O Homem como Ser Projectado para Deus





a)O Homem Foi Talhado Para Deus
1-Tornar-se Imagem de Deus
2-A Bondade Como Tarefa
3-Iguais, Mas Diferentes nos Talentos
4-A Vocação Fundamental do Ser Humano

b)Construir-se Como Pessoa
1-A Marcha da Humanização
2-Construir-se Como Pessoa
3-Realizar-se Como Ser Livre
4-Realizar-se Como Ser Responsável

c) O Mistério do Mal
1-O Bem e o Mal na História Humana
2-A Dinâmica Negativa do Pecado
3-Vida Espiritual e Perigos do Mundo
4- Cristo e a Vitória Sobre o Pecado

d) A Plenitude do Homem Com Deus
1-Aprender a Viver e a Morrer
2-O Divino Como Plenitude do Humano
3- A Vida Eterna Emerge na História
4- As Coordenadas da Vida Eterna
5- A Nossa Identidade no Reino de Deus




a) O Homem Foi Talhado Para Deus

1- Tornar-se Imagem de Deus

A nossa Fé diz-nos que o Homem é o único ser que Deus criou à sua imagem e semelhança. Como Deus é pessoas em relações de amor, a sua imagem não podiam ser homens isolados, mas sim pessoas a construir-se em dinâmica de relações. Na verdade, as pessoas humanas são pessoas em realização e a caminhar para uma comunhão orgânica, interactiva e fecunda.

Um pessoa que ao longo da vida se tenha fechado ao encontro e ao amor, acaba por fica um esboço inacabado e distorcido e não uma imagem perfeita de Deus. O Livro do Génesis diz que o casal humano, por ser uma união orgânica, interactiva e fecunda é uma imagem privilegiada de Deus (Gn 1, 27). Por outras palavras, a comunhão matrimonial e o seu agregado familiar são, de facto, uma expressão especial da Família Divina.

Como sabemos, o Antigo Testamento proíbe esculpir imagens de Deus. O sentido desta proibição é afirmar que apenas Deus pode esculpir imagens perfeitas de si mesmo. Além disso, o ser humano, ao pretender esculpir uma imagem de Deus só o poderia fazer esculpindo uma imagem do Homem. Ora Deus não é imagem de Homem, mas este é que é imagem de Deus.

Ao criar o Homem, diz o livro do Génesis, Deus insuflou-lhe o hálito da vida e o Homem tornou-se um ser vivente. Esta afirmação quer dizer que Deus, no que se refere à criação do Homem teve uma intervenção especial, o que não aconteceu em relação a qualquer outro animal. O relato bíblico sugere que Deus deu um beijo no barro primordial do qual viria emergir a Humanidade.

Através deste beijo o hálito da vida divina passou para o interior do barro dando origem ao homem que é um barro com coração, isto é, vida espiritual (Gn 2, 7). O sopro da vida divina (Ruah Eloim) é, na visão bíblica, o Espírito Santo. Eis a razão pela qual São Paulo diz que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5).

Com o seu jeito maternal de amar, o Espírito Santo vai-nos interpelando e iluminando, a fim de nos ajudar a esculpir de modo fiel a imagem de Deus, cujo esboça levamos no nosso coração. Podemos dizer que o Espírito Santo está constantemente no nosso coração, mas sem jamais nos substituir. Quando nos opomos ao amor, estamos a opor-nos à sua acção em nós e, portanto, a recusar-nos ser imagem de Deus.

O ser humano será tanto mais imagem de Deus quanto mais se realize como pessoa livre, consciente, responsável e em relações de comunhão. Os seres humanos são pessoas em construção. Isto quer dizer que a imagem de Deus, em nós, é uma realidade a emergir de modo gradual e progressivo. Com efeito, quando contamos aos outros a nossa história pessoal, estamos a desenhar a imagem de Deus que fomos moldando em união com o Espírito Santo.

Se nos fecharmos ao amor jamais seremos capazes de estruturar e, portanto, incapazes valorizar devidamente a imagem de Deus em nós e nos outros. A Carta aos Efésios sugere que o Espírito Santo, é o grande escultor da imagem de Deus em nós, a qual se edifica sobre a justiça e a santidade (Ef 4, 23-28). Na verdade, a pessoa divina que tem a missão de intervir de modo especial na criação do Homem é, o Espírito Santo.

2-A Bondade Como Tarefa

Deus chama-nos a ser bons. Logo no começo da obra criadora, Deus imprimiu a bondade no conjunto das criaturas. O Livro do Génesis repete várias vezes que as obras criadas por ele são boas: “E Deus viu que a luz era boa (Gn 1, 4). “Ao solo seco, Deus chamou Terra, e ao conjunto das águas, chamou mares. E Deus viu que isto era bom” (Gn 1, 10). “Que a Terra germine plantas cada qual com as sementes próprias da sua espécie e árvores que produzam frutos e sementes segundo a sua espécie. E Deus viu que isto era bom” (Gn 1, 12).

“Criou o Sol e a Lua para iluminar o dia e a noite, bem como para separar a luz das trevas. E Deus viu que isto era bom” (Gn1, 18). “E Deus criou os grandes monstros marinhos e as criaturas vivas que se movem nas águas, segundo as diversas espécies, bem como as aves, segundo as próprias espécies. E Deus viu que isto era bom (Gn 1, 21). Deus criou os animais selvagens segundo as suas espécies e os animais domésticos das diversas espécies. E Deus viu que isto era bom (Gn 1,25).

E Deus criou o Homem à sua própria imagem, à imagem de Deus o criou. Varão e mulher, ele os criou. Então Deus abençoou-os e dizendo: Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a Terra e dominai-a (…). E Deus viu que tudo o que tinha feito era muito bom. Houve tarde e manhã e foi o sexto dia (Gn 1, 27-31).

Todas estas afirmações nos ajudam a compreender como a Criação é uma mediação privilegiada para descobrirmos e saborearmos a bondade de Deus. Mas é no coração do Homem que a bondade pode emergir ao jeito de Deus, isto é, como capacidade de amar e criar comunhão.

A bondade para os seres humanos é, pois, uma vocação e um mandamento que Jesus nos deixou: “Este é o meu mandamento: “que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15, 12). O Homem surge na Histórica como um ser chamado à bondade. Jesus Cristo ao dar-nos o mandamento do amor está a explicitar e dar conteúdo à vocação de todo o ser humano, chamado a ser bom.

Por outras palavras, Jesus explicitou em forma de mandamento à nossa vocação ética de nos tornarmos bons. Os seres humanos nascem vocacionados para a bondade, mas podem resistir e opor-se a esse chamamento fundamental de Deus.

Ao talhar o ser humano, Deus não o determinou pela estrutura instintiva da sua espécie, a fim de nos podermos realizar como pessoas livres, conscientes e responsáveis. A bondade emerge nos corações dos seres humanos à medida em que estes vão fazendo escolhas no sentido do amor. Deus quis que a bondade, nos seres humanos, resultasse de um projecto de vida construído de acordo com o plano que ele amorosamente sonhou para a Humanidade.

Deus inscreveu a bondade no nosso coração como um feixe de talentos, os quais constituem o leque das nossas possibilidades de humanização. Na verdade, a pessoa humana vai-se humanizando na medida em que se torna boa. Isto quer dizer que Deus inscreveu em nós a bondade como realidade dinâmica e progressiva, pois somos seres em construção.


3-Iguais, Mas Diferentes nos Talentos

Para dizer que os seres humanos brotaram da terra, o Livro do Génesis diz que o Homem foi tirado do barro (Gn 2, 7). Como sabemos, o nosso corpo é um ser vivo que tem múltiplas necessidades: fome, sede, necessidade de sono, vigília, repouso, movimento, higiene e tantas outras. O nosso corpo liga-nos à terra da qual obtemos os elementos essenciais para podermos viver.

É também através do nosso corpo que comunicamos com as pessoas e interagimos com a terra que trabalhamos, a fim de obtermos os seus frutos. Muitos dos nossos comportamentos estão condicionados pelas necessidades do nosso corpo tais como comer, vestir, movimento, repouso, conforto e outras.

Mas o nosso corpo é também um receptor de ternura. Com efeito, precisamos de receber ternura para crescermos como pessoas felizes e equilibradas. As crianças que recebem ternura e carícias ficam mais capazes de se desenvolverem como pessoas felizes e socialmente bem integradas. As crianças que recebem pouca ternura ficam mais atrofiadas e pobres na sua vida psíquica e mental.

Existe uma grande variedade de comportamentos no dia a dia da nossa vida os quais resultam do facto de termos ou não recebido a ternura de que necessitávamos quando éramos crianças. As pessoas afectivamente carentes têm muitas vezes comportamentos incorrectos no modo de satisfazer as suas necessidades corporais: Relações agressivas, necessidade de se compensar comendo demasiado, abusar de guloseimas procura excessiva de prazeres. Ou então desajustes psicológicos, tais como agressividades, intolerância ou exigência excessiva em relação aos outros.

Hoje sabe-se que as crianças privadas de ternura e de carícias ficam mais frágeis e com piores sucessos, quer a nível intelectual quer a nível social. A nossa vida psíquica forma um todo interactivo com as experiências da nossa história e a nossa vida corporal. Na verdade, os nossos sentimentos, afectos, emoções, desejos, aspirações e a maneira como reagimos aos acontecimentos e situações do dia a dia são em grande parte a expressão do modo como fomos amados.

Com efeito, todas as experiências com significado emocional significativo ficaram registadas no nosso cérebro, facilitando ou dificultando a nossa realização. O contexto afectivo e cultural em que nascemos e crescemos tem um peso enorme no modo como a pessoa se realiza. As possibilidades de humanização que recebemos pela herança genética, são optimizadas ou bloqueadas pelo contexto afectivo no qual nascemos e crescemos.

Assim, por exemplo, a nossa inteligência não é uma faculdade meramente conceptual. Pelo contrário, tem uma vertente emocional que é fundamental para o bom funcionamento intelectual. Isto quer dizer que a nossa inteligência, tal como a nossa vontade não são faculdades isoladas do conjunto das nossas experiências afectivas.

4-A Vocação Fundamental do Ser Humano

Deus quis que nós fôssemos seus colaboradores na tarefa da nossa criação. É por esta razão que nascemos com a missão de nos construirmos como pessoas. Levamos no íntimo do nosso ser uma dinâmica de vida espiritual a emergir, a qual se constitui e robustece como interioridade pessoal única, original, irrepetível e capaz de comunhão.

Devido ao facto de emergir como interioridade espiritual, o ser humano vai-se configurando de modo gradual e progressivo com Cristo. Quanto mais crescemos como pessoas, mais nos tornamos seres livres, conscientes e responsáveis. A nível espiritual, portanto, o ser humano não é uma alma estática, introduzida no corpo a partir de fora. Pelo contrário, os seres humanos são pessoas em construção, mesmo na sua dimensão espiritual.

Não mentimos se dissermos que a marcha da humanização é uma caminhada progressiva de espiritualização. Deus criou-nos para que nos criemos. A nossa humanização é a tarefa da nossa construção como pessoas. Esta vocação é tão pessoal que ninguém a pode realizar a por nós.

Deus está connosco nesta tarefa, mas não nos substitui. No entanto, é ele que confere plenitude à nossa tarefa, assumindo na Família Divina a nossa realização pessoal-espiritual. Isto quer dizer que será mais divino quem mais se humanizar, durante o processo da sua realização histórica.

É certo que começamos por ser o que os outros fizeram de nós, pois ninguém escolhe a raça, a língua, a família, ou o século em que queria viver. Apesar de não termos escolhido estes dados, eles constituem a matéria prima para a nossa realização. Estamos chamados a construirmo-nos segundo a nossa decisão, mas a partir das possibilidades recebidas das outras pessoas. Com efeito, o que recebemos dos outros constitui o leque dos talentos de que dispomos para a nossa humanização.

A nossa realização, portanto, acontece como resposta ao chamamento que nos é feito através das possibilidades que recebemos dos outros. Somos os protagonistas da nossa realização pessoal, mas nunca sem a presença maternal do Espírito Santo que nos vai ajudando a caminhar nesta tarefa da nossa humanização.

Deus criou-nos para que nos criemos em relações, a fim de atingirmos a Comunhão Universal da Família de Deus. É verdade que ninguém nos pode fazer sem nós, mas também é verdade que nós não podemos realizar sem os demais. O nosso ser interior, pessoal e espiritual, emerge dentro do nosso ser exterior como o pintainho dentro do ovo. São Paulo diz que o nosso ser exterior envelhece e degrada-se com a idade. Mas o interior fortalece-se de modo progressivo dia após dia (2 Cor 4, 16).

É agora o tempo de realizarmos a nossa vocação fundamental, construindo-nos como pessoas. Na perspectiva da fé, a morte surge como o limiar da vida plena com Cristo. Eis o que diz o Livro do Apocalipse: “ No meio da Praça da Cidade, nas margens do rio, está a Árvore da Vida, a qual produz doze colheitas de frutos, uma em cada mês. As folhas da Árvore servem de medicamento para todas as nações (Apc 22, 2).

Os frutos da Árvore da Vida são variados. No fundo são os dons incontáveis do Espírito Santo que nos capacita para tomarmos parte na Festa da Plenitude. Consagradas pelo Espírito Santo, as qualidades da pessoa tornam-se carismas, isto é, dons para bem dos nossos irmãos. O Espírito Santo é o princípio de comunhão e o vínculo maternal da união orgânica da Família de Deus. São Paulo, diz que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5). Na verdade, é sublime a vocação que Deus deu às pessoas humanas.


b) Construir-se Como Pessoa

1- A Marcha da Humanização

Podemos dizer que nascemos para renascer, pois o nosso ser interior, por ser espiritual, nasce da dinâmica maternal do Espírito Santo. O evangelho de São João diz que pelo mistério da Encarnação nos foi dado o poder de nos tornarmos filhos de Deus. Este renascimento não é fruto da carne nem dos impulsos humanos, mas sim do querer de Deus (cf. Jo 1, 12-14).

De facto, nascemos para ser inseridos no processo da humanização cuja lei é: “Emergência pessoal mediante relações de amor e convergência para a Comunhão Universal”. Emergir como pessoa significa crescer em densidade espiritual e capacidade de interagir com os outros em dinâmica de comunhão.

A marcha da evolução trouxe-nos até à complexidade cerebral própria d espécie humana. Com este salto biológico aconteceu a hominização, estrutura natural capaz de iniciar a humanização. Como vemos, a pessoa humana está a emergir e a estruturar-se em duas dimensões totalmente distintas: A exterior que é o nosso ser individual e mortal, e a interior que é o nível do ser espiritual e, portanto, irreversível ou imortal.

O nosso ser espiritual é ressuscitável, isto é, tem condições para ser divinizado mediante a assunção na comunhão orgânica da Santíssima Trindade. A plenitude da vida espiritual acontecerá no dia em que o ovo eclodir e o pintainho entre na festa da comunhão universal. Nascemos para renascer e emergir como pessoas talhadas para a Comunhão orgânica e dinâmica da Família de Deus. O momento da nossa morte, portanto, é também o momento em que ressuscitamos com Cristo.

A Humanidade, por se concretizar em pessoas únicas, originais e distintas é proporcional à Divindade comunhão de três pessoas iguais e distintas. A pessoa não é uma ilha. Formamos um entretecido orgânico e dinâmica animado pelo Espírito Santo. A plenitude da pessoa, portanto, não está em si, mas na comunhão universal. Fechado em si e separado da comunhão, o ser humano está em estado de malogro. Apenas em relação com os outros, a pessoa se possui e encontra a sua plena identidade.

A pessoa é esse barro em cujo interior Deus insuflou o hálito da vida, fazendo do ser humano um barro com coração, isto é, uma pessoa. Na verdade, ser pessoa é ter um coração capaz de eleger o outro como alvo de amor. Com efeito, a pessoa humana tem a capacidade de eleger os outros como irmãos, mesmo para lá dos laços do sangue. Também foi este o modo como as pessoas divinas nos elegeram como membros da sua Família: Filhos em relação a Deus Pai e irmãos em relação ao Filho de Deus.

São Paulo diz que é através do Espírito Santo que somos inseridos na Família de Deus (Rm 8, 14-17; Ga 4, 4-7). Nas famílias humanas os novos membros são introduzidos na comunhão familiar pela ternura maternal. O mesmo acontece com a nossa inserção na Família Divina. Com efeito, é o com o seu jeito maternal de amar que o Espírito Santo nos introduz na Família de Deus e nos leva a clamar Abba, papá, para Deus Pai (Rm 8, 15). Na Carta aos Romanos, São Paulo diz que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5,5).

Como vimos, a pessoa humana emerge e robustece-se de modo gradual e progressivo, pois ela é um processo histórico de humanização. A nossa identidade, mesmo ao nível espiritual, é histórica. De facto, para nos dizermos temos de contar sempre uma história. Não acontece o mesmo com as pessoas divinas, pois Deus é uma emergência permanente de três pessoas de perfeição infinita e em total convergência de comunhão familiar.

A densidade do nosso ser espiritual mede-se pela nossa capacidade de amar e comungar. Na verdade, a pessoa não vale pelo que tem, mas sim por aquilo que é. À medida em que renascemos, emergimos como seres livres, conscientes e responsáveis. Na verdade, estamos talhados para a comunhão com Deus a cuja imagem fomos moldados. É por esta razão que levamos connosco uma fome enorme de renascer e transcender.

No fundo é uma voz permanente a convidar-nos para vencer os limites da raça, da nacionalidade, dos laços do sangue e da nossa condição social. Podemos dizer com toda a verdade que, por sermos pessoas, pertencemos à cúpula da criação a qual é constituída pela comunhão Universal da Humanidade com a Divindade.


2- Construir-se Como Pessoa

Deus dá-nos a possibilidade de nos realizarmos na história através de atitudes e escolhas decididas por nós. Por isso, quando nos queremos comunicar em profundidade temos de contar uma história. O amor é a força que faz avançar esta realização em processo. Por isso, o ser humano bem amado emerge como pessoa bem estruturada. O mal amado, pelo contrário, emerge como pessoa complicada, mal estruturada e condicionada nas suas possibilidades de realização pessoal.

Com efeito, Deus colocou-nos no cume da marcha evolutiva, ponto no qual a vida deu um salto para a interioridade espiritual. Deste modo, a Humanidade se tornou, não igual, mas proporcional à Divindade. Na verdade, a Divindade é pessoas e a Humanidade também. É precisamente neste facto que radica a possibilidade da Encarnação.

Com o aparecimento da vida pessoal surge na marcha da Criação a capacidade de amar. Podemos dizer que a vida imortal brota no interior da vida mortal. A vida eterna emerge no interior da vida temporal e histórica. No coração do ser individual ou exterior emerge o nosso ser interior ou pessoal-espiritual.

Com a emergência da vida espiritual humana surge a vitória sobre a morte física. À medida em que se estrutura, a pessoa constitui-se como ser livre, consciente, responsável e capaz de comunhão amorosa. Por ter recebido um leque único de talentos e por ser autora da sua realização, a pessoa é um ser único, original e irrepetível.

É nesta dinâmica que acontece a Humanidade como comunhão orgânica e dinâmica, onde acontece a reciprocidade do amor. É neste mistério da emergência pessoal em relações de amor e a convergir para a comunhão orgânica universal, acontece a fidelidade ou infidelidade ao amor.

A pessoa que ama está a ser fiel ao amor com que foi amada, pois ninguém é capaz de amar antes de ter sido amado. O amor dos outros, portanto, possibilita a nossa emergência pessoal e capacita-nos para amar. Na verdade, quando nos sentimos amados, cresce em nós a confiança perante a vida. Sentimo-nos valorizados, aceites, tomados a sério e, portanto, capazes de amar também. Quando sentimos que os outros nos valorizam gostamos de partilhar o que fazemos e sentimo-nos mais capazes para chegarmos mais longe.

Na verdade, o amor dos outros optimiza a nossa capacidade assumirmos papéis e tarefas na sociedade e no interior da vida familiar. No nosso íntimo habita o Espírito de Deus que optimiza as possibilidades de realização que são os nossos talentos. A última decisão, no entanto, é sempre a nossa. O amor de Deus, tal como o amor dos irmãos, optimiza as nossas possibilidades, mas nunca nos substituem.

No concreto de cada pessoa humana está a emergir a Humanidade de modo único, original e irrepetível. Nesta marcha da emergência humana ninguém está a mais, pois uma pessoa não é nunca a repetição de qualquer outro ser humano. Isto quer dizer que quando bloqueamos a realização de uma pessoa estamos a estamos a impedir a natureza humana de desabrochar e fazer emergir uma novidade que nunca mais poderá acontecer.

À medida em que um ser humano emerge como pessoa também converge para a comunhão universal, pois nada do que no ser humano emerge como pessoa se perde no vazio do nada. No mais profundo da pessoa em construção está a Humanidade desejosa de conferir plenitude à pessoa mediante a incorporação na comunhão orgânica universal.

O malogro deste projecto só pode acontecer mediante a decisão da pessoa que opte de modo incondicional pela rotura com o amor e a comunhão. As pessoas que se edificam como ilhas, estão a mutilar em si o projecto humano e, portanto, a caminhar para o malogro e o fracasso pessoal. Na verdade, a plenitude da pessoa não está em si, mas na comunhão universal do Reino de Deus.

3- Realizar-se Como Ser Livre

Não nascemos livres, mas nascemos chamados à liberdade. Deus sonhou a Humanidade como uma comunhão constituída por pessoas livres. A liberdade é a capacidade de a pessoa se relacionar amorosamente com os outros e interagir criativamente com as coisas e os acontecimentos.

O Espírito Santo, no nosso coração, é uma presença libertadora, pois optimiza a nossa capacidade de nos relacionarmos de modo amoroso e criativo. Com efeito, a pessoa livre nunca deixa as coisas como estavam antes de ter interagido com elas. São Paulo vê no Espírito Santo a fonte a partir da qual emerge a força da liberdade: “Onde está o Espírito Santo, dizia ele, aí está a liberdade” (Rm 8, 2; 2 Cor 3, 17).

Por outro lado, Jesus Cristo, diz que a liberdade e a verdade caminham juntas: “Se permanecerdes fiéis à minha Palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” (Jo 8, 31-32).

Os seres humanos que nada fazem para sair da mentira, do erro e da ignorância nunca chegarão ser pessoas profundamente livres. Como vemos, o Espírito da Verdade é também o Espírito da liberdade. A verdade é a compreensão e enunciação correcta e adequada da realidade de Deus, do Homem, da História e do Universo. Se a verdade tem assim um horizonte tão vasto, então temos de reconhecer que só Deus possui a verdade plena. O evangelho de São João diz que só o Espírito Santo nos pode conduzir à verdade total (Jo 16, 13).

É certo que o ser humano não nasce livre, mas nasce com a capacidade de se realizar como pessoa livre. A possibilidade de sermos livres está alicerçada no livre arbítrio, o qual é a capacidade psíquica de optar pelo bem ou pelo mal. A liberdade é o resultado de uma cadeia de opções, escolhas e realizações na linha do amor. Isto significa que a liberdade é sempre um bem. Mas não a devemos confundir com o livre arbítrio, pois este é a possibilidade de a pessoa ser livre, mas não a liberdade.

Deus é infinitamente livre e, no entanto, não tem livre arbítrio, pois não pode escolher pelo mal. O ser humano não pode tornar-se livre sem exercitar o livre arbítrio. Mas não basta exercitar o livre arbítrio para uma pessoa ser livre. Na verdade, o livre arbítrio pode ser orientado para o bem ou para o mal. O mesmo não acontece com a liberdade.

A pessoa não nasce livre, mas à medida em que se realiza como pessoa vai-se tornando livre. Só em relações de amor a pessoa se pode tornar livre. Deus não nos criou acabados, a fim de podermos tomar parte na nossa realização e chegar a ser livres. Nós realizamo-nos na medida em fazemos opções na linha do amor e tornamo-nos livres na medida em que nos realizamos.

Amar é eleger o outro como alvo de bem-querer, aceitando-o como é, apesar de ser diferente e agir de modo a facilitar a sua realização e felicidade. O amor é uma dinâmica de bem-querer que tem como origem a pessoa e como meta a comunhão. Podemos dizer que a liberdade de uma pessoa coincide com a densidade da sua vida espiritual e com a sua capacidade de amar. Eis a razão pela qual Deus é infinitamente livre, apesar de não livre arbítrio.

São Paulo diz que Cristo nos libertou, a fim de sermos real e verdadeiramente livres (Ga 5, 1). A força libertadora do Espírito Santo consiste em que ele nos fortalece e capacita para fazermos o bem. A liberdade é, portanto, o fruto precioso de uma cadeia de decisões, opções, e realizações na linha do amor. Quanto mais a pessoa emerge como ser livre, maior é a sua capacidade de amar e interagir de modo criativo com as coisas e os acontecimentos.

È verdade que o contexto social pode facilitar ou condicionar o exercício do nosso livre arbítrio. Mas não é capaz de destruir o núcleo da nossa liberdade adquirida. Com efeito, não é pelo facto de uma pessoa estar na cadeia que deixa de ser livre. Essa pessoa está bastante limitada nas possibilidades de exercitar o seu livre arbítrio. Mas a sua liberdade não está destruída por esse facto.

A liberdade humana, portanto, fica fortalecida sempre que a pessoa se relaciona amorosamente com os outros. Com efeito, o ser humano não é igual ao que diz, mas sim igual ao que faz, pois a pessoa faz-se, fazendo. O evangelho de São João diz que a Palavra de Deus e o Espírito Santo são os guias que nos ajudam a caminhar em direcção à plena liberdade (Jo 8, 31-32).

Na verdade, a palavra e o Espírito Santo iluminam a nossa consciência, convidando-nos a optar na linha do amor. Eis a razão pela qual São João diz que Cristo, ao libertar-nos, nos torna realmente livres (Jo 8, 36). Podemos dizer que a nossa realização pessoal é o termómetro que indica o grau de liberdade que vamos atingindo.

Fomos criados para ser livres. A liberdade é um dom precioso de Deus, mas não nos esqueçamos que os dons de Deus nos são concedidos sempre em forma de possíveis. Com efeito, os dons de Deus não são nunca imposições, mas dádivas que podemos aceitar ou rejeitar. A maneira concreta de aceitarmos o dom da liberdade é actuarmos de modo a realizar as possibilidades que temos de chegar a ser pessoas livres. A liberdade cresce sempre em simultâneo com a consciência e a responsabilidade. Graças à liberdade temos a possibilidade de comungar com Deus e com os irmãos.


4-Realizar-se Como Ser Responsável

Deus deixou nas nossas mãos a capacidade e a missão de nos tornarmos pessoas responsáveis. Crescer como pessoa responsável é uma tarefa que mais ninguém pode realizar por nós. Mas também é verdade que ninguém é capaz de se tornar uma pessoa responsável senão em interacção com os outros.

Todos nós começamos por ser o que os outros fizeram de nós. Foi dos outros que recebemos os possíveis de que dispomos para nos realizarmos. Mas o mais importante não é o leque dos possíveis que recebemos dos outros, mas a maneira de os realizar.

A responsabilidade começa por ser uma atitude de fidelidade aos talentos que temos para nos realizar na vida. No íntimo da nossa consciência somos interpelados pelos valores que os outros nos transmitiram através do processo A fidelidade às possibilidades de realização pessoal que recebemos dos outros passa por uma série de atitudes concretas no dia a dia da nossa vida.

Eis algumas atitudes que são como que os pilares para nos construirmos como pessoas responsáveis: Quando nos comprometermos a realizar uma coisa, sejamos fiéis a esse compromisso. De facto, a pessoa que não responde pelos compromissos que assume não está a realizar-se como pessoa adulta e responsável.

É fundamental responsabilizar-se pelos próprios actos sem cair na tentação das desculpas fáceis ou deitar as culpas para cima dos outros. Na verdade, sempre que assumimos a responsabilidade das nossas atitudes e acções estamos a estruturar-nos como pessoas capazes de ser autoras da sua vida e da sua realização pessoal.

Devemos assumir com plena consciência o cumprimento dos nossos deveres e realizar as nossas tarefas. É importante não ficarmos à espera que sejam os outros a lembrar-nos a hora ou o cumprimento dos nossos deveres. Seremos tanto mais dignos de confiança quanto mais responsáveis formos pelos compromissos que assumimos perante os outros.

Quando alguém der provas de confiança em nós, ao ponto de nos confidenciar as suas coisas mais íntimas, saibamos guardar segredo. A pessoa que trai a confiança que alguém depositou nela é totalmente indigna da confiança de outra pessoa.

Habituemo-nos a reflectir antes de agir, a fim de actuarmos como pessoas responsáveis. Se estivermos atentos e medirmos habitualmente as consequências dos nossos actos, podemos ter a certeza de que nos estamos a estruturar como pessoas responsáveis. Uma pessoa que age habitualmente de modo irreflectido e precipitado dificilmente chegará ser uma pessoa verdadeiramente responsável.

Não deixemos de realizar os nossos projectos e sejam fáceis ou difíceis. Quando tivermos de realizar um trabalho que nos foi pedido, procuremos realizá-lo a tempo e dentro dos prazos estabelecidos. Não nos esqueçamos de que seremos tanto mais responsáveis quanto mais formos fiéis aos nossos deveres.

Como acontece com todas as outras dimensões humanas, a responsabilidade é algo que cresce através do exercício. A pessoa humana não nasce responsável, tal como não nasce consciente ou livre. Na verdade, vamo-nos tornando responsáveis de modo gradual e progressivo. Deus não nos criou acabados, a fim de podermos crescer como pessoas responsáveis, respondendo fielmente aos talentos que recebemos, a fim de sermos autores de nós mesmos, a parti do que recebemos dos outros.

Podemos dizer que ser responsável é dar o melhor de si no sentido de realizar os talentos recebidos, tal como Jesus nos ensinou (cf. Mt 25, 14-30). Como capacidade de responder de modo fiel e adequado aos seus talentos, compromissos e projectos podemos dizer que a responsabilidade cresce em conjunto com a consciência e a liberdade. Como ser consciente, a pessoa descobre o leque das suas possibilidades de realização, tanto de tipo pessoal como social. Como ser livre, a pessoa é capaz de decidir o modo adequado e fiel de realizar os talentos que recebeu.

Por estar associada à consciência e à liberdade, a responsabilidade não é uma capacidade estática. Pelo contrário, a responsabilidade, juntamente com a consciência e a liberdade, formam a dinâmica fundamental da realização pessoal. Por outras palavras, a responsabilidade, juntamente com a liberdade e a consciência formam o núcleo mais nobre da nossa interioridade pessoal-espiritual. É este o centro da vida espiritual a que a Bíblia chama o coração.

c) O Mistério do Mal

1- O Bem e o Mal na História Humana

Deus projectou-nos para sermos pessoas. O animal não é, nem pode chegar a ser pessoa. Aristóteles, ao definir o Homem como um animal racional, não viu o essencial do ser humano. Na verdade, não basta acrescentar um adjectivo ao termo animal para dizer a totalidade da verdade do Homem.

Com efeito, a diferença que existe entre o Homem e o animal não é apenas de grau. É certo que o Homem surge na marcha histórica da humanização por via evolutiva. Mas o ser humano torna-se pessoa através de um salto qualitativo que não é um simples adjectivo acrescentado ao termo animal. A marcha da evolução chegou à hominização, isto é, à estrutura natural de homem, condição para se dar o salto qualitativo da humanização.

A hominização assenta sobre uma complexidade biológica única no conjunto dos seres vivos. Mas agora é preciso o Homem assumir a tarefa da humanização cuja lei é: “Emergência pessoal mediante relações de amor e convergência para a comunhão humana universal”. A humanização não pode acontecer sem relações com a qualidade e a densidade do amor.

O animal ficou dominado pela ditadura dos instintos. Não tem possibilidade de equacionar as respostas aos estímulos básicos como a fome ou a sexualidade. O ser humano, pelo contrário, é capaz de estar cheio de fome, ter um manjar excelente diante de si e entrar em greve de fome. O ser humano precisa de sentidos para viver. Sem sentidos para a vida, a pessoa entra em crise e pode chegar ao suicídio.

A pessoa humana sabe que é um ser em construção e, portanto, tem necessidade de fazer projectos para se realizar e ser feliz. O animal, pelo contrário, não é capaz de fazer projectos de vida. O animal gosta de brincar, sobretudo enquanto é jovem, mas não é capaz de celebrar a vida nem sonhar com um futuro diferente. O animal nunca se faz perguntas. A pessoa humana, pelo contrário, sente uma fome enorme de criar sentidos para viver.

O ser humano tem consciência da própria morte e, apesar disso, não entra em greve perante a vida. O animal não tem consciência da própria morte e por isso não sente necessidade de criar sentidos para a vida. A pessoa humana é capaz de chegar à conclusão de que o amor é a grande razão que vale para viver e também para morrer. De facto, ninguém diz que uma pessoa que morreu para salvar a vida de outrem cometeu um suicídio. Pelo contrário, face a um acontecimento desses, as pessoas concluem que se tratou de um gesto de doação máxima graças ao qual a pessoa levou o amor à sua densidade máxima.

Ao contrário do animal, o ser humano é capaz de se elevar acima da satisfação imediata das necessidades, tornando-se criador. Como ser criador, a pessoa humana é capaz de fazer surgir o novo, dando origem às ciências, às técnicas, às artes ou a atitudes e gestos maravilhosos de amor. Graças ao facto de não estar dominado pelo mundo dos instintos, o ser humano tem a capacidade psíquica de optar pelo bem ou o mal, a que damos o nome de livre arbítrio.

O livre arbítrio não é a liberdade, mas é a possibilidade de o ser humano ser livre. A liberdade é a capacidade de a pessoa se relacionar em dinâmica de amor com os outros e interagir de modo criativo com as coisas e os acontecimentos. Por não ter ficado enredado nos circuitos dos instintos o ser humano tornou-se um ser criador de cultura.

Mas o Homem é também capaz de potenciar as possibilidades de fazer acontecer a morte e a destruição. O Homem é capaz de fazer guerras monstruosas e criar máquinas diabólicas para matar. Os seres humanos são capazes de oprimir e explorar com o fim de amontoar riquezas que não vai usufruir. É também capaz de pilhar e destruir pessoas inocentes, bem como raptar e matar crianças. É capaz de conceber instrumentos monstruosos de tortura e destruir a natureza movido por interesses míopes e mesquinhos.

Mas para lá desta face negativa, ele é capaz de gestos espantosos de bondade e criatividade que o tornam um ser verdadeiramente parecido com Deus: É capaz de criar música, poesia e antecipar um futuro cheio de gestos de ternura e amor. Mas é capaz de idealizar e criar planos de solidariedade e fraternidade que ultrapassam os meros laços do sangue. Quando dá ouvidos ao Espírito Santo que habita o seu coração é capaz de compromissos capazes de fazer avançar a marcha da humanização e evitar uma destruição massiva.

2-A Dinâmica Negativa do Pecado

No relato da criação, o Livro do Génesis diz que Deus inscreveu a bondade no tecido da criação (Gn 1, 12; 18; 21; 25; 31). Em seguida, Deus convida o Homem a viver em aliança com o seu Criador, a fim de conduzir a Criação de acordo com o plano divino. Mas o Homem, com a sua infidelidade, acabou por desencantar e distorcer o sonho de Deus (Gn 6, 13-22).

Apesar da infidelidade do Homem, Deus não desistiu e volta a convidar o Homem para uma outra aliança. O amor insiste e confia sempre em, como diz a Primeira Carta de São João, Deus é Amor (1 Jo 4, 7-8). E, deste modo, Deus restaurou a comunhão com a Humanidade, escolhendo Noé como medianeiro de uma aliança, colocando de novo o Homem à frente da Criação (Gn 6, 17-18).

O relato do dilúvio é um modo de a Bíblia nos dizer que o pecado destrói o Homem. Na verdade, foi o pecado, não Deus quem conduziu a Humanidade para a tragédia de um dilúvio universal. Na verdade, Deus salvou a Humanidade, fazendo uma outra Aliança com Noé (Gn 6, 17-18).

Com efeito, o pecado é sempre gerador de morte não natural, seja o fratricídio como no caso de Caim, ou os homicídios que têm manchado de sangue a História da Humanidade. Deus nunca faz planos para destruir o Homem. Este é que pode destruir-se opondo-se ao plano amoroso de Deus. Ao iniciar á génese do Homem em construção, Deus correu o risco de criar um ser dotado de livre arbítrio e, portanto, com a capacidade de optar pelo bem ou o mal.

Como sabemos, o livre arbítrio é a capacidade psíquica de o ser humano optar pelo bem ou pelo mal e, deste modo, poder tornar-se uma pessoa livre. A liberdade é sempre um bem, mas o ser humano, dotado de livre arbítrio, pode recusar-se a ser livre, optando pelo mal. Com efeito, temos a possibilidade de dizer não à nossa realização se essa for a nossa preferência.

É aqui que radica a possibilidade do pecado, isto é, a possibilidade de dizermos não ao amor. O Amor é uma dinâmica de bem-querer que tem como origem a pessoa e como meta a Comunhão Universal da Família de Deus. O contrário do amor é o pecado ou seja, a recusa do ser humano se realizar e crescer como pessoa. O pecado gera sempre bloqueios no processo da humanização, condicionando as nossas possibilidades de comunicar com Deus e com os irmãos.

3-Vida Espiritual e Perigos do Mundo

Todos nós temos consciência do facto de a Humanidade estar ameaçada por perigos muito graves e reais. É a primeira vez na História que a Humanidade tem nas suas mãos o poder de pôr fim ao projecto humano. Eis algumas ameaças que temos de tomar muito a sério, a fim de evitarmos o pior para a Humanidade: A destruição do equilíbrio ecológico. O perigo de destruir a Humanidade com o armamento nuclear. A ameaça de destruição maciça devido à fome e à falta de água.

Na base destas ameaças estão a indiferença perante os valores, tais como a fraternidade, a solidariedade, a justiça e a paz. Esta indiferença perante os valores trouxe consequências graves para as relações, tanto a nível interpessoal, como a nível social e internacional. É verdade que estes perigos ainda podem ser vencidos através de diálogos e projectos que levem os homens do poder a adoptar medidas capazes de gerar uma nova consciência da dignidade humana.

Se ainda temos nas mãos a possibilidade de evitar o pior, então temos de dizer que se trata de um dever ético para todos nós. É urgente entrar na dinâmica e na lógica do amor, a fim de encontrarmos condições para sobreviver face aos perigos que ameaçam a Humanidade. Para além das técnicas e competências necessárias para vencer os perigos que nos ameaçam é urgente tomarmos consciência da necessidade de acelerarmos o processo de humanização e tomarmos mais a sério o cultivo da vida espiritual, a qual é uma força capaz de alterar o rumo do nosso mundo.

A nossa Fé diz-nos que a vida espiritual contém em si uma força superior às forças de morte armazenadas nos grandes arsenais dos diversos países. O Homem precisa de sentidos para viver. Quando lhe faltam estes sentidos, as pessoas entram em crise e têm tendência a adoptar comportamentos destrutivos. O cultivo da vida espiritual é uma fonte inesgotável de sentidos para viver e uma possibilidade para interagirmos e comungarmos com Deus e os irmãos.

Todos temos consciência da importância de as pessoas cultivarem as aptidões, bem como os conhecimentos capazes de favorecer o progresso humano. Mas é importante tomarmos consciência da urgência de dar um salto de qualidade, tomando a sério a comunhão com Deus como caminho para a paz. São Paulo diz que a paz é um dom do Espírito Santo (Ga 5, 22). E para não nos sentirmos longe da fonte da paz, diz que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5,).

Os cristãos sabem que a vontade de Deus coincide rigorosamente com o melhor para o Homem. Isto quer dizer que não devemos deixar de buscar sempre a vontade de Deus, a fim de ajudarmos os seres humanos a conhecer o que realmente é melhor para a Humanidade. Nós somos as testemunhas que anunciam sentidos importantes para viver e amar, pois sabemos que, graças a Cristo ressuscitado, o homem não está a caminhar para o vazio da morte.

4-Cristo e a Vitória Sobre o Pecado

Deus inscreveu no projecto humano a possibilidade do pecado a fim de podermos ser livres. O pecado é sempre uma oposição ao amor. Pecar é recusar-se a crescer como pessoa através de relações de fraternidade e amor. O pecado é ainda fazer resistência às propostas e projectos de justiça, paz e amor que vão emergindo na marcha da Humanidade.

A pessoa só peca quando tem a possibilidade de dizer sim e diz não às propostas do amor. Mediante o pecado, o pecador diz não opõe-se à sua realização pessoal e condiciona ou bloqueia a realização dos outros, tanto a nível pessoal como social. Através do pecado, a pessoa também inscreve ritmos negativos, isto é, forças de bloqueio, no tecido social. Isto quer dizer que, face à realidade do pecado, os seres humanos podem encontrar-se em duas situações diferentes: situação de vítimas, ou situação de culpados.

As vítimas do pecado sofrem as consequências negativas deste, sem serem culpadas deste pecado. Quantos milhões de crianças sofrem as terríveis consequências pecado sem dele serem culpadas! A pessoa culpada do pecado é o próprio pecador. Por outras palavras, a pessoa é culpada do pecado na medida em que é autora do mesmo.

Há ainda a situação das pessoas que fazem o mal, mas que na realidade são mais vítimas do pecado do que pecadoras. Estão neste caso as multidões de mal amados com distorções psíquicas e comportamentos compulsivos cuja origem está no facto de terem sido mal amados.

Agora podemos compreender a grande sabedoria do evangelho quando nos proíbe julgar as pessoas. Na verdade, nós não temos nas mãos a história das experiências dolorosas e traumatizantes das pessoas. Nós não somos competentes para julgar, pois não somos capazes de avaliar perfeitamente os traumas que perturbam e condicionam as atitudes das pessoas.

É verdade que os outros nos capacitam mas também nos condicionam nas possibilidades de amar e fazer o bem. A lei do amor é esta: “Ninguém é capaz de amar antes de ter sido amado. Além disso, o mal amado ama mal, mesmo quando dá o melhor de si”. Do mesmo modo que o amor dos outros nos capacita para amar, as suas recusas de amor, condicionam-nos nas nossas possibilidades de amar. Começamos por ser o que os outros fizeram de nós, mas o mais importante é o que fazemos com as possibilidades recebidas dos demais.

O feixe primordial das possibilidades e condicionamentos que recebemos dos outros faz de nós, logo à partida, seres únicos, originais e irrepetíveis. Para significar a diferença das possibilidades de cada pessoa, a parábola dos talentos diz que uns recebem cinco outros três, dois ou um (cf. Mt 25, 14-30). Enquanto oposição ao amor, o pecado mata sempre possíveis de realização humana, tanto no pecador, como nas vítimas do pecado.

O Livro do Génesis diz que o pecado de Adão deu como fruto imediato o fratricídio de Caim que matou o seu irmão Abel (Gn 4, 8-16). Fomos criados por Deus para sermos geradores de fraternidade. Mas ao pecarmos iniciamos uma cadeia de fratricídios, pois estamos a matar possibilidades e a pôr resistências na dinâmica da fraternidade. Podemos dizer que, ao pecar, estamos a impedir o crescimento da Família Universal de Deus.

Jesus Cristo, diz São Paulo, é o Novo Adão. Tal como pelo pecado de Adão veio o fracasso da morte, a vitória da Vida Eterna veio por Jesus Cristo (1 Cor 15, 20-21; Rm 5, 17-19). A bíblia vê o pecado de Adão como uma realidade orgânica. É esta a razão pela qual, segundo a visão bíblica, Adão, ao pecar, introduziu toda a Humanidade no caminho do fracasso e do malogro. Após o pecado de Adão, diz o Livro do Génesis, Deus expulsou-o a ele e aos seus descendentes do Paraíso (Gn 3, 23-24). Como Adão era a cabeça da Humanidade, os seres humanos ficaram todos privados do Paraíso.

No momento da sua morte e ressurreição, diz o evangelho de São Lucas, Jesus reabre as portas do Paraíso e a Humanidade entra com ele na plenitude da Vida Eterna. É isto mesmo que Jesus diz ao Bom Ladrão no momento da sua morte e ressurreição: “Em verdade te digo: hoje mesmo estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). No entanto, Deus proporcionou à Humanidade a saída deste fracasso. Na verdade, a vitória sobre a infidelidade de Adão vem-nos pela fidelidade incondicional de Jesus Cristo.

São Paulo diz que Adão, desobedecendo a Deus, colocou a Humanidade no caminho da perdição. Jesus Cristo veio como o Novo Adão, a fim de reparar as distorções operadas por Adão. Como foi totalmente obediente e fiel realizou de modo perfeito a vontade de Deus, introduzindo-nos no caminho da salvação. O evangelho de São João insiste nesta fidelidade de Jesus, o qual punha a vontade de Deus à frente de tudo o resto: “O meu alimento, diz Jesus no evangelho de São João, é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo 4, 34). Depois acrescenta: “Eu não procuro a minha vontade, mas a vontade de quem me enviou” (Jo 5, 30).

Vendo o pecado de Adão como uma realidade orgânica, a bíblia afirma uma verdade muito profunda sobre a realidade humana. Por detrás de todos os símbolos e alegorias da linguagem bíblica há uma verdade antropológica fundamental que é esta: Todos os seres humanos, ainda antes de serem pecadores, já são vítimas do pecado.

A vocação básica do ser humano é a sua humanização mediante relações de fraternidade e amor. Este é o caminho para podermos atingir a plenitude da comunhão universal com Deus e a Humanidade. Como já vimos, a lei da humanização é esta: “Emergência pessoal mediante relações de amor e convergência para a fraternidade e a comunhão universal”. À luz da fé cristã, o coração da fraternidade universal é a própria comunhão da Santíssima Trindade.


d) A Plenitude do Homem Com Deus

1- Aprender a Viver e a Morrer

A Palavra de Deus projecta uma luz e um sentido sobre a Vida, a História e o Universo que potencia luz da razão. Do mesmo modo, a morte vista à luz da Palavra de Deus adquire um sentido que a razão não consegue dar-lhe. À luz da Palavra de Deus, o acto de morrer é a derradeira possibilidade de renascer e, deste modo, atingirmos a nossa plenitude.

A fé diz-nos que nós nascemos para renascer, como diz o evangelho de São João (Jo 3,3-6). Por outras palavras, a consciência da nossa morte ilumina o sentido que a vida tem. Os animais, como não sabem que um dia hão-de morrer, e pior isso não precisam nem são capazes de criar sentidos para viver.

Na verdade, os sentidos da vida e da morte caminham a passo igual. Eis a razão pela qual o sentido mais profundo da vida emerge de modo mais profundo na fase terminal. Com efeito, é na fase terminal que se torna evidente que o amor é a grande causa que vale para viver e para morrer .

Segundo os ensinamentos de Jesus, o amor atinge a sua profundidade máxima quando a pessoa se dispõe a dar a vida pelos outros. Podemos dizer que, quem ama até à morte nasce para a plenitude da vida. Felizes as pessoas que sabem gastar a vida pelas causas do amor, mesmo que essa opção faça com que a morte chegue mais cedo, como no caso de Jesus.

Realmente, quando uma pessoa dá a vida para salvar outra, ninguém diz que esta pessoa se suicidou. Na verdade levou o amor até à sua profundidade máxima. Quando isto acontece, a morte perde o sentido de negativo de tragédia sem saída. Com efeito, os que decidem gastar a vida pelas causas do amor vão morrendo todos os dias ao homem egoísta que há em nós. Segundo os ensinamentos de Jesus, morrer, para dar a vida é a maneira mais perfeita de viver.

Com efeito, o Homem Novo não pode nascer sem que o velho vá morrendo. Por outras palavras, a Vida Nova não nasce sem que a velha se vá gastando pelas causas do amor e da comunhão. Há seres humanos que vão nascendo todos os dias para a plenitude da vida. Isto acontece porque eles aprendem a morrer em cada dia às forças bloqueadoras do egoísmo. Muitas pessoas, ao tomarem consciência da proximidade da própria morte, sentem um apelo especial a fazer o bem. No fundo, estão a sentir de modo mais profundo a voz do amor, convidando-as a dar frutos de vida eterna.

Podemos dizer que a morte é o parto fundamental para o nascimento definitivo das pessoas. Ao nível da consciência, a certeza da nossa morte é o convite a criar sentidos válidos para que a vida não seja um fracasso. A consciência universal da Humanidade já intuiu algo de essencial para o sentido da vida: a certeza intuitiva de não estarmos a caminhar para o vazio da morte. De facto, por ter uma interioridade espiritual, a pessoa humana não cai sob a alçada da morte, nem caminha para o vazio do nada.

A fé diz-nos que é pelo acontecimento da morte que a pessoa entra de modo pleno e definitivo na comunhão universal. Iluminados pela ressurreição de Jesus Cristo, os cristãos sabem que a pessoa humana, no próprio acto de morrer, entra na plenitude da Vida. Isto quer dizer que a razão fundamental da nossa vida na História não é apenas prolongar o mais possível a vida mortal, mas construir a Vida Eterna. Com efeito, no interior da nossa vida mortal emerge a vida imortal, tal como o pintainho emerge dentro do ovo.

Felizes são as pessoas que sabem gastar a vida presente para construir a vida futura. Para estas pessoas, a morte surge-lhes como a condição indispensável para atingirem a sua glorificação com Jesus Ressuscitado. O Filho de Deus fez-se nosso irmão, a fim de nós sermos membros da família divina. Podemos dizer que a morte é o parto derradeiro através do qual nascemos de modo pleno e definitivo para a Família da Santíssima Trindade.

Na verdade, os seres humanos têm consciência de que a morte destrói o seu ser exterior. Mas a sabedoria universal da Humanidade diz-nos que a morte não mata a totalidade do ser humano, pois este é imortal no seu núcleo pessoal-espiritual. Iluminada pela Palavra de Deus, a fé diz-nos que a morte é a porta para entrarmos de modo pleno e definitivo na Comunhão Universal da Família de Deus (Rm 8, 14-17).

Jesus ressuscitado é a Árvore da Vida que nos dá o fruto da Vida Eterna, isto é, o Espírito Santo. Ele é o Novo Adão que restaura o Homem, conduzindo-o à plenitude da vida que é a comunhão na Festa do Reino de Deus (Rm 5, 17-19). Jesus proporcionou-nos o acesso ao fruto da Árvore da Vida do qual tínhamos sido privados por Adão (cf. Gn 3, 22-24).

2- O Divino Como Plenitude do Humano

Naquilo que temos de bom somos realmente parecidos com Deus! Por termos sido projectados à imagem de Deus, estamos talhados para o amor. Na verdade, tal como a vida natural não pode subsistir sem água, a pessoa humana, privada de amor, não pode emergir. Fora da dinâmica amorosa a pessoa acaba por definhar e morrer espiritual e, com frequência, até fisicamente.

O amor não é uma questão secundária. Ainda antes de existir o Universo já existia uma comunhão amorosa de três pessoas. Com efeito, Deus é amor e tudo o que existe tem como fundamento o amor. Podemos dizer com toda a verdade que o amor foi primeiro. Quando dizemos que Deus é amor, estamos, portanto, a entrar no coração da realidade divina ( 1 Jo 4, 7-8; 16).

Como Deus é relações de amor, o ser humano só pode conhecer verdadeiramente Deus entrando na dinâmica do Amor (1 Jo 4, 8). Por estar projectado para a comunhão com Deus, o ser humano está chamado a crescer sempre mais no amor, como diz o evangelho de São Mateus: “Eu, porém digo-vos: orai pelos vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está nos Céus, pois ele faz que o sol se levante sobre bons e maus e faz cair a chuva sobre justos e injustos (…). Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai do Céu” (Mt 5, 44-48).

Como vimos, humanizar-se é estruturar-se como pessoa capaz de amar e, portanto, capaz de se realizar de modo consciente, livre e responsável. A dignidade da pessoa humana começa no facto de não nascer determinada. Isto quer dizer que temos de ser nós a construirmo-nos, pois ninguém o pode fazer por nós. Na medida em que apenas encontram a sua plenitude na comunhão amorosa, as pessoas humanas são realmente parecidas com as pessoas divinas.

O amor confere às relações interpessoais uma força criadora. O impulso criador do Universo foi iniciado pela força criadora do Amor. Na verdade, só em relações de amor a pessoa humana se pode criar como ser equilibrado e feliz. Deus é comunhão infinitamente perfeita de pessoas. Isto quer dizer que Deus é vida em plenitude, pois a plenitude da pessoa não está em si, mas na comunhão amorosa.

Por isso podemos dizer que a vida em plenitude precedeu o Universo. De facto, ainda antes de se ter dado a explosão primordial que originou o Universo, já existia o Amor. Por ter sido criado à imagem e semelhança da Divindade, a Humanidade está a emergir e a concretizar-se em pessoas que emergem de modo único, original e irrepetível. Com o aparecimento da vida espiritual, a evolução criadora atingiu o limiar da eternidade. Depois, ficou caminhando para Cristo, a fim de atingir a plenitude da divinização.

Crescer como pessoa significa crescer em densidade espiritual e capacidade de comungar amorosamente. A vida pessoal, por ser espiritual, não é uma questão de quantidade. Não se mede ao metro, não se avalia pelo volume ou pelo cálculo das superfícies. Apenas podemos conhecer a qualidade e a grandeza de uma pessoa analisando o seu jeito de amar.

Só o jeito de amar revela a qualidade do coração humano e a densidade da humanização de uma pessoa. Com efeito, é o jeito de amar de uma pessoa que constitui a essência da sua identidade. No Reino de Deus seremos eternamente conhecidos e identificados, pelo modo de amar e comunicar com os outros.

Dançaremos eternamente o ritmo do amor com o jeito que tivermos adquirido enquanto nos realizámos na história. Por outras palavras, a nossa identidade espiritual tem uma configuração histórica. É mediante o amor que a pessoa possui Deus e os outros, pois possuímos Deus e os outros, na medida em que nos damos. Ao dar-se, a pessoa não se perde. Pelo contrário, encontra-se na plenitude da comunhão amorosa do Reino de Deus. Os seres humanos, devido à densidade espiritual da sua vida interioridade pessoal, já pertencem à cúpula da vida imortal.

Na realidade, a humanização acontece como processo histórico de espiritualização. Com o acontecimento de Cristo, a Humanidade foi divinizada e inserida na Família de Deus. Fomos projectados para amar. É esta a vocação fundamental do ser humano. Por isso podemos dizer que não serve para a Vida Eterna quem se recusa a amar durante a sua vida histórica. Neste projecto magnífico, a Santíssima Trindade surge como o coração e a plenitude desta comunhão orgânica e dinâmica que é a Humanidade.

3-A Vida Eterna Emerge na História

Deus não é uma realidade histórica, mas faz história connosco. Por sermos pessoas, nós temos uma dimensão espiritual que nos possibilita comungar convosco. Na vossa bondade infinita quisestes criar-nos com a capacidade de amar e comungar, a fim de termos parte na sua comunhão familiar. Deus projectou-nos para participarmos com Cristo ressuscitado na Festa da Vida eterna, como diz São Paulo: “O salário do pecado, diz São Paulo, é a morte, mas a vida eterna é um dom gratuito que vem de Deus por Cristo, Senhor nosso” (Rm 6, 23).

A vida eterna emerge já agora no coração da pessoa à medida em que esta se realiza na vida presente. Na verdade, Deus assume e diviniza a pessoa humana na medida em que esta se humaniza. A vida eterna atinge a sua plenitude mediante a inserção da pessoa humana na Família de Deus. A humanização é um processo histórico que assenta sobre dois pólos: o pessoal e o social.

A nível pessoal a humanização acontece como emergência espiritual mediante relações de amor. Esta emergência atinge a sua plenitude, na convergência da comunhão universal com Deus. Na plenitude do Reino de Deus, a pessoa humana transcende as diferenças rácicas, linguísticas e culturais, convergindo plenamente para a edificação da fraternidade universal.

Podemos dizer que a vida eterna é algo que já está em marcha na História. Estamos chamados a crescer já agora para a Vida Eterna, criando laços de comunhão fraterna enquanto vivemos na História, diz São João: “Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama permanece na morte. Todo o que tem ódio ao seu irmão é um homicida e vós bem sabeis que nenhum homicida tem dentro de si a vida eterna” (1 Jo 3, 14-15).

Por ser uma realidade relacional, a Vida Eterna define-se pela qualidade das nossas relações de amor e comunhão. Isto quer dizer que a Vida Eterna não é uma coisa que todos possuam em quantidades iguais. Na realidade, a Vida Eterna não é uma questão de quantidade mas sim de qualidade.

A nossa plenitude no Reino depende da nossa realização pessoal e espiritual na história. Podemos dizer que no Reino de Deus dançaremos eternamente o ritmo amor com o jeito com que tivermos treinado agora na História. Podemos ter a certeza que a vida eterna, tal como a morte eterna, dependem das nossas atitudes face ao amor.

Para o Novo Testamento, a vida eterna consiste em conhecer, amar e interagir com Deus. Isto significa que o Espírito Santo é o grande dinamizador da nossa comunhão com Deus. São Lucas fala do conhecimento de Deus como uma exultação no Espírito Santo: “Nesse mesmo instante, Jesus estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo e disse: “Bendigo-te ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, porque foi esta a tua vontade e o teu agrado” (Lc 10, 21).

O conhecimento de Deus não é uma questão teórica, mas uma experiência relacional, diz São João: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus. Todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. O que não ama não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor” (1 Jo 4, 7).

O amor é a forma mais eficaz de o ser humano conhecer a Deus. Isto quer dizer que os não cristãos que tomam o amor a sério conhecem a Deus e têm condições para comungar com ele. Por outras palavras, para os que não ouviram falar de Cristo, o conhecimento de Deus é possível, através das suas experiências de amor aos irmãos: Eis o que diz São João: “A Deus nunca ninguém o viu; se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chega à perfeição em nós” (1 Jo 4, 12).E depois acrescenta: “Deus é amor. Todos os que permanecem no amor permanecem em Deus e Deus neles” (1 Jo 4, 16).

Na visão bíblica, o conhecimento de Deus não é nunca uma mera teoria. No evangelho de São João Jesus diz que ele é o caminho que nos conduz a Deus: “Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir ao Pai senão por mim” (Jo 14, 6). O Espírito Santo é o guia desta caminhada do conhecimento de Deus, não por nos comunicar muitos conceitos, mas porque nos conduz na direcção do amor.

Jesus é o caminho que nos conduz a Deus, porque nos comunica o Espírito Santo, o qual alimenta a nossa união orgânica com o mesmo Deus: “Fui-vos dizendo estas coisas enquanto estava convosco. Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, esse é que vos ensinará tudo, recordando-vos o que eu vos disse” (Jo 14, 25-26). Deus proporciona-nos a vida eterna como dinâmica que está a emergir no nosso íntimo, graças à presença maternal do Espírito Santo no nosso coração.

4-As Coordenadas da Vida Eterna

Graças ao acontecimento de Jesus ressuscitado, nós ficámos a saber que Deus não nos criou para. Estamos projectados para Deus que é comunhão. A nossa meta não é, portanto, o desespero da solidão. Deus é uma família de coração aberto. Por isso nos criou à sua imagem, a fim de tomarmos parte na sua comunhão familiar.

Na plenitude do vosso Reino, cada pessoa é mediação de plenitude para as outras, facilitando o encontro da pessoa consigo e possibilitando a sua integração na Festa do encontro universal. Nesta festa ninguém está a mais, pois cada pessoa, por ser única, original e irrepetível, traz novidade e colorido à Comunhão Universal. Na verdade, se alguma pessoa se exclui da festa do Reino de Deus, empobrece a diversidade e a riqueza do património universal da comunhão.

Nesta festa da Vida Eterna, as pessoas humanas, tal como as divinas, encontram-se em coordenadas de universalidade, isto é, equidistantes a tudo e a todos. Eis a razão pela qual as aspirações das pessoas, na comunhão orgânica do Reino de Deus têm realização imediata. Por outras palavras, na festa da Vida Eterna cada pessoa está presente a tudo e a todos, não por se deslocar a velocidades superiores às da luz, mas porque os seus desejos têm emergência e realização simultâneas.

Não há dúvida de que a pessoa que se exclui da vossa comunhão familiar está em estado de fracasso e malogro. Excluída da comunhão universal, a pessoa não se pode encontrar consigo nem encontrar os outros. Fora da comunhão, a pessoa não se encontra nas coordenadas da fraternidade, condição para poder participar na comunhão universal.

É verdade que estamos em realização na História, mas a meta para a qual estamos a caminhar é realmente a plenitude da comunhão com Deus. Aí, a vida humana já está nas coordenadas do face a face e da omnipresença, da equidistância e do encontro universal. À luz da fé, a morte é o limiar através do qual a pessoa atinge a plenitude da comunhão na Família de Deus.

Estarmos talhados para a divinização, a qual não acontece como coisa individual, mas porque formamos uma união orgânica e dinâmica com Deus. São Paulo diz que nós somos membros de um corpo cuja cabeça é Jesus Cristo (1 Cor 10, 17; 12, 27). O princípio animador da vida neste corpo é o Espírito Santo. Ele é o Sangue de Cristo que leva vida a todas as células do corpo de Cristo ressuscitado que somos nós (Jo 6, 62-63).

Eis o que São Paulo diz: “Nós fomos baptizados num só Espírito, a fim de formarmos um só corpo. Na verdade, tanto os escravos como os homens livres bebem de um só Espírito” (1 Cor 12, 13). O Espírito Santo, diz a Carta aos Romanos, é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5). Somos incorporados na Família de Deus como filho em relação a Deus Pai e irmãos em relações ao Filho de Deus. O Espírito Santo é a ternura maternal de Deus que nos introduz nesta reciprocidade amorosa da Família Divina (Rm 8, 14-17).

5-A Nossa Identidade no Reino de Deus

Segundo o evangelho de São João, Jesus consolou Marta, a irmã de Lázaro, anunciando-lhe a Boa Nova da ressurreição: “Disse-lhe Jesus: “Eus sou ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim jamais morrerá” (Jo 11, 25-26).

A nossa fé ensina-nos que a ressurreição não é uma restauração biológica. As pessoas humanas, ao ressuscitarem, não voltam ao mesmo estado que tinham antes do acontecimento da sua morte. No entanto, a identidade espiritual pessoa humana permanecerá para sempre, apesar de ter uma configuração histórica. Isto quer dizer que a pessoa ficará para sempre com o seu jeito de amar e se relacionar na Comunhão Universal.

Os evangelhos sublinham com clareza que a ressurreição é um acontecimento de ordem espiritual. Por outras palavras, na Festa do Reino de Deus, apesar de sermos diferentes, não deixaremos de ser as mesmas pessoas que somos agora: “Acerca da ressurreição estais enganados, pois desconheceis as Escrituras e o poder de Deus. Na ressurreição nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos. Serão como os anjos no Céu” (Mt 22, 29-30). Com estas palavras, Jesus queria dizer que, na Comunhão dos ressuscitados com Cristo, a condição das pessoas é puramente espiritual.

Enquanto estamos em realização na história, o nosso ser espiritual está a emergir no nosso íntimo, como o pintainho vai emergindo dentro do ovo. Após a ressurreição, diz São Paulo, nós já não possuímos um corpo natural, pois ressuscitamos com um corpo espiritual (1 Cor 15, 44). A nossa ressurreição está garantida pelo facto de fazermos uma união orgânica com Cristo ressuscitado. Ele é a cabeça e nós os membros do seu corpo (1 Cor 10, 17; 12, 27).

Acerca do corpo dos ressuscitados, a nossa fé sempre afirmou que se trata de um corpo glorioso, o qual não é uma restauração do corpo biológico que temos no presente. Com esta linguagem a tradição manteve sempre a linguagem do corpo espiritual que vem de São Paulo. A nossa identidade no Céu, portanto, coincide com o nosso jeito de amar que possuímos no presente.

Fora da comunhão não nos possuímos plenamente, pois a pessoa possui-se na medida em que se dá. O Espírito Santo é o princípio vital que alimenta a vida nova dos ressuscitados. Jesus, para significar o mistério da nossa união orgânica consigo, serviu-se da alegoria da videira. Jesus é a cepa da videira e nós os ramos (Jo 15, 1-8). Se nos quisermos servir desta alegoria de Jesus, diríamos o Espírito Santo é a seiva que vem da cepa da videira para nós os ramos. Segundo Jesus dizia, nós só podemos ser ramos vivos e fecundos se estivermos unidos à cepa (Jo 15, 4-5). Esta união orgânica com Jesus é condição é condição essencial para sermos vivificados pelo Espírito Santo, essa Água Viva que faz germinar a Vida Eterna no íntimo do nosso coração (Jo 7, 37-39).

Mas o nosso ser interior emerge de modo gradual e progressivo na história, apesar de ser de ordem espiritual. Com efeito, na base da nossa realização pessoal está uma cadeia enorme de opções e realizações animadas pelo amor. É esta cadeia de realizações que forma a nossa identidade pessoal, isto é, o nosso jeito de amar e nos relacionarmos com os outros na comunhão da Família de Deus. A Comunhão do Reino de Deus é o ponto de encontro universal da Família Divina cujo ponto de união e é a Santíssima Trindade. O Espírito Santo é o princípio animador desta comunhão que faz de nós e de Jesus Cristo uma só união orgânica.

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