A Imaculada Conceição de Maria




a) Enquadramento Histórico

b) A Releitura do Dogma
1- Questões Preliminares
2- Maria e as Consequências do Pecado Original
3- Reformulação da Doutrina da Imaculada
4- Sentido bíblico-teológico da Imaculada
5- A Imaculada Conceição, Como Boa Nova


a) Enquadramento Histórico

No século segundo desaparecem praticamente da Igreja os cristãos de origem judaica. Daqui em diante, a Fé começa a difundir-se entre os pagãos de cultura helenista, dando origem a uma linguagem nova da Fé, a qual se distancia profundamente da linguagem bíblica. Assim, por exemplo, Jesus Cristo deixa de ser o filho de David constituído filho de Deus (cf. Rm 1, 3-5). Agora vai ser sobretudo o Logos, não no sentido que lhe confere o evangelho de João, mas sim no sentido do Logos do pensamento platónico. Deste modo Cristo torna-se o Logos a agir na humanidade de Cristo. Segundo este modo de entender a realidade de Cristo, Jesus perde a autonomia humana.

Maria torna-se a colaboradora de Deus Pai para o acontecimento de Cristo. Pouco a pouco, Maria deixa de ser uma mãe como as demais mães. Vai sendo progressivamente privada da sua realidade humana normal para Se converter em excepção. Tudo isto foi mais uma maneira de diminuir a realidade da mulher, já tão profundamente inferiorizada pelas culturas antigas.

Nos séculos segundo e terceiro ainda não tinha qualquer sentido falar de Maria como mulher isenta das consequências do pecado de Adão. Isto significaria fazer dela uma excepção estranha no conjunto dos seres humanos. Não é por acaso que a Igreja Ortodoxa, apesar da sua grande devoção a Maria, não reconhece o dogma da Imaculada Conceição de Maria.

Para os teólogos dos primeiros séculos apenas Cristo não herdou as consequências do pecado de Adão em virtude deste não ter tido pai humano. O óvulo mamífero foi descoberto apenas em 1824. Até esta altura pensava-se que os seres humanos só eram geneticamente filhos dos pais. Eis a razão pela qual que pensava que o pecado de Adão se transmitia através do pai. Como Maria teve pai humano, tinha que ter herdado as consequências do pecado de Adão.

Referindo-se à morte de Maria, Santo Agostinho diz que ela teve que pagar com a morte o facto de ter sido filha de Adão. No século terceiro, diz-se que apenas Jesus não participou da condição de Adão por não ter tido pai humano. Ainda nos séculos Doze e Treze grandes teólogos como S. Tomás ou S. Domingos rejeitam a ideia de Maria não ter sofrido as consequências do pecado original.

Os Santos padres falavam de Maria, a santificada, e não de Maria, a Imaculada. É esta ainda hoje a linguagem e a interpretação da Igreja Ortodoxa. Maria, portanto, foi santificada pela acção do Espírito Santo, no seio de sua mãe, tal como aconteceu com João Baptista (cf. Lc 1, 41). No pensamento dos teólogos dos primeiros séculos, Maria foi fruto de uma concepção humana normal. Isto que dizer que ela, tal como acontece com os demais seres humanos, sofreu a «infectio carnis», isto é, a distorção e enfermidade do pecado de Adão.

Isto era aceite sem qualquer dificuldade, pois se o Espírito Santo operou a santificação de João Baptista enquanto este permaneceu no seio materno, com muito mais razão o teria feito em relação à mãe de Jesus. Na Idade Média, S. Boaventura e S. Alberto Magno começa a dizer que a santificação de Maria no seio materno aconteceu logo no momento da infusão da alma no corpo de Maria.

Como sabemos, para a Bíblia, não existe o momento da animação ou da infusão da alma. O ser humano forma um todo dinâmico. A dimensão espiritual emerge no interior do ser humano como o pintainho dentro do ovo. A pessoa humana é um ser em construção tanto na dimensão somática como na psíquica e na espiritual. Santo Tomás ainda fala apenas na santificação de Maria no seio materno [cf. K. Elisabeth Borresen, Maria na teologia católica, in Conc. nº 188, 1983, p. 83]. A doutrina da Imaculada Conceição começa a delinear-se na Europa a partir do século XI. Neste período, começa a celebrar-se em Inglaterra a festa da Imaculada Conceição de Maria.

Para os pensadores deste período, a Conceição significava o momento em que a alma era infundida no feto. No essencial, o conceito de imaculada Conceição, neste período, não se distinguia do conceito de santificação no seio materno. Alguns teólogos diziam expressamente que Maria fora santificada por Deus no momento da animação ou infusão da alma. Muito antes de se fazerem estas afirmações na Igreja Católica já a Igreja Ortodoxa celebrava a festa litúrgica da santificação de Maria.

João Duns Scoto, da escola franciscana, começa a falar da animação ou infusão da alma logo que o sémen masculino penetra nas vias maternais da mulher. Como consequência, a santificação de Maria coincide com o momento da fecundação. Isto leva os teólogos franciscanos da Idade Média a anteciparem a Imaculada Conceição para o momento da fecundação. Maria é isenta do pecado de Adão no momento da Sua concepção [cf., K. Elisabeth Borresen, Maria na teologia católica, in Conc. nº 188, 1983, p. 83].

E foi assim que os franciscanos começam a pregar na Europa a doutrina de Maria Imaculada ou isenta do pecado de Adão desde o primeiro momento da Sua concepção. Esta linguagem corresponde a dizer que Maria não precisou de ser santificada, pois foi isenta do pecado original e, portanto, cheia de Graça desde a sua Conceição.

A partir de S. Agostinho (séc. V), o pecado de Adão tornara-se o pecado original que é transmitido através do pai. A comunicação do pecado original implica a perda de uma série de dons preternaturais, isto é, que não eram devidos à natureza. O pecado original, por ser um pecado universal, é um pecado inscrito na natureza. Este operou uma distorção humana, dando origem, diz Santo Agostinho, à concupiscência, isto é, os apetites desordenados nos seres humanos. A concupiscência significa a distorção operada pelo pecado de Adão no que se refere ao domínio corporal.

No que se refere à alma, a consequência do pecado manifesta-se numa mancha. Ao contactar com o corpo corrompido (infectio carnis), a alma fica manchada. Segundo Santo Agostinho, a mancha do pecado original apenas é limpa pelo baptismo. Todo este labirinto de raciocínios influenciados pelo platonismo afasta a Fé da sua dinâmica bíblica. Esta noção agostiniana de pecado vai marcar o pensamento da Igreja até ao Concílio Vaticano Segundo.

O dogma da Imaculada Conceição foi pensado partindo desta visão do pecado original. Uma vez que a doutrina do pecado original foi profundamente reformulada é necessário reformular igualmente a doutrina da Imaculada Conceição. S. Domingos de Gusmão era um grande devoto de Maria. Apesar disso opõe-se tenazmente às doutrinas da Imaculada Conceição. A escola dominicana é uma grande rival da escola franciscana no que se refere à propagação da doutrina da Imaculada Conceição. São Domingos e os dominicanos afirmavam simplesmente que esta doutrina não estava de acordo com a tradição da fé. O Fundador dos dominicanos defendia apenas a doutrina tradicional da santificação de Maria no seio materno.

Se Maria teve pai não tem sentido falar de isenção de pecado original, pois o pecado de Adão ou «infectio carnis» está já inscrito no sémen masculino. Se Maria surge do sémen masculino, não tem sentido falar de isenção do pecado de Adão. Maria, tal como João Baptista e Jeremias, foram santificados no seio materno, pois os três foram chamados desde o seio materno para realizarem uma missão especial. Sixto V intervém proibindo as duas escolas de continuarem as discussões sobre esta questão. Mas tolera-se à corrente franciscana continuarem a falar das suas teses [K. Elisabeth Borresen, Maria na teologia católica, in Conc. nº 188, 1983, p. 67].

Em 1439, o Concílio de Basileia declara a Imaculada Conceição de Maria como dogma. No entanto, devido aos conflitos do Concílio com o Papa Eugénio IV, esta declaração dogmática foi declarada ilegítima. E esta questão ficou mais ou menos em parêntesis até meados do século XIX, embora se fosse desenvolvendo uma corrente cada vez mais forte a favor da tese da Imaculada Conceição.


b) A Releitura do Dogma

1- Questões Preliminares

O avanço das ciências bio-genéticas demonstrou que os conceitos clássicos do fenómeno reprodutivo não eram correctos. Em 1824, Baer descobre o óvulo mamífero. Isto significa que a mãe e o pai participam com igual património genético na procriação dos filhos. A teologia, no entanto, não corrigiu os pressupostos sobre os quais assentava a ideia da transmissão do pecado original.

Este desconhecimento dos novos dados da ciência por parte da teologia faz que, por vezes, se façam certas afirmações que, aos olhos dos cientistas se tornam um pouco ridículas. Estas afirmações eram feitas para justificar a formulação literal do dogma da Imaculada Conceição de Maria.

Por exemplo um teólogo italiano chamado Judica-Cordiglia dizia por volta de 1960: “Antes de mais, podemos dizer que Maria esteve imune dos males corporais e da velhice que começa com o princípio da vida (Minot). Este processo é consequência das alterações celulares produzidas por venenos intra e extra-celulares ou, como afirmam alguns autores, por substâncias inibidoras contidas no soro do sangue. Estas são expelidas por todas as células do organismo ou também, segundo outros, por deficiências de harmonias vitamínicas. Em segundo lugar, é lícito pensar que a Virgem esteve imune desta mesma morte, entendida como destruição dos componentes dos diversos tecidos» (Judica-Cordiglia, Semblanza físico-somática de Maria, in Theotocos, Enciclopédia Mariana, p. 167).

A biologisação da fé levou a distorcer muitos aspectos da verdade do Homem na teologia e do projecto salvador de Deus. Na raiz desta distorção está certamente o facto de o conceito bíblico de carne não ter sido entendido pelo cristianismo de origem pagã, o qual perdeu o sentido da cultura bíblica. Deste modo se reduz a uma questão biológica a questão da Imaculada Conceição, tal como antes se reduzira a biologia a Eucaristia, a ressurreição, a virgindade de Maria e o próprio mistério da Encarnação.

Eis a razão pela qual se torna tão importante a reformulação teológica destes aspectos da fé, a fim de a mesma se tornar Boa Nova (Evangelho) para os homens do nosso tempo. Em relação, por exemplo, à ressurreição, apesar da insistência de Paulo sobre o facto de esta radicar, não numa realidade biológica, mas pneumática (1Cor 15, 50), os Padres passaram a falar da ressurreição como de uma realidade biológica. Do mesmo modo, pretender que Maria não envelheceu nem morreu significa dizer que Maria não se realizou como pessoa humana. Mas é curioso que estes exageros não se afirmaram de Jesus Cristo.

Não podemos ignorar que o homem é um ser em realização histórica. A sua missão fundamental é humanizar-se. A lei da humanização da pessoa é: emergência pessoal em mediante relações de amor e convergência para a comunhão universal. O nível biológico da vida humana é a matriz na qual e a partir da qual emerge esse ser interior de nível pessoal-espiritual.

São Paulo, tal como o evangelho de São João, insiste em que o dado biológico não toma parte no Reino de Deus (1 Cor 15, 50; cf. Jo 6, 63). O que nasce da carne é carne, acrescenta o evangelho de São João. Apenas o que nasce do Espírito pertence à esfera espiritual da vida definitiva do Reino. (Jo 3, 6)

É certo que o pecado pode ter consequências negativas tanto a nível biológico como psíquico. Com efeito, o pecado é gerador de morte não natural, isto é, provocada. Isto, no entanto, não significa que a curva biológica humana do nascimento, crescimento, envelhecimento e morte seja produto do pecado do pecado original. A morte é uma lei universal da biosfera, que é muito mais vasta que a questão da biologia humana.

Não se pode deduzir da Bíblia uma conclusão teológica defensora da a-mortalidade. A Bíblia apenas acentua a relação entre pecado e morte violenta ou provocada. Em vez da dinâmica da fraternidade, o pecado introduz na marcha da história a dinâmica negativa do fratricídio (Gn 4, 1-12).

A Bíblia oferece dados teológicos suficientes para concluirmos que Deus não nos criou para a morte (Sab 5, 15s; 6, 18s). Segundo a visão teológica da Bíblia, a vitória de Deus sobre a morte não é conseguida pela a-mortalidade (biologia), mas pela ressurreição. O conceito de ressurreição, para a Bíblia, assenta numa interacção de reciprocidade comunitária com os demais homens e com Deus. Por outras palavras, a ressurreição nada tem a ver com um processo de reanimação biológica. Mais que a morte em termos corpóreos, o pecado provoca a morte pneumática que é a auto exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os irmãos (Jo 5, 24; Rm 8, 6; 1Cor 15, 21).

É importante reformularmos a nossa Fé, a fim de termos uma Boa Notícia a anunciar aos homens do nosso tempo. Esta reformulação só pode ser feita se soubermos regressar às origens do património da Fé, como manda o Concílio do Vaticano Segundo. Como sabemos, os fundamentos da nossa Fé são as Escrituras.

2- Maria e as Consequências do Pecado Original

A Mariologia tradicional não se estruturou a partir dos fundamentos bíblicos e patrísticos. O motor que fez evoluir a teologia sobre Maria foi o devocionismo. É isto que explica, por exemplo, que a Mariologia dos séculos XIX e primeira metade do século XX tenha feito afirmações sobre Maria que representam um retrocesso enorme em relação à teologia Bíblica e à teologia que os Santos Padres desenvolveram ao longo dos primeiros séculos da Igreja. Muitas das afirmações desta mariologia devocionista chega a tocar as raias do absurdo, acabando por prestar um serviço negativo à Fé.

Assim, por exemplo, Deus aparece nesta Mariologia como alguém que manipula directamente as leis da biologia. Determina Maria, sem ela ter parte no Seu destino. Vejamos, por exemplo, algumas afirmações de Judica-Cordiglia: “Do ponto de vista médico, podemos pensar, se não há objecções teológicas, que o omnipotente restituiu à Virgem a completa imortalidade dos tecidos e, respectivamente, dos órgãos. Tal como a teologia reconhece, esta imortalidade fora concedida ao homem no acto da criação e perdida depois pelo pecado original. Talvez mais que restituir, Deus potenciou nela aquelas reservas de vida que ainda residem nos nossos órgãos, a imutabilidade biológica que as células, afastadas do organismo humano, têm quando são colocadas em condições semelhantes às condições em que vivem, mas que perdem em seguida e não mantêm quando passam a formar parte do conjunto do organismo.

Em suma, foram anuladas em Maria as leis da velhice e da morte e restaurada aquela estabilidade de vida, se assim podemos falar, e mudanças celulares que faltam aos agrupamentos celulares, mas que podem encontrar-se em cada célula separada. Estas continuam vivendo e reproduzindo-se indefinidamente sem se debilitarem, envelhecerem e morrerem» [Judica-Cordiglia, Semblanza físico-somática de Maria, in Theotocos, op. cit., p. 168].

Em primeiro lugar, o autor faz a apologia de uma a-mortalidade biológica primordial, o que é um absurdo científico e também teológico. Depois aplica este absurdo a Maria. É certo que protozoários não morriam no sentido de se deteriorarem. Só morriam por acidente. No entanto, o seu método de reprodução por bipartição era já uma forma de morte do indivíduo, o qual morria para dar lugar a outros dois.

O aparecimento do organismo vivo representa um salto qualitativo novo. As células, ao interligarem-se e interagirem em tecidos e órgãos coordenados em função do todo, atingem uma perfeição muito maior. Por exemplo, surge a sexualidade como modo de reprodução. Aqui, o indivíduo pode reproduzir-se e continuar a viver na sua própria identidade individual.

Por outras palavras, o salto do unicelular para o orgânico representa um salto na aquisição da continuidade e persistência individual. Representa ainda uma conquista na linha da diferenciação. Com o aparecimento da sexualidade o acto procriador passa a gerar o diferente. A amiba dava dois indivíduos geneticamente iguais. Agora, a procriação supõe uma permuta genética capaz de um número quase infinito de combinações.

Com o aparecimento do homem, a morte foi vencida. Não em relação ao ser exterior, o indivíduo biológico, mas em relação ao ser interior, pessoal-espiritual. Cordiglia não se apercebeu de que, para a Bíblia, o homem, mesmo que não tivesse pecado, não seria biologicamente imortal. O Antigo Testamento acentua que o pecado gera a morte provocada, violenta, não natural. Afirma que Deus não criou o homem para a morte, embora só com Cristo explica o modo de isto acontecer. Em geral pensava-se apenas no facto de Deus ser o Senhor da Vida, pois pode dá-la e tirá-la quando quiser (Dt 32, 39; Sal 104, 29-30).

Influenciado pelo helenismo, o autor do Livro da Sabedoria aponta para a ideia de uma interioridade espiritual e imortal. Fala das almas dos justos que participam da imortalidade junto de Deus (Sab 3, 1-5). O génio teológico do povo bíblico ia noutro sentido: pela morte, o homem fica reduzido a uma sombra de vida. Vai habitar o Sheol nas regiões inferiores, as quais ficam abaixo das águas subterrâneas (Gn 37, 25; Dt 32, 22; 1Rs 2, 6; Prov 9, 18; Job 10, 21ss; Sal 19, 18). O homem não é inteiramente destruído pela morte. Depois de morrer, o ser humano subsiste, mas não vive, pois não convive.

A pessoa humana é um ser com uma estrutura interior, relacional e genealogicamente interligada aos outros. O Homem foi criado para o convívio. Quando deixa de conviver fica em estado de morte, embora subsista. É esta a razão pela qual pode acontecer a ressurreição dos mortos. O homem interior está vivo quando é animado pelo Espírito de Deus (Ruah Yahvé).

A morte consiste em que Deus retira do interior do homem o Seu Espírito ou sopro vital. A interioridade humana fica por isso reduzida a uma sombra de vida no reino das sombras (Is 14, 9). A ideia da ressurreição surge da esperança de que Deus pode enviar de novo o Seu sopro vital ao Sheol. Neste caso, o homem interior volta a encontrar-se na plenitude da vida, isto é, na dinâmica do encontro, do diálogo, da comunhão e das relações com os outros. A ressurreição é atribuída ao dom do Espírito de Deus (cf. Dan 12, 2-3; Sal 15, 9-11; Is 52, 10-13).

O Novo Testamento acentua que a ressurreição é realmente a vitória sobre a morte (1Cor 15). O estado dos ressuscitados é de ordem pneumática, não biológica (Mc 12, 18-24; Mt 22, 23-33; Lc 20, 27-38; 1Cor 15, 44-47). É verdade que Deus não criou o homem para a morte. Mas isto não significa que o plano de Deus era a a-mortalidade biológica.

Maria participa, graças à ressurreição de Cristo, da plenitude dos ressuscitados em Cristo, a qual nada tem a ver com qualquer ideia de a-mortalidade ou restauração biológica após a morte. A condição dos ressuscitados em Cristo é de ordem pneumática, não biológica.

Após Santo Agostinho, a teologia do pecado de Adão tornou-se uma questão de pecado original. Para a Bíblia, o pecado de Adão é uma realidade orgânica que atinge os homens todos na medida em que estes fazem um corpo do qual Adão é a cabeça. Com Santo Agostinho, o pecado original tornou-se um pecado de natureza que se transmite pela procriação e através do pai.

A formulação da Imaculada Conceição de Maria está fundamentada na doutrina do pecado original, tal como ele evoluiu a partir de Santo Agostinho. A teologia contemporânea já não formula a questão do pecado original em esquemas agostinianos. Isto significa que a doutrina da Imaculada concepção tem de ser igualmente reformulada sob pena de cairmos em contradições e desajustes nas afirmações da Fé.


3- Reformulação da Doutrina da Imaculada

As formulações dogmáticas surgiram na marcha da história da Igreja em resultado da necessidade de sintetizar dentro do contexto sócio-cultural de uma época, um determinado aspecto considerado importante. A partir do momento em que um dogma é definido torna-se ponto de referência obrigatório para as futuras sistematizações da fé. Por outras palavras, os dogmas são material teológico obrigatório para as sistematizações da fé que se referem aos aspectos do referido dogma. Podemos dizer que fazem parte do património da fé, tal como a Escritura.

No entanto, assim como a Escritura não é a Palavra de Deus encadernada, também os dogmas não são verdades encerradas na fórmula literária. Todos sabemos como o literalismo bíblico gera fundamentalismos míopes, os quais distorcem a verdade. O mesmo acontece com o literalismo aplicado à letra dos dogmas. A Palavra de Deus é sempre um acontecimento vivo no seio da vida eclesial. Não foi a Escritura que gerou as comunidades. Foram as comunidades que geraram a Escritura. Do mesmo modo, não foram os dogmas que geraram a Igreja, mas a Igreja que gerou os dogmas.

A revelação de Deus é um processo histórico, o qual acontece segundo a dinâmica de aquisições teológicas. Estas, no entanto, emergem sempre no meio de muitos condicionamentos culturais. É por esta razão que hoje nenhum teólogo se confronta com a Bíblia em termos de leitura ingénua ou literalista. A Bíblia não é a Palavra de Deus cristalizada na letra. A Escritura tem uma estrutura narrativa. Ela é essencialmente um conjunto de narrações que relatam as experiências primordiais e fundantes da fé. Do mesmo modo, os dogmas não são a verdade da fé encaixilhada na fórmula. Tal como aconteceu com as Escrituras, os dogmas são aquisições teológicas que se tornam ponto de referência para a formulação da fé e não fórmulas para repetir literalmente.

Temos de distinguir sempre nas Escrituras e nos dogmas os condicionamentos sócio-culturais e as aquisições teológicas. Estas têm de circular de modo coerente, orgânico e dinâmico com a totalidade das aquisições teológicas anteriores, pois formam um todo orgânico e dinâmico. A fé não é uma questão de uma época ou de um grupo, mas um património herdado que foi crescendo ao longo de milénios. A revelação de Deus é um processo histórico. Tudo o que não continua a cadeia nem aumenta e reforça o dado primordial, é pura roupagem sócio-cultural. Valeu apenas para a época em que surgiu, pois a Fé não pode explicitar-se sem roupagem sócio-cultural.


4- Sentido bíblico-teológico da Imaculada

Como vimos, a Bíblia não entendia o pecado de Adão nos mesmos termos em que o entendeu a Teologia medieval. Isto significa que a Escritura não pressupõe a existência de uma concepção imaculada. Para afirmar a importância de um personagem, a Bíblia elabora uma ficção literária onde o personagem surge a partir de uma concepção miraculosa.

Em geral as suas mães destes personagens eram estéreis. O seu nascimento miraculoso significa que Deus tinha um plano especial para este personagem. Estão neste caso Isaac, José do Egipto, Sansão, Samuel, João Baptista e outros. Com este procedimento, a Bíblia pretende dizer que Deus suscita homens e mulheres e consagra-os para realizarem uma missão especial.

No entanto, isto não deve ser entendido como uma manipulação por parte de Deus. A Bíblia vê esta vocação ou chamamento em termos de santificação ou infusão do Espírito de Deus. Os dons de santificação e consagração concedidos por Deus não substituem o homem. Este pode ser-lhe fiel ou infiel.

A Mariologia tradicional fazia de Maria uma manipulada por Deus. Esta não teve parte na Sua condição de mulher excepcional. A perspectiva bíblico-teológica ficava distorcida por esta linguagem. Não podemos esquecer que aprofundar a missão e as prerrogativas de Maria é uma maneira de proclamar a bondade de Deus e seu o plano de salvação.

Por outras palavras, Maria teve um lugar teológico privilegiado por ser uma mediação privilegiada para proclamar o Evangelho. A pregação de Maria só é evangelho na medida em que é mediação de uma Boa Nova que é portadora de salvação para todos os homens. Não é bom procedimento fazer de Maria um ser isolado de Cristo e uma excepção no projecto da Humanidade.

A maneira tradicional de falar de Maria fazia dela mais um objecto de curiosidade que uma mediação de Evangelho. Conhecê-la era um simples acto intelectual de conhecer uma série de excepções que Deus fez nela e não em nós. Deste modo era uma curiosidade e um objecto de devoção, mas não era verdadeiramente modelo para ninguém. Era mais um objecto de admiração do que apelo a sermos fiéis ao nosso leque de possibilidades, como ela foi fiel aos seus talentos.

Situada no contexto do Novo Testamento, Maria surge como a mãe do Novo Adão. No Novo Adão Deus recria a criação distorcida pelo pecado do primeiro (2Cor 5, 17). Em Cristo, o Novo Adão, a Humanidade é reconciliada, isto é, reencontra o sentido original do projecto de Deus (2Cor 5, 19). Isto aconteceu assim porque o Novo Adão foi incondicionalmente fiel a Deus. O fracasso introduzido pela infidelidade do primeiro Adão é vencido pela fidelidade incondicional do segundo (Rm 5, 17-19).

A humanidade forma um todo orgânico. A infidelidade do primeiro desorientou o todo da Humanidade. Paulo diz que todos pecaram no primeiro Adão (Rm 5, 12). Do mesmo modo, a recriação operada pelo Espírito Santo em Jesus Cristo estende-se a todos os homens (Rm 5, 21).
Maria aparece neste contexto como grande mediação do Espírito Santo. Foi sobretudo ela que modelou a personagem fiel do Novo Adão. Paulo diz que o Novo Adão nasceu de uma mulher (Gal 4, 4). Maria foi a mediação maternal para Jesus ser gerado como judeu, membro do povo de Israel (Rm 9, 5). Maria é a síntese do povo bíblico do qual saiu Jesus Cristo: “A salvação vem dos Judeus”, diz o evangelho de São João (Jo 4, 22b).

Foi neste enquadramento que os Padres do século segundo situaram a grandeza da figura de Maria. Por esta razão eles falavam da Nova Eva ou princípio gerador da nova Humanidade. Na Idade Média, pensava-se que as crianças, devido ao pecado original, eram habitação de Satanás. Maria, predestinada para ser mãe do Filho de Deus, não podia ter estado em poder de Satanás.

Sabemos que a Escritura não associa o pecado de Adão a qualquer ideia de posse de Satanás. Na perspectiva bíblica, o homem foi afectado na sua estrutura relacional devido ao pecado de Adão. Talhado para a fraternidade, devido ao pecado de Adão torna-se fratricida (Gn 4, 8). Daqui a necessidade de uma nova criação pela qual o homem seja restaurado e viva em harmonia com Deus.

Esta recriação foi realizada por Deus em Cristo: “Se alguém está em Cristo, é uma nova criação. Passou o que era velho. Eis que tudo se fez novo. Tudo isto vem de Deus que, por meio de Cristo, nos reconciliou consigo” (2Cor 5, 17-18). O pecado de Adão não é, portanto, uma mancha na alma. Também não faz das crianças habitação de Satanás. A superação do pecado de Adão é um dom de Deus que supõe a aceitação do homem. Aliás, não seria dom, mas imposição. Deus não manipula o homem e não se impõe a ninguém.

A Imaculada Conceição de Maria supõe fidelidade e docilidade ao Espírito Santo. Apesar do nosso leque de talentos ou possibilidades não ser igual ao de Maria, todos estamos chamados a participar desta condição de Maria, a mulher plenamente fiel aos seus talentos.

A Imaculada Conceição, portanto, deve ser vista na linha de uma tarefa. Não aparece no princípio como realidade feita. É o topo da construção do Homem Novo em Cristo. A Imaculada Conceição implica tornar-se imagem perfeita de Deus, a qual é resultado de uma vida edificada na fidelidade aos talentos e à vocação que nos vem de Deus. Ser imagem perfeita de Deus supõe, por parte do homem, cooperar com o Criador. (Col 3, 10)


5- A Imaculada Conceição, Como Boa Nova

Maria não é resultado mágico de uma operação de Deus. Como sabemos, cada pessoa é única, original, irrepetível, livre, consciente e responsável. Isto realiza-se de modo gradual e progressivo. A pessoa humana surge na vida com uma vocação fundamental: realizar-se segundo os melhores talentos que constituem o seu leque fundamental.

Ninguém é herói por receber cinco talentos. Ninguém é culpado de ter recebido um. A heroicidade está na resposta dada a esses talentos. A resposta está acabada no fim da vida de cada pessoa. A pessoa humana é um ser em realização histórica. A diversidade dos talentos não pressupõe arbitrariedade por parte de Deus. Pelo contrário, pressupõe que Deus nos aceita tal como surgimos no concreto da história. Além disso, é no concreto da nossa história pessoal que Deus nos encontra e confia missões, as quais implicam muitas vezes um carácter de excepção.

Foi o que aconteceu com Maria. Ser mãe do Messias é uma excepção. Só uma mulher podia realizar esta missão. Deus consagrou e chamou Maria para realizar esta missão. Como ternura maternal de Deus, o Espírito Santo optimizou a ternura maternal de Maria, a fim de ela amar o Filho de Deus ao jeito do próprio Deus.

A maneira tradicional de falar de Imaculada Conceição fazia de Maria um ser sem mérito próprio. Foi modificada por Deus no momento da Sua concepção sem ter qualquer mérito neste facto. A ideia de Imaculada Conceição de Maria deve ser associada à sua missão de mãe de Jesus.
Maria surge num contexto sócio-histórico concreto. Pertence ao resto fiel de Yahvé. Foi possibilitada no sentido de poder receber a optimização do Espírito Santo e realizar de modo perfeito a sua missão de mãe do Messias. Não é por isto, no entanto, que Maria é heróica. A sua heroicidade radica no facto de ter respondido fielmente aos Seus talentos.

Por ser judia e mulher, Maria recebeu uma série de possibilidades relacionadas com a missão de mãe do Messias: Fé na fidelidade de Deus; Fé na promessa davídica do Messias; Esperança de que ele iria chegar; Simplicidade e abertura à acção de Deus. Era uma mulher do povo, emergiu de gente simples; Por isso não tinha muitos esquemas dogmáticos os quais tentam impor a Deus os esquemas dos homens. Como sabemos, os caminhos do Senhor não correspondem aos dos homens: “Os meus planos não são os vossos planos. Os vossos caminhos não são os meus caminhos, diz o Senhor. Quanto os céus estão elevados acima da terra, assim os meus caminhos estão elevados acima dos vossos e os meus planos acima dos vossos planos” (Is 55, 8-9).

As classes dominantes do judaísmo contemporâneo de Jesus opunham uma resistência total ao plano de Deus tal como este estava a ser realizado por Jesus. Pretendiam saber exactamente os caminhos e os planos de Deus. Como a realidade de Deus não correspondia aos esquemas que Lhe queriam impor, excluíram-se do dom de Deus.

Não foi assim que Maria marcou a personalidade de Jesus. Sensibilizou-o para a bondade de coração e a atenção ao sofrimento dos outros. É este o testemunho que João nos dá de Maria (Jo 2, 3-4). Maria também foi condicionada, pois todos nós somos condicionados. No entanto, isto não é pecado. Foi vítima das recusas de amor dos outros. Também isto não é pecado. O pecado consiste em dizer não ao melhor das possibilidades e das propostas de amor que nos surgem no dia a dia da vida.

Os fariseus, os sacerdotes e os doutores da Lei não aceitaram o dom de Deus realizado em Cristo. Resistiram ao dom revelacional do Espírito Santo feito após a Páscoa. Maria, pelo contrário, estava lá com o resto dos fiéis (Act 1, 13-14). É neste sentido que Maria é mediação de evangelho para nós.

Quando Pio IX, em 1854, define o dogma da Imaculada Conceição fá-lo dentro de uma óptica diferente desta. A linguagem utilizada demonstra o universo cultural em que se movia o papa. Eis as palavras da definição: “No primeiro instante da sua concepção, pela graça e privilégio de Deus Todo-Poderoso e em consideração aos méritos de Jesus Cristo, salvador do género humano, a Virgem Maria foi preservada e isenta de toda a mancha de pecado original” (Denz. 2803).

Vimos já como é importante distinguir aquisição teológica e condicionamento cultural. A aquisição teológica ficou feita com a definição do dogma. Os condicionamentos culturais não foram criados pelo papa, pois faziam parte do contexto cultural vigente. A aquisição teológica radica essencialmente na proclamação da fidelidade de Maria ao plano salvador de Deus. Após a Páscoa, Maria aparece entre o resto dos fiéis de Yahvé. Pertence à comunidade dos santos. Aceita e responde fielmente aos dons de Deus. É mediação de fé para os demais crentes. Faz a transição da antiga para a Nova aliança, coisa que não aconteceu com João Baptista. Coopera com o Espírito Santo para a superação do pecado de Adão, tanto em relação a si como aos que aceitam Jesus Cristo. Não permanece vítima das distorções relacionais do homem velho.

Maria é um modelo fundamental para todos nós. Paulo diz, a propósito da recusa dos judeus, que Deus realiza o seu plano de Salvação universal com o pequeno resto dos que permanecem fiéis (Rum 9, 28-29). Maria pertence a este resto através do qual Deus realiza o seu projecto de salvação universal.

Face ao pecado, o homem pode situar-se como vítima ou como culpado. Segundo a perspectiva bíblica do pecado de Adão, o homem pode situar-se face ao mistério do mal apenas como vítima. Segundo o dogma do pecado original, todos nós fomos vítimas do pecado ainda antes de sermos pecadores. Isto, no entanto, não deve ser entendido em termos de uma mancha na alma, igual para todos. Trata-se de condicionamentos recebidos. Com efeito, os outros condicionam-nos e também nos condicionam.
Não se trata, portanto, de algo que se transmite de modo genético, mas sim de modo relacional. Depende do contexto social, histórico e cultural em que a pessoa nasce e cresce. A pessoa é culpada quando é a autora de uma recusa de amor. Pecar é recusar-se a ser mais humano segundo o melhor das possibilidades recebidas dos demais. Só há recusa quando é possível e nos recusamos. Por vezes, as pessoas são de tal modo condicionadas, que ficam incapazes de realizar, de modo adequado, a missão de homens e mulheres. Neste caso são vítimas. Ao mesmo tempo, são mediações de ritmos negativos para os outros, embora não tenham culpa disso.

Maria surgiu na história dentro de um contexto que a possibilitou para ser uma boa mãe. O Espírito Santo, com seu jeito maternal, capacitou-a para ser uma boa mãe para o Messias. A certeza disto radica no facto de ter acontecido. Com efeito, Jesus foi o Messias generoso que se deu totalmente até à morte. É verdade que a missão messiânica de Jesus não é obra de Maria, mas a personalidade humana de Jesus foi em grande parte modelada pela maternidade de Maria.

Neste sentido, Maria é um apelo para todos os homens. Com efeito, sempre que uma pessoa procura ser fiel aos talentos recebidos, está a ser fiel aos dons recebidos dos demais, está a humaniza-se a si e cooperar com o Espírito Santo para a edificação de uma Humanidade melhor.


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