírito Santo. É também nesta condição de interioridade pessoal-espiritual que radica a possibilidade de o homem ser assumido divinamente.
A dinâmica da ressurreição não se reduz à simples densidade espiritual da imortalidade. A imortalidade supõe apenas a irreversibilidade espiritual. A ressurreição, pelo contrário, implica a dinâmica da assunção e plenificação da pessoa humana na comunhão divina. Por outras palavras, o projecto salvador de Deus implica a ressurreição e assunção da pessoa na Comunhão do Reino e não apenas a sua imortalidade.
Por outro lado, é importante libertar a noção de ressurreição de qualquer ideia biológica. A ressurreição da carne, em termos bíblicos, não se confina ao conceito helenista de restauração biológica. O homem-carne, para a Bíblia, é a pessoa como ser estruturalmente relacional e genealogicamente interligado em comunhão com todas as outras pessoas. O conceito bíblico de carne não é de modo nenhum um conceito de tipo genético ou biológico.
A ressurreição surgiu no mundo bíblico ligada à ideia de retribuição do justo após a morte e está associada à noção de assunção na comunhão com Deus. A dinâmica da ressurreição e assunção da pessoa na Festa da Salvação está associada à interioridade pessoal-espiritual que, pelo Espírito Santo, entra na plenitude de Deus: “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele, que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, há-de dar igualmente vida aos vossos corpos por meio do Espírito que habita em vós» (Rm 8, 11).
O corpo pneumático dos ressuscitados não é o corpo biológico ou natural. Este corpo natural é apenas a matriz em cujo interior emerge a nossa identidade histórica de tipo espiritual. Falando aos helenistas, São Paulo evita o termo bíblico de ressurreição da carne. Ele compreendia que o termo seria distorcido. Fala do corpo para indicar a mediação de comunicação com a nossa identidade espiritual mais profunda. Mas diz expressamente que este corpo é espiritual e não biológico.
Além disso, Paulo quer acentuar que os ressuscitados, apesar de serem totalmente espirituais, não pessoas e não almas, isto é, entidades que não tenham emergido historicamente dentro do corpo biológico: “Semeia-se corpo natural e ressuscita-se corpo espiritual” (1Cor 15, 44a). Esta dinâmica ressuscitante do Espírito está já a actuar no homem pessoal-espiritual, pois só este é o sujeito da ressurreição: “Ainda que em nós se destrua o homem exterior, o interior renova-se diariamente pela acção do Espírito” (2Cor 4, 16).
Esta dinâmica ressuscitante vai-nos configurando, de modo gradual e progressivo, com Cristo ressuscitado. Restaura-se assim o homem sonhado por Deus em perfeita harmonia com Cristo (2Cor 4, 4b). Ou ainda: “Todos nós, com a cara descoberta, vamos reflectindo a glória do Senhor como num espelho. Vamos sendo progressivamente transformados de glória em glória nessa imagem, sempre mais resplandecente, pela acção do Espírito do Senhor” (1Cor 3, 18).
Esta transformação, portanto, nada tem de biológico. É esta a obra maravilhosa que é a nossa união orgânica com Cristo que se exprime de modo magnífico na Eucaristia: “O Espírito é que dá vida. A carne não serve para nada. As palavras que vos disse são Espírito e Vida” (Jo 6, 63).
A mariologia tradicional distorceu profundamente esta verdade. Ainda em meados do século XX, escritores como Cordiglia entendiam a assunção de Maria em termos biológicos: “Graças à imunidade do pecado original, Maria esteve imune da morte e da velhice, da morte entendida como separação do corpo e da alma, por isso mesmo da corrupção do corpo» (Judica Cordiglia, Semblanza físico-somática de Maria, in Theotocos, op. cit., p. 168).
E noutra passagem afirma: «A vida de Maria não terminou com a morte, como separação do corpo e da alma. A vida de Maria terminou com uma transformação precedida, evidentemente, de uma fase, um momento não ordinário, mas cheio de milagre. Para os que estavam junto dela, este momento pareceu-lhes quase uma morte. Dizemos quase, na medida em que tinha as características exteriores da morte. Mas era mais semelhante ao sono. Por esta razão foi chamada dormição (koimesis) ou bom sono» (Judica Cordiglia, Semblanza físico-somática de Maria, in Theotocos, op. cit., p. 169). s dons da salvação em Maria são os mesmos que Deus nos concede em Cristo ressuscitado. Poclamar as maravilhas de Deus em Maria é, na verdade, reconhecer o seu amor por todos os homens.
Pe. MAtias, estou profundamente impressionada com os seus escritos, pois eles tratam de maneira isenta, pontos nevrálgicos e incompreensíveis a muitos.
ResponderEliminarQuando se proclama como Verdade um mentira, pessoas são mantidas em cativeiro e não há maior cativeiro do que o engano espiritual.