Unidade e Riqueza Espiritual da Bíblia





a)Dois Testamentos e Uma Só Revelação
b)A Bíblia Como Fonte de Espiritualidade
c)Cristo e a Superação da Lei de Moisés
d)A Fecundidade Espiritual na Bíblia


a)Dois Testamentos e Uma Só Revelação

1-Dois Testamentos Interactivos

O Antigo e o Novo Testamentos são componentes fundamentais da única Bíblia. Os dois testamentos formam uma unidade interactiva. Se os isolarmos um do outro, os dois ficam realidades incompletas. Cada um dos Testamentos só pode ser plenamente entendido na medida em que se inter-relaciona com o outro.

O Antigo Testamento conduz para o Novo e este encontra as suas raízes históricas no Antigo. Jesus Cristo é o ponto de encontro dos dois Testamentos. Na verdade, em Jesus Cristo realizam-se as grandes aspirações do Antigo Testamento, do mesmo modo, que ele é o alicerce dos conteúdos do Novo.

O Novo Testamento dá testemunho da ressurreição de Jesus Cristo e do dom do Espírito Santo que faz de nós membros da Família de Deus (cf. Rm 8, 14-16; Gal 4, 4-7). Mas este dom realizado em Cristo e proclamado pelo Novo Testamento tinha sido profetizado pelo Antigo Testamento (cf. Jer 31, 31-33; Ez 36, 26-27).

Jesus declara-se o Messias ungido pelo Espírito Santo para anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos, dar vista aos cegos e fazer os coxos caminhar (Lc 4, 18.21). Mas este seu programa de vida é um texto do profeta Isaías (Is 61, 1-3). Num dos relatos do seu evangelho, São Mateus diz que num certo dia, Jesus estava rodeado de enfermos, curando-os a todos e dos espíritos impuros todos aqueles que eram atormentados por eles. Depois, São Mateus acrescenta: fez isto para realizar o que tinha sido anunciado pelo profeta Isaías (Mt 8, 16-17).

No evangelho de São Lucas, Jesus, após a sua ressurreição, declara que era necessário realizar tudo o que estava escrito acerca dele na Lei de Moisés, nos salmos e nos profetas (Lc 24, 44). Os autores do Novo Testamento ao elaborar os seus relatos têm sempre presente os conteúdos do Antigo. Deste modo, nos relatos de milagres operados por Jesus, podemos distinguir sempre três aspectos:
1-Intenção teológica. Este aspecto tem a ver com associar o relato com outro parecido operado pelos grandes personagens do Antigo Testamento;
2-Intenção catequética. Este aspecto consiste em elaborar o relato de modo e comunicar ao leitor certos aspectos importantes da fé;
3-Experiência pascal. Todos os relatos de milagres atribuídos pelo Novo Testamento ao Jesus histórico têm já presente a experiência das aparições do Senhor ressuscitado.

Grande parte dos relatos do Novo Testamento tornam-se muito mais claros e significativos quando postos em confronto com o Antigo Testamento. Por outras palavras, todos os escritores do Novo Testamento partem do pressuposto de que o Antigo Testamento confirma e corrobora a sua pregação sobre Jesus Cristo ressuscitado e constituído como Messias (Act 2, 29-33).

Podemos dizer que o Antigo Testamento é fundamental para compreendermos o projecto de Deus como processo histórico cuja cúpula é o Novo Testamento. É evidente que o Antigo testamento se apresenta como conjunto de relatos e profecias que apontam para uma realização e uma plenitude que irá acontecer.

O grande protagonista deste plano salvador é Deus que, pelo seu Espírito, vai actuando pelos profetas e, mais tarde, pelo Messias. Com efeito, o Antigo Testamento olha em direcção a um futuro que conferirá plenitude ao passado. Esta dinâmica do fim dos tempos é protagonizada pelo Espírito Santo: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora. Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, há-de guiar-vos para a verdade completa” (Jo 16, 12-13).

Os Actos dos Apóstolos associam a experiência transformadora do Espírito Santo com a plenitude dos tempos anunciada pelo profeta Joel: “Mas tudo isto é a realização do que disse o profeta Joel: “Nos últimos dias, diz o Senhor, derramarei o meu Espírito sobre toda a criatura. Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de profetizar. Os vossos jovens terão visões e os vossos anciãos terão sonhos (Act 2, 16-17).

Nestes textos, Jesus Cristo surge como a realização e plenitude das esperanças e expectativas do Antigo Testamento. Não foi por acaso que os escritores do Novo Testamento sentiram a necessidade de relatar os acontecimentos da vida, morte e ressurreição de Cristo com citações recorrendo a citações do Antigo Testamento.

Na sua totalidade, a bíblia é cristocêntrica. Isto dá-nos a confirmação de que os dois testamentos formam a única bíblia. Não é possível fazermos uma leitura aprofundada da bíblia sem pormos em confronto os dois testamentos. Só deste modo se nos revela o dinamismo absolutamente único subjacente à leitura interactiva dos textos sagrados.

Esta interacção é uma mediação privilegiada para descobrir a profundidade teológica e revelacional dos textos, bem como o dinamismo histórico da acção salvadora de Deus. Podemos dizer que o Antigo Testamento confere base histórica ao Novo e o Novo confere carácter de veracidade aos oráculos e profecias do Antigo. Sem o Antigo Testamento, o próprio cristianismo carecia de fundamento histórico.

Por outras palavras, Jesus Cristo não emergiu a partir de um vazio histórico. Pelo contrário, aconteceu como plenitude da longa história da salvação que Deus foi tornando palpável através do povo de Israel. Compreender o Antigo Testamento, portanto, é fundamental para entender com clareza a mensagem e a dinâmica da Salvação testemunhada pelo Novo.

Isto quer dizer que a leitura do Antigo Testamento fortalece a nossa esperança dando-nos a certeza de que o Deus fiel às promessas da Antiga Aliança realizará igualmente o projecto salvador da Nova Aliança. As profecias messiânicas conduziram Israel até Jesus Cristo. Do mesmo modo a Boa Nova de Cristo Ressuscitado nos conduzirá à plenitude do Reino de Deus.

Graças a esta unidade e interacção bíblica, o Antigo Testamento é para os cristãos Palavra de Deus, tal como o Novo. Na verdade, o Antigo Testamento só é perfeita mediação da Palavra de Deus em interacção com o Novo e vice-versa. O Novo Testamento, portanto, confere plenitude ao Antigo. Por seu lado, o Antigo Testamento aponta para Cristo no qual encontra a sua realização e plenitude. Por outras palavras, O Novo Testamento, tal como o Antigo, são mediação da revelação de Deus. Sem o Novo Testamento, o antigo estava incompleto. Por outro lado, sem o Antigo, o Novo Testamento carecia de um fundamento histórico sólido.


2-Antigo Testamento e Revelação

A Revelação não é um mero discurso teórico de Deus. Implica uma presença especial do Espírito Santo no interior do povo de Deus. O Antigo Testamento é um conjunto de relatos que testemunham as experiências primordiais da revelação e da acção de Deus no meio do seu povo. Mas além disso, os seus relatos são também mediação para o Espírito Santo fazer acontecer revelação para nós. A revelação não é apenas um conjunto de textos que nos comunicam umas verdades abstractas. A revelação bíblica implica os relatos de feitos e maravilhas resultantes da acção de Deus no meio do seu povo. A revelação, portanto, é uma experiência e uma vivência e não apenas uma teoria abstracta.

A vida de fé dos crentes é alimentada pela revelação, a qual não é apenas o conhecimento de um projecto de Deus, como também uma capacitação para amar ao jeito de Deus. Uma vez que o Antigo Testamento é também revelação para os cristãos, existe uma relação teológica entre o povo bíblico e o Novo Povo de Deus.

Podemos dizer que o Antigo Testamento contém uma história que se move continuamente da promessa para a sua realização e plenitude. O Antigo Testamento ajuda-nos a compreender Jesus Cristo como o enviado de Deus que fora antecipadamente anunciado. Na verdade, Jesus confirma o Antigo Testamento, conduzindo à plena realização as antigas profecias messiânicas.

Por outras palavras, se Jesus confirma o testemunho profético do Antigo Testamento, então temos de confessar que este é revelação para os cristãos. O antigo Testamento nunca apresenta Deus em termos abstractos. Pelo contrário, revela-nos Deus sempre em termos de uma história de relações de Deus com o seu Povo, com a Humanidade e o Cosmos.

3-Novo Testamento e a Fidelidade de Deus

Por seu lado, o Novo Testamento confirma e confere plenitude à revelação do projecto salvador de Deus manifesto nos feitos e maravilhas relatadas pelo Antigo Testamento. Mas não podemos ignorar o carácter de plenitude que o Novo Testamento confere ao Novo. Não nos podemos esquecer a radicalidade da acção de Deus testemunhada pelo Novo Testamento, a qual vai muito além das propostas do Antigo. Com efeito, o acontecimento de Cristo ultrapassa de longe as perspectivas messiânicas e salvíficas do Antigo Testamento. Na verdade, a realização vai muito além dos horizontes da profecia. Jesus Cristo não é simplesmente o acontecimento que põe fim à actividade de Deus em Israel, mas também o acontecimento que inaugura o Reino de Deus.

Do ponto de vista do Antigo Testamento, o Messias é visto um pouco como o acto final do plano de Deus. Do ponto de vista do Novo Testamento, Jesus Cristo é o centro da História da Salvação e o início de uma Nova Criação (2 Cor 5, 17-19). Em Jesus Cristo a salvação adquire uma dimensão universal. Através da Igreja, o Novo Povo de Deus, os pagãos são enxertados na antiga árvore do Povo Bíblico e o projecto salvador de Deus passa a ser anunciado em todas as raças, línguas, povos e nações.


4-Novo Testamento e Dinâmica Bíblica

O Novo Testamento anuncia que o plano anunciado pelos profetas se realizou em Jesus Cristo. A salvação encontra-se em Jesus Cristo, pois foi ele que deu início à plenitude dos tempos: “Mas quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho” (Gal 4, 4). Por vezes, os autores do Novo Testamento projectam um sentido cristão nos textos do Antigo.

Deste modo, a profecia é reconhecida como revelação após a sua realização e plenitude. O Antigo Testamento apresenta-se como processo histórico a caminho de uma meta. O Novo Testamento, por seu lado, proclama que a meta pela qual o Antigo Testamento suspirava é Jesus Cristo. Por outras palavras, Cristo é o centro e o coração da História da Salvação. Ao aparecer entre nós, diz a Carta aos Efésios, Cristo anunciou a paz tanto aos pagãos que estavam longe como aos judeus que estavam perto. Com efeito, tanto judeus como gregos já têm acesso a Cristo num no mesmo Espírito Santo.

Os pagãos já não são estrangeiros ou imigrantes na casa de Deus. Pelo contrário, são concidadãos dos santos, edificados sobre o alicerce dos Apóstolos, dos profetas e de Cristo, que é a pedra angular. Unidos a Jesus Cristo, tanto os judeus como os pagãos formam um Templo Santo de Deus. Os pagãos, portanto, também são pedras deste Templo, formando uma habitação de Deus, pelo Espírito Santo (Ef 2, 17-22).

Jesus Cristo cumpriu plenamente a Lei e os profetas (Lc 24, 25-27). O Reino de Deus foi inaugurado. O Antigo Testamento é citado como conjunto de promessas e profecias agora plenamente realizadas em Cristo. Este modo de proceder é a prova de que o Novo Testamento precisa do Antigo para testemunhar de modo pleno e perfeito o acontecimento de Cristo. A universalidade do acontecimento de Cristo é expressa e confirmada pelo facto de os pagãos aceitarem Jesus Cristo. Os primeiros cristãos usavam o Antigo Testamento porque acreditavam que Jesus é o Cristo anunciado pela Lei, os profetas e os salmos.

A História da Salvação é, pois, uma cadeia de acontecimentos ligados pela profecia e a sua realização. Jesus não se limita a prolongar a Antiga Aliança, mas substitui-a por uma outra, a qual implica a inauguração do Reino de Deus. Uma vez que o cume da História da Salvação é Cristo, é normal que o sentido e o alcance mais profundo do Antigo Testamento como História da Salvação só possa ser entendido pelos aceitam o Novo Testamento como revelação de Deus.

Por outras palavras, as palavras e acontecimentos do Antigo Testamento só são plenamente claros quando vistos na perspectiva do Novo. No entanto, nunca nos podemos esquecer que os dois Testamentos pertencem um ao outro e que nenhum deles está completo sem o outro.


b) Cristo e a Superação da Lei de Moisés

São Paulo foi o autor do Novo Testamento que mais sentiu a tensão entre a Novidade da Nova aliança e a letra do Antigo Testamento. Foi a experiência desta tensão que o levou a escrever: “É Deus quem nos torna aptos para sermos ministros de uma Nova Aliança, não da letra, mas do Espírito, pois a letra mata, enquanto o Espírito dá vida” (2 Cor 3, 6).

Os Actos dos Apóstolos procuram testemunhar o nascimento da Igreja nascente. O seu autor, São Lucas, apesar de suavizar os conflitos, não conseguiu ocultar a tensão entre a acção renovadora do Espírito Santo e a resistência provocada pela visão conservadora dos discípulos de Jerusalém. A questão de fundo dos Actos dos Apóstolos é a incorporação dos pagãos na Igreja.

São Lucas recebeu de São Paulo, o seu mestre, o zelo e a paixão pela evangelização dos pagãos. Na visão dos actos dos Apóstolos este é o plano de Deus desde toda a eternidade. Partilhava com o seu mestre a opinião de que os pagãos deviam ser evangelizados e baptizados em pé de igualdade com os judeus. Tal como São Paulo, São Lucas era um helenista, isto é, um judeu que vivia fora da Palestina.

São Lucas, ao escrever, tem sempre em mira os pagãos convertidos ao cristianismo. Eis a razão pela qual ele pretende apresentar a Igreja como uma realidade harmoniosa e planeada por Deus desde toda a eternidade. Lucas conceba a Igreja como o Novo Povo de Deus, o qual está na continuidade do primeiro povo de Deus. É esta a razão pela qual é tão importante para ele que tudo parta de Jerusalém.

Jerusalém, a capital do povo Bíblico, deve ser o ponto de partida para a evangelização do mundo. Por isso a comunidade de Jerusalém exerce o papel de Igreja mãe. É em Jerusalém que acontece o Pentecostes, o grande dom do Espírito Santo (Act 1, 12). A dinâmica missionária devia arrancar de Jerusalém. Outro aspecto fundamental é a ideia de que os Doze são o alicerce do novo Povo de Deus (Act 1, 15-26). Tudo está harmoniosamente planeado por Deus. A Cidade Santa e os Doze são o alicerce da Igreja.

No capítulo sexto dos Actos, São Lucas fala de um conflito aparentemente secundário. Segundo ele, tratou-se de um conflito na comunidade de Jerusalém devido a um desentendimento entre os cristãos de origem grega e os cristãos de origem hebraica. Os cristãos de origem judaica cuidavam das suas viúvas e descuidam as viúvas dos gregos (Act 6, 1).

Com a sua preocupação de apresentar a Igreja como uma realidade harmoniosa, São Lucas disfarça a questão central do conflito existente na comunidade de Jerusalém. Na realidade o conflito assenta numa questão que foi causa de graves tensões na Igreja nascente: a pregação, o baptismo e a incorporação dos pagãos na Igreja. São Lucas tenta dizer que se trata apenas de um mal-estar nascido do facto de os cristãos judeus desprezarem as viúvas de origem pagã. Para fazer frente a este conflito, os Doze tomam a iniciativa de eleger os diáconos (Act 6, 2). Os nomes dos diáconos são todos de origem, não judaica.

Com este procedimento, São Lucas pretende dizer que os cristãos de origem pagã são reconhecidos e confirmados pelos Doze. Este aspecto era fundamental para a visão de São Lucas. Para confirmarmos isto, basta ver a importância que ele dá ao relato do martírio de Estêvão, o diácono helenista escolhido para a evangelização dos pagãos. Ao descrever o martírio do Apóstolo de São Tiago, o irmão de São João, reduz tudo num simples versículo (Act 12, 2). A morte do diácono Estêvão, pelo contrário, ocupa sessenta e sete versículos (Act 6, 8-7, 60).

São Lucas distingue os helenistas (cristãos judeus de cultura grega) dos gregos (cristãos de origem pagã). Os chamados diáconos não são mais que apóstolos de origem helenista, eleitos para a evangelização dos pagãos. E é assim que o diácono Filipe, conduzido pelo Espírito Santo, sai de Jerusalém para iniciar a evangelização da Samaria. A iniciativa não partiu dos Doze (Act 8, 29). Daqui, a necessidade de a sua obra ser confirmada.

O relato da subida de Pedro e João à Samaria tem exactamente este sentido: “Quando os Apóstolos tiveram conhecimento de que a Samaria recebera a Palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João. Estes foram até lá e oraram pelos Samaritanos para que estes recebessem o Espírito Santo que ainda não descera sobre nenhum deles. Tinham apenas recebido o baptismo em nome do Senhor Jesus. Pedro e João iam impondo as mãos sobre os samaritanos, os quais iam recebendo o Espírito Santo” (Act 8, 14-17).

Se tomássemos o texto à letra, ficaríamos com a impressão de que o Espírito Santo é uma coisa que um homem pode dar de modo mágico ou automático. Como sabemos, o Espírito Santo é uma pessoa. Com a ressurreição de Cristo, foi-nos dada a possibilidade de interagirmos com o Espírito Santo de maneira totalmente nova.

No relato da pregação de Pedro em casa de Cornélio acontece exactamente o contrário. Os pagãos recebem o Espírito Santo ao ouvirem a Palavra, ainda antes de serem baptizados. Como vemos, o baptismo no Espírito, no caso dos adultos, acontece antes da celebração litúrgica do baptismo e sem qualquer imposição das mãos (Act 10, 44-45). Segundo o relato da Evangelização da Samaria, os Samaritanos já tinham acolhido a Palavra de Deus (Act 8, 14b). A diferença está em que, no caso da Samaria, não era Pedro o pregador.

O relato da evangelização da família de Cornélio dá-nos a impressão de que Pedro foi o grande evangelizador dos pagãos. De facto não foi assim. São Lucas, com este texto, pretende dizer apenas que está legitimada a pregação dos pagãos, pois Pedro já o fez por mandato do Espírito Santo (Act 10, 9-20). Com isto, Lucas quer apenas significar que a evangelização dos pagãos é algo confirmado por Jerusalém. Lucas utiliza uma simbologia semelhante quando fala da missão de São Paulo. Este, embora fosse um teólogo fariseu, não fazia parte dos Doze. Eis a razão pela qual a sua missão devia ser confirmada.

São Lucas não está preocupado com o rigor dos factos históricos, pois apenas lhe interessa fundamentar a verdade teológica segundo a evangelização dos pagãos é uma acção fundamental da Igreja primitiva. Por isso São Lucas tenta harmonizar as coisas dizendo que tanto a Igreja judaica como a Igreja de origem pagã são obra do Espírito Santo. É este o significado da confirmação, por parte dos Doze, da evangelização dos pagãos.

Segundo os Actos dos apóstolos, o primeiro pagão a ser incorporado na Igreja foi evangelizado pelo diácono Filipe, sob a condução do Espírito Santo. Trata-se do baptismo do eunuco da rainha Candace (Act 8, 26-40). Segundo a lei mosaica, um eunuco não podia fazer parte do povo de Deus (Dt 23, 2; Esd 56, 3-7; Neem 13, 1-3). Ao elaborar este relato, São Lucas afirma claramente que o novo Povo de Deus não assenta nas prescrições do judaísmo, segundo o qual os eunucos não podiam fazer parte da assembleia do povo de Deus. Esta iniciativa pertence a Deus, pois não nasceu dos Doze mas dos missionários helenistas.

Lucas tenta harmonizar constantemente a acção evangelizadora dos cristãos da Palestina representados por Pedro e os cristãos de origem helenista representados por Paulo. Pedro pretende conduzir os pagãos para as práticas judaicas e Paulo, muito mais aberto e culto opõe-se a tal pretensão, pois ele acha que os pagãos devem ser evangelizados e baptizados em pé de igualdade com os judeus. Daqui, a sua iniciativa de evangelizar e baptizar os pagãos em pé de igualdade com os judeus. Esta perspectiva está bem patente quando São Lucas fala da missão de São Paulo.

No fundo, os Actos dos Apóstolos são uma defesa de que a missão de São Paulo é a grande obra do Espírito Santo na difusão do Evangelho entre os pagãos. No entanto, tudo isto é feito de maneira harmónica, a fim de não chocar os helenistas e os gregos. Não deixa de chamar a atenção o facto de o livro dos Actos relatar por três vezes a conversão de Paulo (Act 9, 1-19a; 22, 1-21; 26, 9-20). No total, dedica cinquenta e um versículos a este grande acontecimento do Espírito Santo, o que indica a importância que São Lucas atribui a este acontecimento.

São Lucas começa por apresentar o Apóstolo como o grande perseguidor da fé. Quando ainda era adolescente, Paulo, ainda chamado Saulo, colabora no martírio de Estêvão: “Saulo aprovava também essa morte” (Act 8, 1). Depois entra na casa dos cristãos para os maltratar e levar para a prisão (Act 8, 3). Com estes reparos São Lucas tenta acentuar a força miraculosa do Espírito Santo no acontecimento da conversão de Paulo.

Agora, uma vez convertido, deve ser confirmado, a fim de ser aceite e reconhecido como o grande escolhido de Deus para a obra do Evangelho. Para isso, Paulo deve entrar na cidade e dirigir-se à comunidade onde lhe será dito o que deve fazer (Act 9, 6). Estes relatos contrastam com a descrição que o próprio Paulo diz acerca da sua conversão e da sua dedicação à missão. Segundo o relato de Paulo, a sua prática missionária não procedem de qualquer homem, mas sim de uma inspiração do Espírito Santo (Gal 1, 11-12). Está de acordo com Lucas quando fala do seu zelo pelo judaísmo, a ponto de ser perseguidor da Igreja (Gal 1, 13). Deus, no entanto, chamou-o para anunciar o Evangelho entre os gentios.

Quando sentiu o chamamento de Deus, São Paulo não consultou qualquer homem. Também não foi a Jerusalém para consultar os que tinham sido Apóstolos antes dele. Pelo contrário retirou-se para a Arábia, a fim de fazer uma longa meditação. Depois voltou a Damasco, a cidade onde se tinha dado a sua conversão (Gal 1, 16-17).

Passados três anos de missão, São Paulo foi, então, a Jerusalém, a fim de visitar São Pedro, acabando por ficar quinze dias com ele (Gal 1, 18). Não viu mais nenhum Apóstolo, a não ser Tiago, o irmão de Jesus (Gal 1, 19). Tiago, o irmão de Jesus, não fazia parte dos Doze, mas São Paulo chama-o Apóstolo. Para ele, apóstolo é todo o missionário itinerante. Dá-se este título a si mesmo, apesar de São Lucas nunca o chamar assim, pois ele não pertencia aos Doze. Na realidade, os diáconos helenistas eram todos Apóstolos, isto é, missionários itinerantes e fundadores de comunidades. Lucas, no entanto, só atribui este título aos Doze. Paulo, pelo contrário, reconhece muitos outros Apóstolos além dos Doze (cf. 1Cor 15, 5).

Como vimos, segundo os Actos dos Apóstolos, Paulo deve ir confirmado antes de partir para a missão. Para os helenistas a Igreja seria obra de Deus devia funcionar de maneira harmoniosa e sem tensões. A Igreja está inserida no plano geral de Deus sobre a História da Humanidade. Daqui, a necessidade de que tudo funcione harmonicamente.

Para os gregos, o mundo é um cosmos ordenado, isto é, um Universo bem ordenado e com um fim bem definido. Por outras palavras, Deus é a fonte da harmonia cósmica e histórica. O mundo judaico não tinha esta visão das coisas. A acção de Deus passa por todos os acontecimentos onde há tensões, tragédias e guerras. Os acontecimentos são utilizados por Deus em função de um objectivo e, portanto, nunca alteram nem anulam os planos de Deus.

É devido às preocupações com a mentalidade grega que os Actos dos Apóstolos legitimam a obra de São Paulo dizendo que São Pedro foi o primeiro a pregar e fazer conversões entre os pagãos (Act 10, 1-18). Só depois Paulo e os chamados diáconos passaram a pregar o Evangelho aos pagãos (Act 11, 20). Uma vez legitimada a sua missão, começa a surgir uma enorme multidão de pagãos convertidos (Act 11, 22).

A notícia do sucesso dos novos apóstolos chega a Jerusalém onde a mentalidade era contrária ao anúncio do evangelho aos pagãos. Foi então que os Doze decidem enviar Barnabé a Antioquia (Act 11, 22). No capítulo 15, a questão fica solucionada apenas no capítulo quinze dos Actos dos Apóstolos quando Paulo e Barnabé decidem vir a Jerusalém.

A razão que motivou a ida de São Paulo a Jerusalém era realmente séria: Paulo denuncia o facto de alguns enviados de Jerusalém irem atrás dele e dos outros apóstolos helenistas, a fim de espiarem o trabalho deles. Estes cristãos não passam de uns falsos irmãos, como ele lhes chama (Gal 2, 4) não é um acto de boa fé e confirmação, mas antes um acto de espionagem. De facto, os cristãos de Jerusalém diziam que os pagãos não podiam ser plenamente cristãos se não praticassem antes as normas prescritas pela Lei de Moisés (Act 15, 1).

Paulo e Barnabé enfrentam-nos e vão a Jerusalém para pôr as coisas a claro (Act 15, 2). Os Apóstolos e os presbíteros da comunidade examinaram a questão (Act 15, 6). Agora São Paulo fica confirmado através de um discurso de São Pedro nitidamente forjado por São Lucas. Nesse discurso, São Pedro afirma que Deus não faz acepção de pessoas (Act 15, 8-10). Além disso diz que a Lei é um jugo insuportável (Act 15, 10). O Homem é salvo pela graça, não pelas obras da Lei (Act 15, 11).

É evidente que esta é a linguagem de São Paulo, não a de São Pedro. Isto torna-se ainda mais claro quando aparece o próprio São Pedro a declarar que Deus o escolheu para evangelizar os pagãos (Act 15, 1). Não é difícil ver como São Lucas tenta confirmar São Paulo pondo as suas palavras na boca de São Pedro. Procedendo deste modo, São Lucas declara que a obra de São Paulo está legitimada e confirmada pela comunidade de Jerusalém e por São Pedro.

A descrição de São Paulo sobre a sua ida com Barnabé a Jerusalém é diferente do relato dos Actos dos Apóstolos. Passados catorze anos de missão, diz ele, fui a Jerusalém, a fim de não estar a correr em vão (Gal 2, 1-2). Isto porque os falsos irmãos, vindos de Jerusalém, iam atrás dele contrariando a sua obra evangelizadora (Gal 2, 4). Foi então que Pedro, Tiago e João, considerados como as colunas da comunidade de Jerusalém, dão as mãos a Paulo em sinal de comunhão. Nesse momento reconhecem, diz São Paulo, que São Pedro foi escolhido para os judeus e São Paulo para os pagãos (Gal 2, 9-10). Como vemos, São Paulo diz o contrário dos Actos dos Apóstolos.

São Pedro resolve partir para Antioquia, a fim de confirmar publicamente a obra de Paulo (Gal 2, 11a). São Paulo descreve um incidente que revela bem a fragilidade e ambiguidade da personalidade de São Pedro. Primeiro, começou por comer e celebrar a Eucaristia com os cristãos de origem pagã. Mas, quando apareceram alguns defensores da visão rígida de Jerusalém São Pedro começou a afastar-se da mesa e da Eucaristia dos pagãos cristãos. O grupo conservador de Jerusalém estava ligado a Tiago, o irmão do Senhor, o qual era o chefe da comunidade de Jerusalém. A situação complicou-se quando Barnabé se juntou a São Pedro, entrando neste jogo duplo (Gal 2, 12-13). É então que são Paulo os enfrenta os enviados de Tiago com dureza (Gal 2, 14).

São Lucas, referindo-se a este acontecimento, relata-o de modo diferente, a fim de não chocar os cristãos de origem pagã. Os Actos dos Apóstolos dizem simplesmente que Paulo e Barnabé programaram uma viagem pelas cidades onde existiam comunidades. Barnabé queria levar consigo João Marcos, a fim de colaborar na obra do Evangelho. São Paulo opôs-se, pois não achava João Marcos capaz de realizar esta missão. Após uma discussão acesa, Paulo e Barnabé separaram-se. Barnabé foi para Chipre e Paulo foi visitar outras comunidades acompanhado por Silas (Act 15, 35-41).

São Lucas omite totalmente o incidente com São Pedro. Do mesmo modo, são omitidas as razões profundas da separação de Paulo e Barnabé. Nos últimos treze capítulos dos Actos, São Pedro e Barnabé desaparecem. A missão evangelizadora de São Paulo, pelo contrário, é o tema dominante.

A acção evangelizadora de São Paulo é obra do Espírito Santo. É a comunidade de Antioquia, não a de Jerusalém, que impõe as mãos a Paulo e o envia para a missão entre os pagãos (Act 13, 2-3). A imposição das mãos efectuada pelos cristãos de origem pagã vale tanto como a dos cristãos de Jerusalém.

Lucas diz e defende esta perspectiva. Mas fá-lo de maneira conciliadora. A sua preocupação é sobretudo de tipo teológico. Ele entende que o Espírito Santo não é fonte de divisão, mas de união. Ele sabe como a evangelização dos missionários helenistas foi fundamental para o nascimento e implantação da Igreja. Mas os Doze são, na visão de São Lucas, são a ponte de ligação entre o povo bíblico e os pagãos. No contexto dos Actos dos Apóstolos, a imposição das mãos tem o mesmo sentido que em Paulo o dar as mãos em sinal de confirmação e comunhão de fé.


c) Linhas da Espiritualidade Bíblica

Podemos dizer que o povo bíblico tem uma espiritualidade centrada no essencial da fé. Esta espiritualidade manifesta-se, não apenas no modo como reza ou celebra o culto, mas sobretudo no modo como o dia-a-dia das pessoas é centrado na fé. Uma espiritualidade não atinge apenas um aspecto da vida, mas sim o modo de optar, decidir e programar das pessoas. Por outras palavras, o jeito de viver das pessoas revela o rosto do Deus em que acreditam.

Entre os traços divinos que percorrem as Escrituras o mais notório é a unicidade divina. Há um só Deus que nos guia e protege. Outra constante é a ideia do Deus da Aliança. Comunica com o seu povo em termos de um acordo de amizade. Este aspecto é muito importante, pois tem como pano de fundo a ideia de que o Deus da Aliança não é arbitrário nem caprichoso. Além disso é um Deus leal, fiel e verdadeiro. As Escrituras não se cansam de afirmar que o Povo Bíblico foi eleito por livre iniciativa de Deus. É um povo sinal de um plano de amor e salvação para todos os povos, raças, línguas e nações (Gn 12, 3).

O Deus da Aliança não se impõe. Os membros do Povo Bíblico estão ligados ao Senhor por elos de uma aliança, isto é, um acordo mútuo. Para a mentalidade bíblica, os crentes não são escravos de uma divindade sem coração. Estão chamados a relacionar-se com Deus numa linha de fidelidade, tal como Deus é fiel e verdadeiro.

O Deus Único fez um pacto de aliança com o seu povo, mas ele tem um plano para toda a umanidadeHumanidade. Na verdade, ao escolher Abraão, Deus estava a pensar numa bênção para toda a Humanidade (Gn 9, 9-17). A História de Israel relata muitas infidelidades do povo em relação à Aliança. Por isso Yahvé concebe uma Nova Aliança assente, não em normas e preceitos, mas na força do Espírito Santo (Jer 31, 31-33; Ez 36, 26-27).

O Novo Testamento é uma proclamação da Nova Aliança selada em Cristo, pois nele se encontra o melhor de Deus e o melhor do Homem. São Paulo diz que, em Cristo, tudo se fez novo. O velho passou. Tudo isto vem de Deus que reconciliou a Humanidade consigo, não levando mais em conta os pecados dos homens (2 Cor 5, 17-19). Este texto é uma síntese do essencial da Nova Aliança, a implica a vivência da alegria, do perdão e da reconciliação como Dom oferecido por Deus à Humanidade.

São Paulo diz que o Povo de Israel ainda continua a ler as Escrituras com um véu sobre o rosto, o qual não lhes permite ver o alcance da Nova Aliança. Esse véu só cairá, continua São Paulo, quando se o povo de Israel se converter a Jesus ressuscitado (2 Cor 3, 15-16). Na verdade, só pela aceitação de Cristo ressuscitado esse véu pode ser removido (2 Cor 3, 14).

Em Cristo, diz a Carta aos Hebreus, Deus encontrou o medianeiro capaz de garantir a permanência da Nova Aliança (Heb 7, 22; 2 Cor 3, 6; Lc 22, 20; Mt, 26, 28; Mc, 14, 24). Nele aconteceu o perdão gratuito dos pecados. Por isso já não são necessários sacrifícios para o perdão do pecado (Heb 10, 5-17). Citando Isaías, São Paulo insiste em que Cristo é o prometido. Em Jesus Ressuscitado, Deus realiza as promessas que Deus fez aos patriarcas e que, mais tarde, anunciou pelos profetas.

A Carta aos Romanos recorda as promessas feitas pelos antigos profetas quando afirma: “Esta é a Aliança que eu farei com eles quando lhes tiver tirado os seus pecados” (Rm 11, 27). Ao falarem da Nova Aliança, os profetas insistiam dizendo que a Nova Aliança não assenta em leis, normas ou preceitos, mas numa mudança de coração como foi anunciado pelos profetas (Ez 36, 26-27; Jer 31, 31-33). Os tempos messiânicos serão tempos marcados por uma grande actividade do Espírito Santo. Jovens e idosos diz o profeta Joel, serão movidos pela força do Espírito de Deus (Jl 2, 28).

A vivência da Nova Aliança implica uma espiritualidade renovada, assente na fidelidade ao Espírito e não baseada na letra da Lei de Moisés. São Paulo diz que a letra mata, mas o Espírito vivifica (2 Cor 3, 6). O Povo Bíblico é um povo que louva o Senhor. As pessoas reconhecem que Deus é a fonte dos bens que acontecem aos homens. Os salmos são o grande testemunho de que a espiritualidade do povo bíblico é, por excelência, uma espiritualidade de louvor.

Os personagens bíblicos mais marcantes são apresentados como modelos de gratidão e reconhecimento dos dons de Deus (Gn 8, 20-22; Gn 24, 26-27; 1 Sam 2, 1-10; 2 Sam 7, 18-29; Lc 1, 46-56; 1, 67-79; 2, 29-32). Em Jesus Cristo, este impulso de gratidão é visto como uma exultação de louvor e gratidão que emerge no coração pela acção do Espírito Santo (Lc 10, 21-22).


d)Espiritualidade e Fecundidade Humana

A fecundidade do seres humanos é vista como uma bênção especial do Senhor. Por outras palavras, no cenário da espiritualidade bíblica, a fecundidade é encarada como um aspecto central, ao lado da Promessa e da Aliança. Para o Antigo Testamento, a morte de uma mulher enquanto virgem era vista como um sinal de desgraça e vida perdida.

Uma mulher com muitos filhos, pelo contrário, era considerada uma pessoa agraciada por Deus. Os filhos são a alegria e a plenitude dos pais (Gn 24, 60; Sal 127; Sal 128, 3). Os filhos são a garantia de um casal abençoado por Deus (Ex 1, 21; 1, 26). A Aliança de Deus com o homem leva consigo a promessa de uma prole numerosa, a qual será causa de bênçãos para a Humanidade (Gn 15, 5; 22, 17). Eis a razão pela qual o filho primogénito é pertença de Deus, pois ele é o primeiro dos grandes dons de Deus. O filho primogénito é como o dízimo das colheitas. Pertence a Deus e, por isso, deve ser resgatado pelos pais. (Ex 34, 20).

Para afirmar que a fecundidade é um dom de Deus, a Bíblia diz que os homens mais importantes da história da salvação nasceram de mulheres estéreis. Estes homens foram um dom de Deus e não obra da fecundidade humana. O eunuco, homem castrado por acidente ou por mutilação, não podia tomar parte na assembleia de Deus (Dt 23, 2). A esterilidade era sempre considerada como um problema da mulher.

O homem que tem sémen é fecundo. O eunuco, como não tem sémen, é uma árvore seca. Como não é uma árvore fecunda, o eunuco não pode fazer parte do jardim de Deus, isto é, a assembleia do culto. O conceito de fecundidade, neste período, limitava-se à capacidade reprodutora. Se uma mulher morria sem filhos, era uma mulher para esquecer. Se era o varão que morria sem filhos, o irmão deste devia ter relações com a viúva para dar descendência ao seu irmão (Dt 25, 5-6). O papel procriador era do varão. A mulher era apenas uma coadjuvante do varão.

Movidos pelo Espírito Santo, os profetas começam a modificar esta forma de ver as coisas. O profeta Jeremias escolheu o celibato para indicar que é melhor não ter filhos que fazê-los membros de um povo corrupto. O profeta Amós diz que os homens que não produzem frutos de vida são como uma donzela que morra virgem (Am 5, 1).

A esterilidade que é uma desonra e causa de maldição de Deus não é a incapacidade de procriar, mas sim a vida dos que não cultivam o amor e a fraternidade. Mesmo que tenham muitos filhos, o ímpio e o injusto não contribuem para o bem do povo de Deus e da Humanidade. Esta esterilidade desonra o homem, pois é resultado das suas escolhas e opções egoístas e fratricidas. O homem é culpado desta esterilidade, não da outra. O juízo de Deus, dizem os profetas, é diferente do juízo dos homens.

O eunuco, diz o profeta Isaías, se tiver uma vida cheia de obras boas pode considerar-se uma árvore fecunda e, portanto, abençoada por Deus. Não tem razões para se considerar um lenho seco, isto é, um ramo sem frutos (Is 56, 3b). Se for fiel à Aliança de Deus, o eunuco terá um monumento e um nome muito mais duradouro que os filhos que por hipótese tivesse deixado. O profeta Isaías diz ainda que o nome do eunuco foi fiel à aliança de Deus não se apagará jamais (Is 56, 4-5).

O livro da Sabedoria diz que vale mais a vida justa de uma pessoa sem filhos, do que ser injusto e ter uma prole numerosa. A memória desta pessoa será imortal, apesar de não ter deixado filhos (Sab 4, 1). Os ímpios, mesmo que tenham muitos filhos não serão recordados com gratidão por ninguém, pois não contribuíram para o bem da Humanidade (Sab 4, 3).

Os filhos são um bem para a Humanidade na medida em que são dons de amor, isto é, seres bem-amados, isto é, seres capazes de ajudar a edificar o Homem tal como Deus o sonhou. Os filhos que nascem de um contexto de desamor, no dia do juízo, acusarão aqueles que os geraram, diz o livro da Sabedoria (Sab 4, 6). Por outro lado, os eunucos que fizeram o bem durante a vida terão uma parte honrosa na morada de Deus (Sab 3, 14).

Do mesmo modo, a esterilidade da mulher não é castigo de Deus nem razão para qualquer desonra. A mulher estéril que segue os caminhos de Deus será bem-aventurada. No dia do juízo, encontrar-se-á cheia de frutos. A fecundidade das mulheres estéreis está na qualidade das suas obras (Sab 3, 13).

Como vemos, o conceito de fecundidade vai-se espiritualizando e tornando mais que uma mera questão de procriação. O profeta Isaías diz que a mulher estéril que viveu a Aliança de Deus terá uma prole mais numerosa do que a mulher que procriou (Is 54, 1-4). O seu esposo destas mulheres é Jahvé o qual é sempre fiel (Is 54, 5-7). A mulher estéril, diz o Livro da Sabedoria, pode ser profundamente fecunda (Sab 3, 12-13). Por outras palavras, a fecundidade que Deus ama são as atitudes que geram fraternidade, paz, alegria, justiça, misericórdia.

Não é por acaso que os Actos dos Apóstolos diz que o primeiro pagão a ser convertido foi um eunuco, o superintendente da rainha Candace da Etiópia: “O Anjo do Senhor falou a Filipe e disse-lhe: “põe-te a caminho e dirige-te para o Sul, pela estrada que desce de Jerusalém para Gaza, a qual se encontra deserta”. Filipe pôs-se a caminho e foi para lá. Ora, um etíope, eunuco e alto funcionário da rainha Candace, da Etiópia, e superintendente de todos os seus tesouros, que tinha ido em peregrinação a Jerusalém, regressava, na mesma altura, sentado no seu carro, a ler o profeta Isaías (…). Partindo desta passagem da Escritura, Filipe anunciou-lhe a Boa Nova de Jesus. Pelo caminho encontraram uma nascente de água e o eunuco disse: “Está ali uma nascente de água! Que me impede de ser baptizado? Filipe respondeu: “Se acreditas de todo o coração, isso é possível”. O eunuco respondeu: “Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus” e mandou parar o carro. Filipe e o eunuco desceram à água e Filipe baptizou-o” (Act 8, 26-38).

A opção celibatária de Jesus insere-se, naturalmente, nesta perspectiva teológica. Já não nos será difícil entender a razão pela qual Jesus Cristo optou pelo celibato. O evangelho de São João diz que ele é a fonte de uma nova fecundidade que faz de nós filhos de Deus: “Mas a quantos o receberam, aos que crêem nele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram dos laços do sangue, nem de um impulso da carne, nem da vontade de um homem, mas de Deus. E o Verbo fez-se homem e habitou entre nós” (Jo 1, 12-14).

Segundo os ensinamentos de Jesus, a vida fecunda é um apelo que Deus nos faz todos os dias. A fecundidade amorosa não está limitada aos períodos fecundos da procriação. Pelo contrário é um deve de todos os dias. Eis o significado do ensinamento da figueira chamada a dar figos durante todo o ano (Mt 21, 18-20; 7, 15-20). O profeta Jeremias dizia que a esterilidade de vida será punida por Deus (Jer 6, 14-15; 6, 26; 7, 11; 7, 25).

Segundo os critérios do Novo Testamento a fecundidade de uma vida mede-se pelo bem que a pessoa faz e não pelo número de filhos que se tem. Há mesmo homens e mulheres que permanecem celibatários para serem mais fecundos, dizem os evangelhos e Paulo (Mt 19, 12ss; 1Cor 7, 7-8; 2Cor 6, 6; 1Tim 4, 12).

Jesus veio inaugurar a família de Deus. Esta não é constituída pelos laços do sangue, mas sim pelos laços do Espírito Santo. O homem nasce para a Família do Reino de Deus através de um novo nascimento, o qual acontece pelo Espírito Santo (Jo 3, 6). Para o novo Testamento é mais fecundo quem ama mais. É pelo amor que os seres humanos serão julgados (Mt 25, 31-46). Segundo estes critérios, o maior mal que pode acontecer ao homem é tornar-se estéril. A esterilidade, nesta perspectiva, é uma opção da pessoa humana. Acontece pela decisão de enterrar os talentos que Deus nos concedeu através dos outros (Mt 25, 14-30).

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