a) O Homem que Deus Fez Emergir do Barro
1-Deus e a Arte de Amassar o Barro
2- É Agora o Tempo de amassar o Barro
3-O Barro Primordial da Criança
b) Cristo no Centro do Plano de Deus
1-Nele Temos a Vida Plena
2-A Morada da Plenitude
3- Cristo e a Festa do Paraíso
c) Jesus e a Novidade do Reino de Deus
1-O Filho de David
2- Jesus e o Reino Como Libertação
3-Os Apóstolos e o Reino de Deus
4-O Reino de Deus Como Comunhão
5-As Pessoas na Plenitude do Reino
d) Fidelidade de Jesus Cristo e Salvação
e) Morte, Ressurreição e Vida Eterna
1-Morte e Vida Natural
2- Morte e Vida Espiritual
3-A Morte e as Coordenadas da Vida Eterna
4-A Morte é Condição de Plenitude
5-Alcance Universal da Ressurreição
6- A Morte Ilumina o Sentida da Vida
a) O Homem Que Deus Fez Emergir do Barro
1-Deus e a Arte de Amassar o Barro
O Livro do Génesis diz que Deus, no acto de Criar o Homem, começou por dar um beijo no barro primordial do qual ia fazer emergir o Homem. Nesse momento, o hálito da vida divina passou para o interior do barro e este tornou-se barro com coração (Gn 2, 7).
Barro com coração é pessoa capaz de se gastar para que o outro possa crescer como pessoa feliz. Barro com coração é a pessoa que se esforça por aceitar o outro como ele é, apesar disso exigir renúncia e sacrifício. Barro com coração é a pessoa capaz de se alegrar com o sucesso dos outros.
Barro com coração é a pessoa que não está sempre a exigir disponibilidade da parte do outro, mas que procura estar disponível quando este precisa de si. Barro com coração é a pessoa que ao aconselhar alguém, procura comunicar sempre o melhor da sua experiência e do seu saber, sem preocupação de reservar o melhor para si.
Barro com coração é a pessoa cujo modo de amar é de tal discreto e gratuito que o outro não se apercebe do sacrifício que, por vezes, está a ser feito, a fim de o ajudar. Barro com coração é a pessoa que não se afasta do outro, só porque este acaba de ter um fracasso na vida. Barro com coração é a pessoa que se preocupa por amar de modo cada vez mais pleno e gratuito.
Barro com coração é aquela pessoa de quem nos lembramos em primeiro lugar nos momentos de dificuldade ou sofrimento. Barro com coração é a pessoa que não gosta de magoar os outros, mas não deixa de dizer a verdade pelo simples facto de que o outro pode não gostar.
Barro com coração é a mãe que cuida dos seus filhos com uma ternura e cuidados admiráveis. É também o pai que faz planos, esforços e horas extraordinárias para que a sua família tenha o pão de cada dia. Barro com coração é o casal que acolheu uma criança em situação de risco. É também aquele homem que, por ser honesto e fiel à sua consciência foi perseguido e despedido do emprego.
Barro com coração são os homens e as mulheres que vão gastando a vida pela defesa e libertação dos que não têm voz nem sabem defender-se. Barro com coração são os jovens que tomam o amor a sério, não traindo os amigos e procuram ser fieis ao projectos ou alianças amorosas. Barro com coração são os rapazes e raparigas, homens ou mulheres que deixam sempre mais ricas as pessoas que se cruzam consigo na vida. Isto supõe uma atenção especial à presença dinâmica do Espírito Santo no nosso coração, pois é ele o hálito da vida que nos vai moldando à imagem e semelhança de Deus.
2- É Agora o Tempo de amassar o Barro
É agora, portanto, a nossa grande oportunidade. Ou nos realizamos colaborando com o Espírito Santo ou nos malogramos. É agora que o Espírito Santo nos convida a amassar o barro, configurando a nossa identidade definitiva, isto é, o nosso jeito definitivo de nos relacionar e comungar com os outros. Eu costumo dizer que, no Reino de Deus, todos dançaremos o ritmo do amor, mas cada qual com o jeito que adquirir agora. É hoje o tempo de treinar.
Na medida em que o barro se vai amassando, estrutura-se e reforça-se de modo progressivo a nossa interioridade pessoal-espiritual que é única, original e irrepetível. A nossa interioridade pessoal é um núcleo de energias espirituais que crescem em densidade espiritual e capacidade de interacção amorosa.
Ninguém pode ser substituído nesta tarefa. Comungaremos para sempre na Festa da vida eterna com a identidade que imprimirmos agora ao barro que temos a missão de amassar. O ser humano é, pois uma obra-prima feita de barro em cuja interioridade está a emergir outra obra-prima feita de espírito e com capacidade de amar.
As nossas decisões, opções, escolhas e realizações são o cinzel com que modelamos este barro precioso. A configuração que atingirmos mediante a tarefa da nossa realização na história constitui a nossa identidade definitiva. Mas não nos podemos esquecer que apenas conseguiremos modelar e o barro, isto é, humanizarmo-nos, em comunhão com Deus e os outros.
A configuração que vamos dando ao barro que temos amassar e moldar vai-se revelando através das opções, atitudes do nosso dia-a-dia. Se nos interrogarmos com frequência sobre o sentido habitual das nossas opções, escolhas, decisões e atitudes, iremos obtendo a resposta fundamental sobre o modelo de pessoa que estamos a edificar.
Na verdade, não nascemos acabados. Deus criou-nos para que nos criemos. Somos por natureza chamados a ser criadores de nós mesmos e sempre em dinâmica de relações de amor. Na medida em que nos realizamos também estamos a melhorar o leque de talentos e possibilidades dos que se cruzam connosco na vida. Na medida em que nos humanizamos, vamos modificando a calda social deste barro a amassar-se.
No seio de uma sociedade fraterna e justa torna-se mais fácil modelar o barro segundo os critérios de Deus. O compromisso com a transformação do meio em que vivemos é também uma decisão importante para modelarmos de maneira mais plena e perfeita o barro que Deus está amassando connosco.
3-O Barro Primordial da Criança
Na fase infantil, o homem é sobretudo um barro a ser modelado pelos outros: pais, escola ou o contexto social. A criança é um feixe de possibilidades de vida livre, consciente e responsável que falta realizar. Na verdade, a criança é uma história por contar e um romance por escrever. Ao longo dessa história surgirão paixões, agressividades, sofrimentos, opções certas e erradas que formam o entretecido da história de cada pessoa.
Os adultos facilitam ou dificultam a estruturação e vivência desta história por contar, deste poema que ainda não está escrito e desta estátua não plenamente esculpida. Podermos dizer que uma criança é uma história de amor que ainda não aconteceu e uma canção que ainda não foi cantada. As crianças começam por adquirir o jeito do contexto em que crescem e se desenvolvem.
Se crescem num contexto de fé aprendem a ser crentes. Se crescem num ambiente religiosamente indiferente aprendem a ser indiferentes. Se crescem num ambiente onde as pessoas tomam a vida a sério, aprendem a ser pessoas comprometidas consigo, com os outros e com Deus. Se vivem rodeadas de atitudes hostis aprendem a defender-se através de atitudes e comportamentos agressivos. Se vivem em ambientes vazios de ternura começam a sentir-se inseguras e dominadas pelo medo. Se vivem em ambientes onde não são valorizadas nem estimadas ficam enredadas em sentimentos de auto compaixão e não alimentam a sua auto-estima.
A criança é um dom que ainda não se realizou e que apenas se realizará na medida em outros sejam dom para ela. A criança é um coração não poluído, mas que os outros podem introduzir progressivamente no mundo da poluição moral. É uma fé que ainda não foi posta à prova. Por isso acredita cegamente nos adultos que a rodeiam, em especial nos seus pais. Se vivem em meios marcados pela inveja aprendem a ser invejosas. Se têm a sorte de encontrar pessoas que as encorajam tornam-se auto-confiantes.
O Livro do Génesis diz que o Homem, depois de ter recebido o hálito da vida se tornou um ser vivente (Gn 2, 7). O hálito da vida é, como vimos, o Espírito Santo. São Paulo diz que é pelo Espírito Santo que somos assumidos e incorporados na Família de Deus: Filhos em relação a Deus Pai e irmãos em relação ao Filho de Deus (Rm 8, 14-16). Depois acrescenta que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5,5).
Somos templos do Espírito Santo, diz a Primeira Carta aos Coríntios (2 Cor 3,16). Podemos dizer que levamos no nosso íntimo o selo do amor de Deus, o qual nos orienta e ilumina nesta tarefa do modelar o barro. Deus Pai deu-nos o beijo da Criação. O Filho Eterno de Deus deu-nos o segundo beijo, isto é o beijo da Salvação.
Através deste beijo Salvador, o Filho de Deus comunicou-nos o Espírito Santo, a Água Viva que, no nosso íntimo se torna uma nascente a jorrar Vida Eterna (Jo 4, 14; 7, 37-39). Através de Cristo ressuscitado, o Homem tornou-se membro da Família divina como diz a Carta aos Gálatas (Gal 4, 4-7).
b) Cristo no Centro do Plano de Deus
1-Nele Temos a Vida Plena
Em Jesus Cristo realiza-se a Nova e Eterna Aliança. Por parte de Deus assina o Filho Eterno de Deus, encarnando pelo Espírito Santo. Por parte do Homem assina Jesus de Nazaré, tornando-se incondicionalmente fiel ao Espírito Santo que o ungiu (Lc 4, 18-21). Graças à sua fidelidade levamos connosco o penhor da Vida Eterna, isto é, o Espírito Santo que nos assinala para o dia da Salvação.
Deu a vida por amor e, por isso, agora vive em plenitude. Jesus é o centro e a cúpula do projecto salvador de Deus. Graças ao dom que nos fez do Espírito Santo levamos no nosso íntimo a dinâmica da Vida Eterna. O Espírito Santo restaurou, no nosso íntimo, a nossa pessoa ferida e mutilada pelo pecado.
Com efeito, o pecado é uma recusa de amor que mutila a pessoa do pecador e bloqueia a dinâmica humanizante das pessoas que foram afectadas por essa recusa de amor. A primeira vítima do pecado é o próprio pecador. Depois, os que são afectados por esse mesmo pecado. Quando afirmei que o pecado mutila a pessoa do pecador queria dizer que as nossas recusas de amor destroem em nós elos de relacionamento fraterno e de comunhão amorosa. O Espírito Santo restaura em nós estes estragos provocados pelo pecado.
2-A Morada da Plenitude
Ao comunicar-nos o Espírito Santo, Jesus comunicou à Humanidade a sua condição humano-divina, introduzindo-nos na plenitude da vida. O Espírito Santo é o guia seguro que nos conduz à “galáxia” da Comunhão Universal, isto é, a interioridade máxima e coração personalizado do Universo. É a esfera da Transcendência, ponto de encontro de todas as pessoas capazes de reciprocidade amorosa: É esta a dinâmica do Céu.
Jesus Cristo é o Centro e o medianeiro desta Comunhão Universal. N’Ele se encontram e interagem em unidade orgânica o melhor de Deus e do Homem. Deste modo se torna para nós a Árvore da Vida, plantada no centro do Paraíso à qual todos nós temos acesso. Todos temos acesso ao seu fruto. Aqueles que o comem têm a Vida Eterna (Jo 6, 51). Dá-nos a Água Viva que jorra em nós rios de Vida Eterna (Jo 4, 14; 7, 37-39).
No momento da Sua morte e ressurreição foi à morada dos mortos, isto é, entrou em comunhão com a Humanidade que o tinha precedido. Deste modo, a Humanidade entra na Festa da Plenitude humano-divina. Comunicou a dinâmica divinizante do Espírito Santo a todos, desde Adão até ao Bom Ladrão.
3- Cristo e a Festa do Paraíso
Abriram-se as portas do Paraíso e começou a Festa da Vida Plena. Nesta Festa todos dançam a música do Amor. Cada qual, porém, com o jeito de amar que adquiriu durante a vida. É este o vinho bom que vem no fim (cf. Jo 2, 1-10), a fim de a alegria atingir o máximo que a vida pode dar, isto é, o banquete das bodas do Cordeiro: “Mostrou-me depois um rio de Água Viva, resplandecente como cristal, o qual brota do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da praça da cidade, junto à margem do rio, está a Árvore da Vida (...), cujas folhas servem de medicamento para as nações” (Apc 22, 1-2).
É este o cenário da Vida Eterna desenhado pelo Livro do Apocalipse. Na morada da plenitude não há mais luto, nem lágrimas. O sofrimento, a dor e o ódio são totalmente banidos da Cidade Nova: “Vi, depois, um novo Céu e um nova Terra. O primeiro Céu e a primeira Terra tinham desaparecido e o mar já não existia. E vi descer do Céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, a Nova Jerusalém, já preparada, qual noiva adornada para o seu esposo. E ouvi uma voz potente que vinha do trono e dizia: “esta é a morada de Deus entre os homens”. Deus habitará com eles, os quais formarão o Seu Povo. O mesmo Deus estará com eles e será o seu Deus. Enxugará todas as lágrimas dos seus olhos. E não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. As primeiras coisas passaram. O que estava sentado no trono afirmou: “Eu renovo todas as coisas” (Apc 21, 1-5 a).
Jesus Cristo tomou Deus e o Homem a sério. Por isso ele é o coração do projecto de Deus. Passou a vida a fazer o bem a toda a gente. Foi mártir do Amor, pois todos os que se opunham ao bem, à justiça e à fraternidade mataram-no. Por isso agora, vive para sempre em todos nós.
c) Jesus e a Novidade do Reino de Deus
1-O Filho de David
A expectativa do Reino de Deus é muito anterior a Jesus Cristo. No entanto, Com Jesus Cristo o tema do Reino de Deus ganhou uma dimensão Nova e libertadora, pois passa a ser associado ao amor salvador de Deus.
Tudo começou quando o profeta Natã anunciou a David que o Senhor Deus lhe ia suscitar um filho, o qual construiria um templo para Deus e reinaria com grande poder e majestade. Deus prometeu a David adoptar este seu filho como filho de Deus, fazendo que o seu reino permaneça para sempre (2 Sam 7, 12-16). Durante séculos o povo bíblico suspirou pela vinda do filho de David aguardando a restauração do Reino de David com todo o seu esplendor. Segundo o sonho do profeta Isaías, os povos da terra viriam a Jerusalém procurando a Sabedoria de Deus, trazendo as suas riquezas, fazendo de Jerusalém a capital mais rica do mundo (Is 60, 1-11).
Esta expectativa permaneceu até à vinda de Jesus. Eis as palavras que o anjo comunica a Maria no momento em que lhe comunica que ela vai ser a mãe do Messias: “Disse-lhe o anjo: “Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus. Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu Pai David. Reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim” (Lc 1, 30-33). Era assim que os Apóstolos imaginavam a missão messiânica de Jesus. Jesus não via as coisas deste modo. O Espírito Santo tinha-o feito compreender que a sua missão se orientava num outro sentido bem diferente.
2- Jesus e o Reino Como Libertação
Eis o modo como o evangelho de Lucas descreve a descoberta que Jesus fez da sua missão messiânica: “Jesus veio a Nazaré onde se tinha criado. Segundo o seu costume entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o deparou com a passagem em que está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres. Enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista. Enviou-me para libertar os oprimidos e a proclamar um ano favorável do Senhor (…). Começou, então, a dizer-lhes: “Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4, 18-21).
Ao contrário de Jesus, os Apóstolos esperavam que ele viesse restaurar o reino de David e fazer de Jerusalém a capital mais rica do mundo. Eis a razão pela qual Jesus chama Satanás a Pedro, pois este não entende as coisas segundo Deus, mas sim segundo os critérios dos homens (Mt 16, 23). Era normal que, perante uma compreensão destas eles aspirassem aos lugares mais importantes na corte messiânica. E foi assim que Tiago e João seu irmão se dirigiram a Jesus pedindo-lhe que lhes cedesse os dois lugares mais importante na corte. Os outros dez, ao verem este comportamento começaram a protestar.
Jesus aproveitou a oportunidade para lhes explicar a sua missão não se encaixava na visão messiânica tradicional, segundo a qual o Messias seria um rei poderoso. Pelo contrário, diz-lhes Jesus, ele veio para servir e dar a vida pela salvação do mundo (cf. Mc 10, 35-45).
3-Os Apóstolos e o Reino de Deus
O evangelho de São Lucas tem um texto muito sugestivo sobre o lugar de destaque que os Apóstolos terão no banquete do Reino de Deus. Mas é evidente que estas palavras, na boca de Jesus, não se referiam a um poder e um domínio terreno: “Vós permanecestes sempre a meu lado nas minhas provações. Por isso disponho do Reino em vosso favor, como meu Pai dispõe dele em meu favor, a fim de que comais e bebais à minha mesa no meu reino. E haveis de sentar-vos em doze tronos para julgardes as doze tribos de Israel (Lc 22, 28-30).
Após a Ressurreição de Jesus, o Espírito Santo foi conduzindo os discípulos no sentido de estes compreenderem o alcance da missão messiânica de Jesus. Nos finais do século primeiro, o Evangelho de São João já tem uma visão totalmente distinta: “Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazer rei, retirou-se de novo sozinho para o monte” (Jo 6, 15). Mais à frente acrescenta: “ Pilatos perguntou a Jesus:’ tu és rei dos judeus?’ (...). Jesus respondeu, o meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que eu não fosse entregue às autoridades judaicas. Portanto, o meu reino não é de aqui. Disse-lhes Pilatos: ’logo, tu és rei? Respondeu-lhe Jesus: ‘é como dizes: eu sou rei’ Para isto nasci e vim ao mundo: dar testemunho da verdade” (Jo 18, 33-37).
Estas palavras do evangelho de São João já não têm qualquer conotação de poder terreno. As primeiras gerações cristãs, no entanto, esperavam uma segunda vinda de Jesus para julgar os vivos e os mortos e restaurar o Reino de David (Act 3, 19-21; Lc 22, 28-30). Está nesta mesma linha a visão milenarista do Apocalipse (Apc 20, 4-6).
Estamos no terceiro milénio. Isto significa que temos muitos séculos de reflexão sobre o mistério do Reino e o projecto salvador de Deus. Para os cristãos do terceiro milénio, o Reino de Deus é a comunhão humano-divina da Família de Deus. Por outras palavras, o Reino de Deus, para nós, significa a assunção e incorporação da Humanidade na comunhão orgânica da Santíssima Trindade. Esta assunção e incorporação acontece pelo facto de estarmos organicamente unidos a Jesus ressuscitado.
4-O Reino de Deus Como Comunhão
No evangelho de São João, Jesus afirma que ele e o Pai fazem um (Jo 10, 30). Por outro lado, Jesus faz com a Humanidade uma união orgânica, pois ele é a cepa da videira da qual nós somos os ramos (Jo15, 1-7). A união orgânica que nos une a Jesus Cristo é idêntica, diz o evangelho de São João, à união que existe entre Cristo e o Pai. “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive e eu vivo pelo Pai, do mesmo modo quem me come viverá por mim” (Jo 6, 56-57).
A carne e o sangue de Cristo ressuscitado é o Espírito Santo, o princípio vital que alimenta a união orgânica que une o Filho Eterno de Deus e Jesus de Nazaré, o Filho de Maria. É a Água viva que Jesus nos dá, a qual faz jorrar uma nascente de vida eterna nos nosso coração, comunicando-nos a vida humano-divina de Jesus Cristo (Jo 7, 37-39; 4, 14; 6, 62-63). O Espírito Santo é o princípio animador da comunhão universal do Reino que faz de Cristo um com o Pai e de nós um com Cristo, consumando assim a união humano-divina do Reino de Deus (Jo 17, 21-23). Todos os que são animados pelo Espírito Santo, diz São Paulo, são filho e herdeiros de Deus Pai e irmãos e co-herdeiros do Filho de Deus (Rm 8, 14-17).
Podemos dizer que o Reino de Deus é a plenitude da Vida Eterna com o nosso Deus, como diz o Apocalipse: “Vi, então, um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar já não existia. Vi descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, a nova Jerusalém, preparada, qual noiva adornada para o seu esposo. E ouvi uma voz potente que vinha do trono e dizia: “Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com os homens, e estes serão o seu povo. Deus será o seu Deus e estará com eles enxugando todas as lágrimas dos seus olhos. Então não haverá mais morte, nem luto, nem pranto nem dor, pois as primeiras coisas passaram. O que estava sentado no trono disse: eu renovo todas as coisas” (Jo 21, 1-5).
5-As Pessoas na Plenitude do Reino
O Reino de Deus é constituído apenas por pessoas que se encontram capacitadas para a amorosa. Podemos dizer que o Reino de Deus, portanto, é a esfera da Comunhão e da novidade permanente. Na Festa da Vida Eterna os seres humanos dançam o ritmo do amor, mas cada qual com o jeito com que treinou durante a sua génese pessoal na História. Por outras palavras, os ressuscitados mantêm a identidade que adquiriram na História.
Somos pessoas em construção. A nossa identidade espiritual é precisamente o jeito de nos relacionarmos amorosamente que vamos edificando na história. O Reino de Deus é a esfera do amor, essa dinâmica de bem-querer que tem como origem a pessoa e como meta a comunhão. A universalização do Reino de Deus aconteceu precisamente com o acontecimento da morte e ressurreição de Jesus.
Na verdade, Jesus Cristo venceu a morte no próprio acto de morrer. Enquanto, sobre a cruz, ia morrendo o que no homem é mortal, o imortal, ia sendo glorificado e directamente incorporado na comunhão da Santíssima Trindade. Deste modo, ao morrer o último elemento daquilo que em Jesus é mortal, o imortal, isto é, a sua interioridade espiritual, estava plenamente ressuscitada.
Como vemos, Cristo não esteve um só minuto sob o domínio da morte, como convinha ao Senhor da Vida! Foi assim que Cristo, ao morrer, destruiu a nossa morte e ao ressuscitar restaurou e conduziu a nossa vida à plenitude. Foi este o modo como o Espírito Santo realizou em Cristo a vitória sobre a morte, não apenas para si, mas também para todos nós. Foi assim que aconteceu a plenitude dos tempos, isto é, a fase da recriação e da divinização da Humanidade.
Se não tivesse havido pecado, a salvação em Cristo consistiria apenas na dinâmica da divinização humana. Por outras palavras, sem o pecado não teria sido necessário a recriar o Homem Novo. Neste caso teria bastado conduzir a Humanidade à sua plenitude pela assunção na comunhão da Santíssima Trindade.
Eis as palavras de São Paulo sobre a plenitude à qual Deus nos conduziu em Cristo: “Foi assim que Deus nos escolheu em Cristo, antes da fundação do mundo, a fim de sermos santos e irrepreensíveis no amor, caminhando na sua presença. Predestinou-nos para sermos adoptados como seus filhos por meio de Jesus Cristo de acordo com a sua vontade, a fim de ser louvado e glorificado pela graça que derramou sobre nós (…). Foi este o modo como Deus nos manifestou o mistério da sua vontade e o plano amoroso que estabelecera, a fim de conduzir os tempos à sua plenitude, reunindo sob o domínio de Cristo tudo o que existe no Céu e na Terra.” (Ef 1, 4-10).
d) Fidelidade de Jesus Cristo e Salvação
Graças ao acontecimento de Cristo, a Humanidade e a Divindade ficaram definitivamente unidas. Como sabemos, as pessoas humanas não são ilhas. As pessoas divinas também não. A Humanidade, tal como a Divindade, forma uma comunhão orgânica. Existe apenas uma Divindade, apesar de serem três as pessoas divinas. Do mesmo modo existe apenas uma Humanidade, apesar de serem biliões as pessoas que a constituem. Segundo esta maneira de entender as coisas, o bem e o mal que as pessoas fazem não as afecta apenas a elas, mas a toda a união orgânica que forma a Humanidade.
Esta maneira de entender as coisas aparece muito clara no livro do profeta Isaías onde o profeta faz uma leitura desse acontecimento chocante que é o sofrimento dos justos no exílio de Babilónia (Is 52, 13-53, 12). Até este período o povo bíblico pensava que os justos não podiam sofrer, pois Deus é justo e não vai fazer sofrer o inocente. Neste período pensava-se que Deus era o autor do sofrimento. Provocava-o para castigar os pecados das pessoas. Segundo esta perspectiva, como o justo não é pecador, não deve sofrer. No caso das crianças que sofrem, pensava-se que os pais eram pecadores.
Ainda no Novo Testamento encontramos vestígios desta mentalidade: “Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. Os seus discípulos perguntaram-lhe, então: Rabi, quem pecou para este homem ter nascido cego? Ele, ou os seus pais? Jesus respondeu: nem pecou ele nem os seus pais. Isto aconteceu para se manifestarem nele as obras de Deus (Jo 9, 1-3).
O acontecimento do exílio levou os pensadores do povo de Deus a buscar uma nova explicação para a questão do sofrimento, pois não há dúvida de que há justos que sofrem. A saída encontrada pelo segundo Isaías é que o justo, por fazer um todo orgânico com o povo pecador, sofre com ele as perseguições e violências. Segundo a reformulação do Segundo Isaías, o sofrimento do justo vai reverter em favor do povo pecador. Como Deus não suporta o sofrimento do justo, Deus vai tomar partido em seu favor, libertando-o do exílio e, com ele vão ser também libertos os pecadores. Graças ao facto de o povo fazer uma união orgânica, facilmente se passa do justo sofredor para o povo e do povo para o justo sofredor. Como efeito, os pecadores fazem parte do povo e os justos também. Por esta razão o sofrimento do justo vai ser redentor para os pecadores:
“O meu servo terá êxito, pois será engrandecido e exaltado. Muitos povos ficaram espantados diante dele, ao verem o seu rosto desfigurado e o seu aspecto disforme. Do mesmo modo, muitos povos e reis vão ficar espantados ao verem as coisas maravilhosas e inauditas que vão acontecer (a libertação da Babilónia) (…). O servo cresceu diante do Senhor sem figura e sem beleza, como um rebento ou uma raiz em terra árida (o exílio). Vimo-lo sem aspecto atraente. Desprezado e abandonado pelos homens, como homem das dores, habituado ao sofrimento, desprezado e desconsiderado, diante do qual se tapa o rosto.
Na verdade ele tomou sobre si as nossas doenças e carregou as nossas dores. Nós o reputávamos como um leproso ferido por Deus e humilhado. Mas foi ferido por causa dos nossos pecados, Esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo caiu sobre ele, pois fomos curados nas suas chagas (Deus tomou partido em favor dele). Andávamos desgarrados como ovelhas perdidas, cada qual seguindo o seu caminho. Mas o Senhor carregou sobre ele os nossos crimes (perdoando-nos por causa dele). Foi maltratado. Humilhou-se e não abriu a boca, tal como o cordeiro que é levado ao matadouro ou a ovelha emudecida nas mãos do tosquiador. Sem defesa nem justiça, levaram-no à força. Quem é que se preocupou com o seu destino?
Foi ferido por causa dos pecados do meu povo e suprimido da terra dos vivos. Deram-lhe sepultura entre os ímpios (pagãos caldeus) e uma tumba entre malfeitores, apesar de não ter cometido qualquer crime nem praticado qualquer fraude. Aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento (levando-o para o exílio), mas a sua vida tornou-se um sacrifício de reparação. Terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias. O desígnio do Senhor (a libertação do exílio) realizar-se-à por meio dele (…). O Justo justificará a muitos, pois carregou com os seus crimes. Por esta razão terá uma multidão como herança (o povo resgatado do exílio). Receberá muita gente como despojos, pois entregou a sua vida à morte. Foi contado entre os pecadores, pois tomou sobre si os pecados de muitos, sofrendo pelos culpados” (Is 52, 13-53,12).
Perante a dificuldade de justificar os sofrimentos e a morte de Jesus, os discípulos recorreram a estes textos magníficos, dizendo que Jesus é o Servo sofredor. Fomos salvos pelo sofrimento de um homem justo, Jesus Cristo, o Messias. “Carregou sobre si os nossos pecados sobre o madeiro da Cruz, a fim de que nós, estando mortos para o pecado, possamos viver na justiça. Fomos curados nas suas feridas” (1 Pd 2, 24). Um morreu por todos e, nele todos morreram para o pecado (2 Cor 5, 14).
Deus tomou partido por Jesus, ressuscitando-o e glorificando-o. Como a Humanidade forma um todo orgânico e Jesus é homem, todos fomos assumidos e glorificados nele e com ele. Este mesmo argumento é usado na Segunda Carta a Timóteo: “Eis uma palavra digna de confiança: Se morremos com Cristo também vivemos com ele” (2 Tim 2, 11).
Em Cristo Jesus todos formamos uma só união orgânica. São Paulo descreve de maneira muito bonita esta união orgânica dizendo que não importa a raça, a língua, o estatuto social, o povo ou o sexo das pessoas. Todos têm a mesma dignidade em Jesus Cristo, sublinha o Apóstolo: “Já não há diferença entre judeu ou grego, escravo ou livre. Já não há diferença entre homem ou mulher, pois todos formamos um em Jesus Cristo” (Gal 3, 28). Noutro texto acrescenta: “Apesar de sermos muitos formamos um só corpo e todos somos membros uns dos outros” (12, 5).
Jesus Cristo é a base da nossa união orgânica à divindade: “Nesse dia compreendereis que eu estou no Pai, vós em mim e eu em vós” (Jo 14, 20). Na sua oração após a ceia pascal, Jesus recorda esta verdade enquanto ora a Deus Pai: “Eu neles, tu em mim, Pai, a fim de eles serem perfeitos na unidade. Deste modo o mundo conhecerá que me enviaste e os amaste a eles, tal como me amaste a mim” (Jo 17, 23). Graças a esta união orgânica entre nós e Cristo, fomos incorporados na Família de Deus, tornando-nos filho em relação a Deus Pai e irmãos em relação a Deus filho.
O Espírito é o amor maternal de Deus. Com seu jeito maternal de amar conduz-nos ao Pai que nos acolhe como filhos e ao Filho que nos acolhe como irmãos: “Todos os que se deixam guiar pelo Espírito Santo são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para andardes no temor. Pelo contrário, recebestes um Espírito de adopção graças ao qual chamais “Abba”, ó Pai (…). Ora, se somos filhos somos também herdeiros. Somos herdeiros de Deus pai e co-herdeiros com Cristo, pressupondo que com ele sofremos, para também com ele sermos glorificados (Rm 8, 14-17).
E mais à frente São Paulo explicita ainda melhor a nossa pertença a Deus por Cristo: “Àqueles que Deus conheceu antecipadamente, também os predestinou para serem uma imagem idêntica à do seu Filho, de tal modo que este é o primogénito de muitos irmãos” (Rm 8, 29). A comunidade cristã é o sacramento desta unidade orgânica universal já enxertada e assumida em Deus. São Paulo insiste em que os membros da comunidade formam o corpo de Cristo: “Comemos de um só pão para formarmos um só corpo” (1 Cor 10, 17). E ainda: “Vós sois membros do Corpo de Cristo. E cada um de vós é uma parte deste corpo” (1 Cor 12, 27).
Sabemos como o corpo é mediação de encontro e comunicação. A comunidade, como Corpo de Cristo, é mediação de encontro e comunicação do mundo com Cristo ressuscitado. Nesta mesma linha se situa o seguinte texto da Carta aos Efésios: “Portanto, cada um deite fora a hipocrisia e fale a verdade ao seu irmão, pois somos membros de um só corpo” (Ef 4, 25).
A raiz desta união orgânica universal é Jesus Ressuscitado. O Espírito é o seu princípio vital que anima e dinamiza todo o organismo. O Espírito Santo é o princípio de organicidade e dinamismo que anima todo o corpo. É a seiva que circula do tronco da videira para os ramos, tornando-os fecundos (Jo 15, 1-8). Inseridos na comunhão orgânica universal, assumidos na família Divina e Animados pelo Espírito Santo, princípio vital desta comunhão, a nossa vida passa a dar frutos de excelente qualidade.
Graças a esta união Cristo e à fecundidade do Espírito Santo vamos deixando os frutos da carne, isto é, as acções do homem velho e passamos gradualmente a dar os frutos da Nova Humanidade enxertada em Cristo: “A carne deseja o que é contrário ao Espírito e o Espírito o que é contrário à carne. Se sois conduzidos pelo Espírito não estais sob o domínio da carne, pois as obras da carne são patentes: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, ciúmes, fúrias, ambições, discórdias, partidarismos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas parecidas. Sobre estas coisas vos previno como já o fiz antes: Os que praticam estas coisas não herdarão o Reino de Deus. Por seu lado, os frutos do Espírito São: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto domínio. Contra estas coisas não há lei. Os que são de crucificaram a carne. Se vivemos pelo Espírito, sigamos o Espírito. Não nos tornemos vaidosos, provocando-nos e tendo inveja uns dos outros” (Gal 5, 17-26).
Como acabamos de ver, o primeiro fruto do Espírito Santo é o amor e os restantes frutos são modos de concretizar o amor. O amor não é sentimentos. É mais que uma mera experiência. É o sinal seguro da presença de Deus no ser humano. O amor é a manifestação da glória de Deus em nós. De facto, a glória de Deus é a manifestação do seu amor pela Humanidade. Quando uma pessoa decide amar está a dizer sim à voz do Espírito Santo que se faz ouvir na sua consciência.
O amor é a expressão máxima da fecundidade da vida, pois é o primeiro e o principal fruto do Espírito Santo. Através do amor dos outros por nós o Espírito Santo capacita-nos para amar. Por outro lado, através desta mesma capacidade o Espírito interpela-nos e chama-nos a amar os outros. É este o modo como o Espírito Santo ser o animador da comunhão orgânica humano-divina da qual Jesus Cristo é a raiz.
e) Morte Ressurreição e Vida Eterna
1-Morte e Vida Natural
A morte não mata a pessoa. Apenas o nosso ser exterior é aniquilado pelo acontecimento da morte. Como fenómeno natural, a morte, atinge os seres vivos naquilo que têm de vida natural, isto é, de vida biológica e psíquica. Mas a vida pessoal-espiritual já não é produto da natureza. Na verdade, a marcha da evolução natural chega até à hominização, isto é, ao nível biológico com a complexidade própria do Homem. No entanto, a Humanização é uma tarefa de cada pessoa e que mais ninguém pode realizar. Isto quer dizer que a morte domina em tudo o que é obra da natureza. Mas o nível da vida pessoal e espiritual escapa ao domínio da morte, pois não é obra da natureza.
Na verdade, a pessoa humana é um ser em construção. Somos autores de nós mesmos, a partir dos talentos que recebemos dos outros. A nossa realização pessoal acontece como fruto de um processo de humanização. De facto, temos de nos humanizar, pois a natureza não nos humaniza. Além ninguém nos pode substituir na tarefa da nossa humanização, pois esta concretiza-se num crescimento pessoal livre, consciente e responsável.
A natureza humana é princípio de acção e estruturação do Homem. Fornece-nos os dados da Hominização, isto é, o nosso ser exterior que é biológico e psíquico. O crescimento do nosso ser interior acontece mediante saltos de qualidade que acontecem a partir de decisões, escolhas e realizações com a densidade do amor. A lei da humanização é: Emergência e estruturação pessoal-espiritual em relações de amor e convergência para a Comunhão Humana Universal.
2- Morte e Vida Espiritual
Como vemos, humanizar-se é emergir, isto é, desabrochar como interioridade pessoal livre, consciente, responsável, única, original, irrepetível e capaz de comunhão amorosa. A dinâmica do amor é a força que faz emergir a nossa interioridade pessoal-espiritual. Na medida em que emerge e se fortalece o nosso ser espiritual, tornamo-nos capazes de comungar com os irmãos. Com efeito, a morte mata apenas o que pertence à esfera da natureza.
Existe a possibilidade de uma Segunda morte, mas esta passa-se, não ao nível do biológico, mas sim do pessoal-espiritual. É verdade que a dimensão espiritual é imortal na sua essência, mas não na possibilidade de se possuir plenamente em contexto de comunhão amorosa. Com efeito, a plenitude da pessoa não está em si, mas na reciprocidade da comunhão. A pessoa pode reduzir-se a si, opondo-se de modo gradual, progressivo e incondicional ao amor.
A Segunda morte não é obra da natureza, mas das nossas escolhas, decisões e opções egoístas. Se isto acontecer, a pessoa auto enrosca-se, fechando-se ao amor e à comunhão do Reino de Deus. A Segunda, portanto, só existe se nós decidirmos optar por ela. Como sabemos, Deus é amor e não pode negar-se a si mesmo. Isto quer dizer que Deus não é o criador do estado de inferno ou da morte eterna. Por outras palavras, por ser amor, Deus não condena ninguém.
As pessoas que se condenam vão para a morte eterna por sua própria decisão. Se Deus é amor não tem sentido ter medo de Deus, pois não é normal ter medo do amor. No entanto, não devemos esquecer-nos de que é muito perigoso brincar com Deus, pois a vontade de Deus coincide rigorosamente com o que é melhor para nós. Na verdade, brincar com Deus significa brincar com o que é melhor para nós. O resultado desta atitude só pode ser o malogro e o fracasso.
3-A Morte e as Coordenadas da Vida Eterna
A morte natural, como vimos, apenas destrói as dimensões limitativas do nosso ser exterior. Pelo acontecimento da morte, a pessoa liberta-se das limitações do eu exterior: Coordenadas da biologia, da raça, da cultura, da língua, da nacionalidade, do espaço e do tempo. Por outras palavras, através do acontecimento da morte, a pessoa entra nas coordenadas da universalidade e equidistância.
Como sabemos, a pessoa humana não nasce feita. A história de cada ser humano é o processo da sua emergência pessoal-espiritual. A morte é o parto através do qual nasce o Homem interior e definitivo. O Homem Novo não emerge se não nos dispormos a gerá-lo no nosso íntimo através de opções e compromissos de amor. O evangelho de São João diz que temos de nascer de novo pela força vital do Espírito santo, a Água Viva (Jo 3,6). O Homem Novo não nasce sem que vá morrendo o homem velho nas suas tendências de prepotência, domínio, exploração dos irmãos e apropriação dos bens comuns. De entre os partos da vida nova, a morte é o que tem maior magnitude.
4-A Morte é Condição de Plenitude
A morte como parto de nascimento é um acontecimento exclusivamente humano.Eis a razão pela qual apenas a pessoa humana tem consciência da sua morte. Para o ser humano, a morte é uma interpelação e um convite a aprofundar o sentido da vida. Podemos dizer que o acontecimento da morte ajuda-nos a compreender que, de facto, nascemos para renascer, como diz o evangelho de São João (Jo 3, 3-6).
Com efeito, o sentido da vida cresce em paralelo com o sentido da morte. Graças à Palavra de Deus e à luz do Espírito Santo nós vamos compreendendo pouco a pouco que não nascemos para acabar no cemitério ou no vazio da morte. Na medida em que o ser humano se humaniza, o seu ser espiritual emerge no seu interior como o pintainho dentro do ovo.
O acontecimento da morte, visto a esta luz, surge como o momento em que rebenta a casca do ovo e o pintainho nasce e nasce para festa da vida plena. Por outras palavras, enquanto está dentro do ovo, o pintainho não pode participar da plenitude da festa. Se o bebé permanecesse para sempre no útero materno nunca poderia atingir a plenitude. O acontecimento da morte é, na verdade, o parto que possibilita à pessoa a plenitude da vida.
O ser humano normal não é alheio ao acontecimento da própria morte. A meditação sobre o sentido deste acontecimento vai abrindo de modo gradual e progresso horizontes para a transcendência da vida eterna. Por pertencer à esfera da vida transcendente, a vida pessoal-espiritual só pode encontrar a plenitude nas coordenadas que estão para além da morte. A meditação sobre o sentido da morte cria no ser humano uma aptidão privilegiada para compreender e aceitar a Palavra de Deus. Por ser um homem perfeito, Jesus Cristo pertence ao património global da Humanidade.
5-Alcance Universal da Ressurreição
Isto quer dizer que a ressurreição de Cristo, por não ser um acontecimento individual, é o início da ressurreição universal. É verdade que pela sua condição espiritual, a pessoa humana é imortal. Mas este facto não garante ao ser humano a plenitude da ressurreição em Cristo. Podemos dizer que, com a ressurreição de Cristo, a Humanidade deu um salto de qualidade.
Para partilhar da ressurreição com Cristo é preciso estar unidos ao Senhor como os ramos da videira à cepa (Jo 15, 1-7). Apenas os que bebem a Água Viva que Cristo oferece aos que vivem a fraternidade, partilham da plenitude da ressurreição (Jo 4, 21-23; 7, 37-39). Partilhar da ressurreição de Jesus Cristo é preciso formar um só corpo com ele, como diz São Paulo (1 Cor 10, 17; 12, 13; 12, 27). Utilizando a imagem da Árvore Vida de que nos fala o Livro do Génesis, podemos dizer que a ressurreição implica comer o fruto desta árvore (Gn 3, 22).
A Árvore da Vida é Jesus Cristo. O seu fruto, isto é, o Espírito Santo, está ao alcance de todos nós, como diz o evangelho de São João: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu hei-de ressuscitá-lo no último dia (Jo 6, 54). Depois acrescenta: “Assim como o Pai que me enviou vive e eu vivo pelo Pai, também quem me come viverá por mim” Jo 6, 57). Eis a razão pela qual a simples imortalidade não constitui a Boa Notícia do Evangelho, mas sim a ressurreição, a verdadeira condição para a pessoa humana atingir a sua plenitude. Com efeito, a ressurreição implica a assunção da pessoa humana e a sua incorporação na plenitude na comunhão familiar da Santíssima Trindade.
6- A Morte Ilumina o Sentido da Vida
A morte natural, portanto, é o parto final e a derradeira possibilidade de o ser humano renascer para a plenitude. O sentido da vida cresce enormemente quando meditamos sobre o sentido da morte. Mas é sobretudo ao avizinhar-se a fase terminal da vida que o homem sábio compreende e saboreia o significado profundo da vida. Nessa etapa avançada da vida, a pessoa compreende de modo muito claro que o amor é a grande razão que vale para viver e para morrer. Podemos resumir esta sabedoria podemos dizer que a nossa existência histórica é válida na medida em vivemos para amar e vamos morrendo por amor. Eis a grande razão que confere sentido de plenitude à vida.
Vista a esta luz, a morte é o acontecimento que nos possibilita a entrada no regaço do próprio e acolher no nosso coração seu amor. São Paulo diz que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5,5). São Lucas diz que Jesus Cristo, no momento da sua morte abriu-nos as portas do Paraíso (Lc 23, 43). O Livro do Génesis diz que o Paraíso foi fechado à Humanidade devido ao pecado de Adão (Gn 3, 23-24). Assim como a morte veio por Adão, diz São Paulo, a vitória sobre a morte, veio por Jesus Cristo (Rm 5, 17-18).
Podemos dizer que não basta ser imortal para atingirmos a plenitude da vida. As pessoas que porventura estejam em estado de inferno são imortais, mas não estão na plenitude dos ressuscitados com Cristo. A plenitude da vida acontece apenas no contexto da Comunhão Universal da Família divina. Ao criar o Universo, Deus estava a ser o princípio da Criação. Ao assumir-nos na Comunhão da Família Divina tornou-se a plenitude desta mesma Criação.
São Paulo diz que Deus nos predestinou para sermos conformes com o seu Filho, a fim de ele ser o primogénito de muitos irmãos (Rm 8, 28-29). Criados à imagem de Deus, fomos talhados para ser filhos e herdeiros de Deus Pai e co-herdeiros com Cristo que é nosso irmão (Rm 8, 14-17). Deus Pai quis que em Cristo residisse a primazia e a plenitude de todas as realidades (Col 1, 18-19). Meditando a morte à luz da fé cristã os crentes ficam capacitados para proclamar o Evangelho da Vida Eterna.
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