É certo que os evangelhos não nos transmitem os ensinamentos de Jesus de modo literal. Entre o acontecimento histórico de Jesus e a redacção dos evangelhos passaram-se várias décadas. Os evangelhos são resultado das catequeses das comunidades o que quer dizer os ensinamentos de Jesus já estão transformados. Isto no entanto, não significa que os evangelhos não tenham nada a ver com o que Jesus disse e ensinou.
Podemos dizer que os evangelhos são o conjunto dos ensinamentos de Jesus mas já enriquecidos pela acção do Espírito Santo nas comunidades crentes. O Espírito Santo não vem falar de si mas de Jesus: “Quando vier o Paráclito, o Espírito de Verdade que procede do Pai e que eu vou enviar-vos da parte do Pai, ele dará testemunho de mim. E vós também testemunhareis em meu favor, pois estais comigo desde o princípio” (Jo 15, 26-27).
O Espírito Santo e os discípulos testemunham igualmente de Jesus. A fonte da qual emergia a pregação de Jesus é a mesma da qual passou a emergir a pregação dos apóstolos após a Páscoa. Os evangelhos, portanto, transmitem-nos o Evangelho de Jesus. Os evangelhos fixam através da escrita, o mesmo de Evangelho de Cristo: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora. Quando vier o Espírito da verdade há-de guiar-vos para a verdade completa (...). Ele há-de manifestar a minha glória, pois receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer. Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso vos disse que receberá do que é meu” (Jo 16, 12-15). “Enquanto estava convosco fui-vos revelando estas coisas. Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele ensinarvos-à tudo e recordar-vos-à tudo o que vos disse” (Jo 14, 25-26).
Com Jesus Cristo iniciou-se a plenitude da revelação. Mas esta plenitude não terminou com a morte de Jesus. Os evangelhos coincidem na transmissão de uma série de ensinamentos e atitudes de Jesus. Descrevem estas atitudes de modos diversos e com relatos diferentes. Isto significa que não podemos tomar à letra estes relatos, mas sim as atitudes que nos relatam. Há sobretudo uma série de ensinamentos que nos revelam a profundidade e riqueza dos seus ensinamentos. Jesus interpretava os acontecimentos e saboreava a vida com a Sabedoria que vem do alto. Os seus critérios eram os de Deus, não os do mundo:
1- Os Critérios do Mundo Não São o Caminho da Humanização e Felicidade:
Mt 5, 3: Felizes os pobres, pois deles é o Reino dos Céus. Cristo não defendia a miséria, mas convidava os homens a partilhar. É este o caminho da abundância. Ser pobre é ter um coração capaz de pensar no outro e elegê-lo como irmão, para lá dos laços do sangue.
Mt 5, 4: Felizes os que choram, pois serão consolados. O mundo faz chorar homens e mulheres que tinham todo o direito a sorrir, pois são pessoas justas e boas. Os que lutam por uma mundo mais justo e fraterno são perseguidos, presos e muitas vezes mortos. Estes sorrirão na comunhão do Reino de Deus, pois atingiram uma capacidade grande de comungar com Deus e os irmãos.
Mt 5, 5: Felizes os mansos, pois possuirão a Terra. A violência não realiza o projecto de Deus. Com frequência os regimes que nasceram da violência tornam-se mais violentos que os anteriores. A não violência não significa apatia ou desinteresse. Não é neutra, pois actua como um fermento na massa. Os violentos e os opressores perseguem os não violentos á maneira de Cristo.
Mt5, 6: Felizes os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados. Os pobres, os machucados e marginalizados serão saciados. Jesus significava isto com os gestos que tomava em relação aos pobres e marginalizados. Foi hospedar-se em casa de Zaqueu, um pecador público. Deixou-se tocar em público por Maria uma prostituta conhecida de toda a gente. Chegou a afirmar que os marginais as prostitutas, ficarão muito à frente dos especialistas da religião: sacerdotes, fariseus e doutores da Lei. O Samaritano, um sujeito excluído do povo de Deus, ficou à frente do sacerdote e do levita porque soube amar o próximo. A oração do publicano agradou a Deus, enquanto a dos fariseus e doutores da Lei não. Com efeito,” Não são os sãos que têm necessidade de médico, mas sim os enfermos” (Mc 2, 17).
Há também os que não são pobres nem marginalizados, mas são perseguidos por causa da justiça. Deste é o Reino de Deus (Mt 5, 10). Estes são verdadeiros construtores da paz. Estes serão chamados filhos de Deus (Mt 5, 9). De facto, a paz é a calda ambiental para a humanização dos seres humanos.
A paz não é não fazer ondas. Não é deixar o mal acontecer e ficar parado. A paz que serve de calda à humanização do Homem assenta na justiça e no respeito pela dignidade das pessoas. Os que trabalham pela dignificação da pessoa humana são construtores da paz. O Homem está no centro das atenções de Deus: O Sábado está feito para o Homem e não o Homem para o Sábado” (Mc 2, 27).
A sabedoria de Cristo fá-lo compreender o Homem com os critérios de Deus. Ele sente-se enviado para edificar a Família Divina, a qual não assenta nos laços do sangue mas nos laços do Espírito Santo: “Se apenas amais ao que vos amam que mérito tendes nisso? Se apenas saudais os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não procedem os pagãos também deste modo?” (Mt 5, 46-47).
A Sabedoria de Jesus fê-lo compreender que o amor a Deus e aos irmãos é o cumprimento de todos os preceitos, normas e ritos que tornavam o judaísmo um coisa complicada e impossível de praticar: “Não penseis que vim revogar a Lei e os profetas. Não vim revogá-los mas levá-los à perfeição, cumprindo-os plenamente (Mt 5, 17-18). O que se limita a cumprir as normas da Lei é um servo inútil. Apenas cumpriu o que estava mandado. Quem opta pelo amor entra na dinâmica da criatividade. O amor é um apelo a responder de modo sempre novo e adequado, a fim de facilitar a realização e a felicidade dos outros.
2- Autenticidade Perante Deus
Mt 6, 1-4: «Guardai-vos de fazerdes o bem para serdes vistos e louvados pelos outros. Procedendo deste modo não tereis a recompensa do vosso pai do Céu. Quando deres esmola que a tua mão direita não saiba o que faz a esquerda».
Mt 6, 7-8: «Quando orares, não sejas como os pagãos: usam de muitas repetições inúteis pensando que, por falarem muito, são mais atendidos. Não façais como eles, pois o Pai do Céu sabe do que precisais antes de lho pedirdes».
Mt 6, 15.18: «Quando jejuares não apresentes um rosto sombrio, como os hipócritas. Estes desfiguram o rosto, a fim de as pessoas verem que estão a jejuar. Já receberam a sua recompensa. Quando jejuares toma banho e perfuma-te para as pessoas não perceberem que está a jejuar. O teu Pai que vê no oculto te dará a recompensa».
3- Jesus e as Riquezas
Os evangelhos contêm uma série de ensinamentos sobre o bom uso das riquezas. Muitos destes ensinamentos aparecem em forma de parábolas ou histórias edificantes. Têm como pano de fundo os ensinamentos de Jesus sobre as riquezas. São transformadas em mensagens destinadas a conferir aos crentes os critérios cristãos sobre as riquezas. Este modo de proceder pretende incutir na consciência dos leitores os critérios de Cristo sobre as riquezas, a fim de fazer crescer a vida teologal dos crentes a qual capacita os cristãos para serem mensageiros da Boa Nova de Jesus. Não pode evangelizar quem não tem os critérios de Jesus.
Lc 12, 16-21: A parábola do rico insensato. A pessoa não vale pelo que tem nem pelo que sabe, mas pelo que é. Pôr a confiança nas riquezas é uma idolatria pois estas não conseguem salvar-nos.
Lc 16, 1-8: Esperteza do administrador sagaz. Os filhos do mundo sabem administrar os bens para assegurar o seu futuro. O cristão deve saber usar os bens para criar dinâmica de partilha e fraternidade, única garantia de vida eterna. Os bens terrenos não são para amontoar mas para circular e gerar laços de comunhão. Dançaremos eternamente a música do amor com o jeito que aprendermos agora. Os bens são um dom, pois são uma mediação muito especial para crescermos na capacidade de comunhão.
Lc 16, 19-31: Parábola do Rico e do Pobre Lázaro. Existe uma relação muito estreita entre os bens materiais e a nossa partilha no projecto salvador de Deus. O coração humano é moldado em grande parte pelas atitudes que tomamos face ao ter. Após a morte encontramo-nos perante os outros segundo o modo como agimos com o nosso ter.
Lc 10, 29-37: A questão de saber quem é ou não o nosso próximo depende de nós, não de qualquer decreto exterior. De facto, o próximo não se nos impõe. Os outros apenas podem propor-se-nos como próximo. A última palavra é sempre nossa. O Bom Samaritano não era judeu. Não teve as lições de teologia dos sacerdotes e levitas. No entanto foi o único que agiu correctamente em relação à questão do próximo. Quem tem capacidade para eleger o outro como próximo tem qualidade de coração para comungar no Reino de Deus.
Mt 6, 19-21: «Não acumuleis tesouros na Terra, onde a traça e a ferrugem os corroem e os ladrões arrombam as portas para os roubar. Acumulai tesouros no Céu, onde a traça e a ferrugem os não corroem e os ladrões não arrombam as portas para roubar. Onde está o vosso tesouro aí está o vosso coração.» Ponde o vosso tesouro na fraternidade e comunhão com os outros e estareis a edificar para o Reino de Deus. Os ricos vivem cheios de medo de que lhes roubem as riquezas. Isto rouba-lhes a paz interior e a tranquilidade.
Mt 6, 25-26: Não é bom andarmos demasiado ansiosos com os bens terrenos. Confiai em Deus e vereis que o resto será facilitado. «A vida é mais que o alimento e o corpo mais que o vestuário. As aves do Céu não semeiam, não ceifam nem recolhem em celeiros. No entanto, o vosso Pai do Céu alimenta-as». Se trabalhardes pela justiça, a fraternidade e a partilha, haverá abundância para todos.
Mt 15, 32-38: Eram cerca de quatro mil pessoas. Via-se que estavam com fome. Os discípulos tinham apenas sete pães e alguns peixes. Jesus mandou-os entrar na dinâmica da partilha. Todos comeram e ainda encheram sete cestos com os restos que sobraram. Os sete pães significa o suficiente caso entrasse na dinâmica da abundância: a partilha. Os sete cestos significa que podiam continuar que não aconteceria carência. A fome é um produto do egoísmo estruturado das sociedades e dos povos. A Terra dá o suficiente para todos. Como vemos, a Sabedoria de Jesus interpelava e interpela, no sentido de mudar o mundo.
Mt 19, 16-26: O Jovem rico entusiasmou-se com as palavras e acções de Jesus. Pensou fazer-se seu discípulo. Mas as riquezas foram um impedimento. Não é fácil aos ricos adquirirem qualidade de coração para acolherem e viverem segundo a sabedoria de Jesus. Já cumpria os mandamentos. Era um servo inútil que apenas fazia o que estava mandado. As riquezas são um travão que bloqueia a passagem para o vinho novo, a dinâmica da partilha e da comunhão fraterna, a qual cumpre toda a lei e os profetas (Mt 5, 17).
A proposta de vender os bens e dá-los aos pobres foi o grande obstáculo que impediu o jovem de seguir Jesus. Se um rico se propõe acolher Jesus apesar de tudo, as coisas tornam-se simples simples. Zaqueu, homem rico, acolheu Jesus com sinceridade e imediatamente as suas atitudes face à riqueza se alterara.
4- Jesus e os Pecadores
A sabedoria de Jesus, no caso da mulher adúltera revelou-se de uma profundidade divina. Os fariseus e doutores da lei, especializados em religião, entendiam de cultos e sacrifícios, mas não entendiam de misericórdia e justiça. Estavam prontos para matar a mulher à pedrada. Põe a questão a Jesus, a fim de lhe armarem uma cilada. Jesus diz-lhes: aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra. Todos, a começar pelos mais velhos se começaram a retirar em silêncio. A Sabedoria do alto confunde os projectos hipócritas e assassinos. Jesus conseguiu penetrar no mais profundo do mistério humano. Sabia que muitas pessoas, são mais vítimas que culpadas. Por isso nos proíbe de julgar.
Mt 7, 1-5: «Não julgueis para não serdes julgados. Sereis julgados com a medida que usarmos para os outros». O Reino de Deus é uma comunhão orgânica onde somos convidados a entrar mediante relações de fraternidade e amor. Dançaremos eternamente a música do amor com o jeito que treinarmos agora. O que passou a vida a julgar os outro não treinou a dança do amor mas a da separação e afastamento. Não encontra reciprocidade do Reino de Deus.
Mt 9, 2-7: Perdão do pecado e cura do paralítico. Esperavam que o homem ficasse bom das pernas. Não tinham qualquer ideia de que houvesse outras feridas e paralisias mais profundas. Jesus começa por dizer ao paralítico que o seu pecado está curado. Para o paralítico isto foi uma desilusão e para os fariseus presentes um escândalo. Mas depois do perdão veio a cura. Jesus é o libertador do homem total, não apenas do eu exterior. Há feridas muito profundas na nossa interioridade espiritual que derivam, umas do nosso pecado, e outras do pecado dos outros em relação a nós.
Lc 6, 43-45: A Árvore conhece-se pelos frutos. A árvore boa dá bons frutos e a má dá maus frutos. As aparências, muitas vezes iludem-nos. As pessoas não são evidentes. Mas revelam-se através das relações. A pessoa boa do tesouro do seu coração tira coisas boas. O coração da pessoa má é uma fonte de coisas más. É do coração da pessoa que emerge o bem e o mal. A pessoa não é igual ao que diz, mas sim igual ao que faz. A pessoa não é igual aos talentos que tem, mas sim igual aos talentos que realiza. A pessoa faz-se , fazendo. Realiza-se , realizando. É através das sua opções, escolhas e orientação de vida que a pessoa se realiza. Por isso a árvore boa dá bons frutos e a má maus frutos.
5- A Sabedoria Como Impulso de Vida Nova
Mt 7, 24-27: «A pessoa que escuta os ensinamentos de Jesus torna-se semelhante ao homem prudente que edifica a casa sobre rocha. A pessoa que despreza o ensinamento de Jesus é como o homem insensato que edifica a casa sobre areia». A pessoa prudente acolhe a sabedoria, a insensata despreza-a.
Mt 9, 16-17: Odres novos para vinho novo. A mensagem de Jesus é o vinho novo. É diferente do vinho anterior, os preceitos, normas e ritos inúteis do judaísmo. As estruturas judaicas estavam envelhecidas. Não comportavam o vinho novo. As comunidades cristãs nascidas do Pentecostes são os odres novos, os únicos que podem levar o vinho nos do amor a Deus e aos irmãos. Ninguém deita um remendo de pano novo num vestido velho e gasto, aliás o remendo novo rebenta o vestido velho e o rasgão torna-se maior. Só em contexto comunitário o cristão pode amadurecer na vida teologal, a vida nova que o capacita para ser sal luz e fermento no mundo (Mt 5, 13-16).
Mt 5, 44-48: A Sabedoria teologal leva-nos a amar até os inimigos. «Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Procedendo deste modo tornais-vos filhos do vosso Pai do Céu que manda o sol e a chuva tanto para justos como para pecadores». Se apenas amais os vossos amigos não estais a viver o amor em densidade teologal. Os pagãos também fazem o mesmo.
Mt 10, 19-20: Jesus foi perseguido. Os discípulos, após a morte do Senhor também serão perseguidos. Mas não devem estar aflitos, pois o Espírito Santo vai vir e vai enchê-los da Sabedoria de Jesus à qual os seus inimigos não poderão resistir.
Lc 7, 18-23; cf Mt 11, 2-5: Os discípulo de João baptista, após a prisão deste, iam-no informando do que se passava. Então João mandou dois a perguntar a Jesus se é ele o Messias ou se devem esperar outro. O que está subjacente a este relato é que João anunciava a vinda do Messias segundo o esquema trágico dos apocalipses judaicos. Será o dia do castigo e destruição dos pecadores (cf Mt3, 7-10; Is 30, 27-33). O Espírito Santo foi conduzindo Jesus por outros caminhos. Como diz Isaías ele é o ungido pelo Espírito para anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos, dar vista aos cegos, fazer os coxos andar e ressuscitar mortos (Lc 4, 18-21). O Espírito Santo conduziu Jesus servindo-se também dos textos dos profetas (cf Is 61, 1-3; 35, 5-6; 42, 18¸61, 1-3).
Mt 11, 25-27: Jesus exulta de alegria pelo facto de o Pai, mediante o Espírito Santo, estar a conceder aos discípulos o dom da Sabedoria. Esta vem da revelação que o Filho faz do Pai, pois ninguém conhece o Pai senão o Filho como ninguém conhece o Filho senão o Pai e aqueles a quem o Filho o revelar.
Jo 15, 1-7: A nossa salvação acontece mediante a nossa união orgânica com Jesus. Somos como ramos de uma videira organicamente unidos à cepa que é Cristo. A seiva que vem da cepa para os ramos e os torna fecundos é o Espírito Santo. É a Água Viva que o Senhor nos dá e faz jorrar no nosso íntimo vida eterna (Jo 4, 14; 7, 37-39).
B) O Anúncio do Reino
A Vinda do Reino de Deus foi a grande aspiração do povo Hebreu durante cerca de mil anos. Tudo começou quando o profeta Natan anunciou a David que o Senhor Deus lhe ia suscitar um filho, o qual construiria um templo para Deus. Graças a este filho de David que Deus adoptaria como seu, a casa de David permaneceria para sempre (2 Sam 7, 12-16).
O Espírito Santo foi conduzindo os discípulos no sentido de estes compreenderem o alcance da missão messiânica de Jesus. Nos finais do século primeiro, o Evangelho de João já tem uma visão totalmente distinta: “Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazer rei, retirou-se de novo sozinho para o monte” (Jo 6, 15). E ainda: “ Pilatos perguntou a Jesus:’ tu és rei dos judeus?’ (...). Jesus respondeu, o meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que eu não fosse entregue às autoridades judaicas. Portanto, o meu reino não é de aqui. Disse-lhes Pilatos: ’logo, tu és rei? Respondeu-lhe Jesus: ‘é como dizes: eu sou rei’ Para isto nasci e vim ao mundo: dar testemunho da verdade” (Jo 18, 33-37).
Como vemos, no final do século primeiro começa a ultrapassar-se a ideia de um reino messiânico na Terra. Ao lado desta visão, porém, continua vigente outra a outra visão que espera a restauração do reino de David aquando da segunda vinda de Cristo (Act 3, 19-21; Lc 22, 28-30). Está nesta mesma linha a visão milenarista do Apocalipse (Apc 20, 4-6).
Estamos no terceiro milénio. Isto significa que temos muitos séculos de reflexão sobre o projecto salvador de Deus. O reino que esperamos é a nossa incorporação orgânica na comunhão com a Santíssima Trindade, graças a Cristo ressuscitado. Cristo está unido organicamente ao Pai pelo Espírito Santo, fazendo um com ele (Jo 10, 30). Nós estamos organicamente unidos a Cristo (Jo 15, 1-7). Graças ao mistério da Encarnação também a Humanidade forma uma união orgânica com a Santíssima Trindade (Jo 17, 21-23). Somos vivificados pelo Espírito Santo e incorporados em Jesus como filhos em relação ao Pai e irmãos em relação ao Filho (Rm 8, 14-16). É este o poder de nos tornarmos filhos de Deus, não pela vontade da carne ou pelo desejo do homem, mas pelo querer de Deus (Jo 1, 13-14).
O Reino de Deus, portanto, é a plenitude da vida com o nosso Deus: “Vi, então, um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar já não existia. Vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, preparada, qual noiva adornada para o seu esposo. E ouvi uma voz potente que vinha do trono e dizia: ‘esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com os homens, e estes serão o seu povo. Deus estará com eles e será o seu Deus. Enxugará todas as lágrimas dos seus olhos. Não haverá mais morte, nem luto, nem pranto nem dor, pois as primeiras coisas passaram. O que estava sentado no trono disse: eu renovo todas as coisas” (Jo 21, 1-5).
O Reino de Deus é a Festa da comunhão universal. Todos dançam a música do amor, mas cada qual com o jeito com que tenha treinado durante a vida. Todos reinam e comungam com Deus como reis e sacerdotes, isto é, amando e sendo mediação do amor de Deus e dos irmãos: “Vós porém, sois povo eleito, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido, a fim de proclamardes as maravilhas daquele que vos chamou das trevas para a sua luz admirável” (1 Pd 2, 9). No centro da pregação de Jesus estava o anúncio do Reino de Deus. Este é um realidade dinâmica. O Homem é convidado. Pode aceitar ou não. Deus nunca se impõe. Os seus dons são-nos feitos em forma de possíveis ou talentos, a fim de os podemos aceitar ou não.
O Reino é semelhante a um proprietário que sai a contratar operários para a sua vinha (Mt 20, 1). É parecido a um rei que prepara as bodas do seu filho (Mt 22, 2). Também se pode comparar a dez jovens que se preparam para entrar na festa do noivo (Mt 25, 1). O Reino é um dom divino e não uma conquista da Humanidade. Para ter parte no Reino é preciso estar unidos a Cristo. Os homens podem dizer sim ou não.
Jesus ensina-nos a pedir a vinda do Reino (Mt 6, 10). A vinda do Reino não depende dos esforços humanos (Mc 4, 26-29; Mt 11, 12). Uns estão melhor preparados que outros para o acolher (Mt 12, 31). Os que melhor acolhem o Reino são: os humildes (Mc 9, 42). Os simples (Mt 11, 25). Os oprimidos ou angustiados pelas canseiras da vida (Mt 11, 28). Os publicanos e os marginais (Mt 21, 32). Isto significa que é um dom que nunca merecemos. Não é uma recompensa devida ao cumprimento de normas, preceitos e leis.
O Reino de Deus é uma realidade escatológica. Pertence à fase final da História. Com Cristo Ressuscitado iniciaram-se os finais dos tempos, isto é, a Humanidade entrou na fase dos acabamentos. A salvação corresponde à fase final do projecto humano. A criação precede necessariamente a salvação. A divinização das pessoas assenta na sua humanização. Por outro lado, a tarefa da humanização é nossa. Ninguém a pode realizar por nós. Eis alguns sinais que são uma manifestação da dinâmica do Reino a acontecer: Os pobres são evangelizados, os enfermos são curados e o pecado é perdoado (cf Lc 4, 18-21). Chegou o ano da graça. A indulgência total de Deus chega até nós através de Cristo: o Espírito Santo que realiza a restauração do homem ferido pelo pecado (2 Cor 5, 17-19) e a incorporação na comunhão da Santíssima Trindade como membros da Família divina (Rm 8, 14-16; Ga 4, 4-7).
C) O Sentido da sua Morte
1) Dimensão Espiritual da Missão de Jesus
Jesus previu o acontecimento da sua morte violenta. A celebração da Ceia Pascal e, em particular, a instituição da Eucaristia, não deixam dúvidas a este respeito. O facto de Jesus ter escolhido o pão e o vinho como elemento central da Eucaristia, demonstra que tinha consciência clara de ser o Messias, o sumo sacerdote, o portador das bençãos prometidas a Abraão. Escolhendo o pão e o vinho, Jesus está a fazer alusão a Melquisedec, rei de Salém, nome antigo de Jerusalém. Este rei era também sumo-sacerdote. Na altura em que abençoou Abraão, como era sumo-sacerdote do Deus Altíssimo, realizou um sacrifício de pão e vinho (Gn 14, 18-20).
Jesus tinha consciência da sua relação especial face à Divindade. A morte é a condição para ser glorificado junto de Deus. É esta a leitura do evangelho de João ao descrever as horas que precederam a morte-ressurreição de Jesus: “Pai, chegou a Hora. Manifesta a glória do teu Filho de modo que o filho manifeste a tua glória, segundo o poder que lhe deste de dar vida eterna a todos os que confiaste” (Jo 17, 1-3). Como messias é o rei e o sumo sacerdote, isto é, medianeiro e portador das bênçãos concedidas a Abraão em favor de todas as famílias da Terra (Gn 12, 3). É o anunciado a David, o rei que, no momento sua entronização, se senta à direita de Deus (Sal 110, 1). Ele é o filho de David constituído filho de Deus no momento da sua entronização(Sal 2, 6-7). Jesus tinha presente todos estes textos bíblicos, os quais lhe conferiam uma sabedoria muito especial para dar sentido à morte difícil que o esperava.
Jesus tinha a certeza de que o Deus que o consagrou com o Espírito Santo para anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos e o ano da Graça de Deus (Is 61, 1-3; cf Lc 4, 18-21), o ia glorificar no momento da morte como o seu Messias: “Em seguida tomou o cálice, deu graças e entregou-o aos discípulos dizendo: ’Bebei todos dele, pois este é o meu sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados. Eu vos digo que não beberei mais deste produto da videira, até ao dia em que beber convosco o vinho novo no Reino de meu Pai” (Mt 16, 27-29). São Paulo demonstra ter compreendido estes textos bíblicos que inspiraram Jesus do mesmo modo que o Senhor quando afirma: “ Ele (Jesus) é o filho de David segundo a carne. Foi constituído pelo Espírito Santo filho de Deus em todo o poder, no momento da sua ressurreição de entre os mortos (Rm 1, 3-5).
Ao aperceber-se da morte que o aguardava, Jesus faz da mesma uma leitura teológica e espiritual. Os textos do servo sofredor terão sido uma fonte inspiradora para ele (Is 52, 13 –53, 12; Sal 21; Is 42, 1-7). Por isso estava seguro de que a sua vida ia ser glorificada e a sua condição messiânica restabelecida após o sofrimento e a morte como garantiam os textos do justo sofredor. Segundo a promessa de Deus o messias seria um filho de David. Um dos primeiros aspectos da sua missão segundo a primeira profecia de Natan, o Messias reinaria para sempre sobre o trono de David (2 Sam 7, 12-16; cf L3 1,32-33). David interpretou esta profecia de Natan como referindo-se a Salomão. Por isso pediu a Salomão que quando subisse ao trono construísse um templo para Deus. Salomão assim fez (1 Rs 8, 15-25).
É evidente que Jesus fez uma leitura espiritual, não política, da sua missão de rei e sumo-sacerdote. Em relação ao templo, Jesus declara aos chefes Judeus que podem destruir o templo de Jerusalém que ele vai reedificá-lo em três dias, referindo-se à sua ressurreição (Jo 2, 19-23). Ele é que é a mediação de encontro com Deus, não o templo de Salomão. Mateus diz que no momento da morte de Jesus o véu do templo rasgou-se de alto a baixo (Mt 27, 51). Por detrás do véu de templo estava o Santo dos Santos, o lugar onde Deus se tornava presente. Aí só podia entrar o sumo sacerdote. O povo não tinha acesso a esse lugar santíssimo. Não podia encontrar-se directamente com Deus.
Ao dizer que o véu do templo se rasgou de alto a baixo, Mateus está a fazer uma leitura teológica da morte-ressurreição de Jesus: os cultos do templo não têm mais interesse. O povo já tem acesso directo ao Santo dos Santos. Com a morte-ressurreição de Jesus os túmulos começaram a abrir-se e os justos a sair deles (Mt 27, 52-53). A morte foi vencida e a humanidade foi incorporada na Família Divina. Já temos acesso a Deus como filhos em relação ao Pai e irmãos em relação ao Filho. De facto, todos os que receberam o Espírito de Cristo ressuscitado são filhos e herdeiros de Deus Pai e irmãos e co-herdeiros com o filho (Rm 8, 14-16). Já podemos dirigir-nos a Deus dizendo: “Pai nosso que estais no Céu” (Mt 6, 9; Lc 11, 2).
A Carta aos Hebreus diz o seguinte: Como os cultos do templo não agradaram a Deus, Jesus Cristo e disse: eis que venho para fazer vontade do Senhor. Deste modo estabeleceu o novo culto: fazer a vontade de Deus. Procedendo deste modo, Jesus está a realizar a Nova Aliança, tal como foi anunciada por Jeremias: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e meterei lá um coração de carne, infundindo em vós o meu Espírito e não levando mais em consideração os vossos pecados. Por isso já não precisamos de cultos para realizar o perdão dos pecados (Heb 10, 5-17).
A segunda carta aos Coríntios refere-se a esta Nova Aliança de maneira muito bonita: “ Se alguém está em Cristo é uma Nova Criação. Passou o que era velho. Tudo isto vem de Deus que, em Cristo, nos reconciliou consigo, não levando mais em conta os pecados dos homens” (2 Cor 5, 17-19). Segundo o evangelho de João, Jesus põe a Samaritana ao corrente do plano de Deus sobre o Templo da Nova Aliança. Chegou o tempo em que os verdadeiros adoradores não adorarão em Jerusalém nem no monte Garizim, mas em Espírito e verdade. Com efeito, Deus é Espírito e é em espírito e verdade que Deus quer ser adorado (Jo 4, 21-23).
A visão de Jesus sobre a sua missão era espiritual e não sócio-política. Era teológica e não ideológica. O que dissemos sobre o templo é igualmente verdade sobre a sua condição de rei messiânico, o filho prometido a David. A passagem de Marcos sobre as pretensões sócio-políticas dos filhos de Zebedeu e o ensinamento de Jesus sobre esta questão não deixa margem a dúvidas. A reacção dos outros dez também não deixa dúvidas sobre os seus projectos sócio políticos. Jesus ia tentando corrigir estas perspectivas. Certa ocasião, segundo Mateus, chamou mesmo Satanás a Pedro (Mt 16, 23).
2) Sentido Teológico da Morte de Jesus
Jesus teve consciência da morte violenta que o esperava. No entanto, não deixou de continuar a sua missão. Interpretou a sua morte como a possibilidade de ser incondicionalmente fiel a Deus. Podemos dizer que, graças a esta fidelidade incondicional, a ruptura da comunhão da Humanidade com Deus foi totalmente restaurada. Assim como pelo primeiro Adão veio a morte, a vida veio pelo segundo (Rm 5, 18-20). Além disso, a morte violenta de Cristo revela o carácter homicida do pecado, o qual mata sempre o algo no irmão.
A morte de Jesus era condição necessária para a Humanidade atingir a plenitude: a sua divinização. Mas isto não quer dizer que tinha de ser aquela morte. Deus não precisa de sangue para perdoar ao Homem. Deus não quer sacrifícios humanos sangrentos. Por isso rejeitou a morte de Isaac: “Mas o mensageiro do Senhor gritou-lhe do Céu: Abraão, Abraão. Ele respondeu: ‘aqui estou’. O mensageiro disse: ‘ não levantes a mão contra o menino e não lhe faças mal algum, pois agora sei que temes a Deus, visto não lhe teres recusado o teu único filho’. Erguendo os olhos, Abraão viu um cordeiro preso pelos chifres a um silvado. Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto a Deus em lugar do seu próprio filho” (Gn 22, 11-13).
O mistério da Encarnação, só atingiria toda a humanidade quando Cristo entrasse, pela morte, na esfera da plenitude. Pelo acontecimento da morte a pessoa liberta-se das coordenadas do eu exterior ou individual: biológicas, psíquicas, rácicas, culturais, linguísticas e espacio-temporais. Nesse momento entra nas coordenadas da comunhão universal. Foi nesse momento que, através de Jesus, a Humanidade ficou organicamente incorporada na comunhão da Santíssima Trindade. Pelo mistério da Encarnação, o divino enxertou-se no humano, a fim deste ser divinizado. A encarnação fazia parte do projecto de Deus para a Humanidade, houvesse ou não pecado. De facto, a Humanidade não podia ser organicamente incorporada na Divindade sem que o divino se unisse organicamente ao humano. Por outras palavras, sem a dinâmica da Encarnação a Humanidade não podia ser divinizada.
A morte de Jesus era necessária para a Humanidade atingir a sua plenitude. Com efeito foi pela morte que Jesus entrou organicamente na comunhão humana universal, comunicando-lhe o dinamismo humano-divina. Se não tivesse havido pecado a morte de Jesus não teria sido violenta. Seria o parto para nascer a Humanidade divinizada. Eis o sentido da morte de Jesus em relação à salvação humana:
1- Teria sido mediação para a divinização do Homem;
2-Teria sido condição para o humano ser assumido organicamente na comunhão divina da Santíssima Trindade;
3-Devido ao pecado, a morte de Cristo foi Redenção, isto é, reconciliação da Humanidade com a Divindade, graças à total fidelidade de Jesus. Por outras palavras, a fidelidade incondicional de Jesus fez que o pecado do Homem não fosse mais tido em consideração (2 Cor 5, 17-19).
A Sabedoria deu a Jesus a força e o sentido para viver uma fidelidade total a Deus. Foi esta sabedoria que lhe deu a possibilidade de fazer da sua morte uma leitura teologicamente positiva. Só deste modo a podia ter vivido numa linha de amor total a Deus e à Humanidade. O Espírito Santo foi o grande protagonista que comunicou a Jesus os critério divinos da Sabedoria, capacitando-o para ler os acontecimentos com os olhos de Deus.
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