Relações e Estruturação Pessoal

a) A Importância das Relações na Estruturação da Criança
b) O Amor Como Dinamismo Vital das Relações
c) Histórias do Homem Amachucado                                       



a) A Importância das Relações na Estruturação da Criança

Utilizando a imagem bíblica do barro, diríamos que a argila humana se vai amassando e moldando através das relações. A nível da criança as relações são estruturantes, pois amassam e moldam o barro dando-lhe a configuração com a qual vai ficar para a sua vida. Isto é verdade tanto para  o bem como para o mal.

Assim com as agulhas nas mãos da bordadeira estruturam o fio, construindo autênticas filigranas de rendas maravilhosas, assim as relações humanas estruturam a criança tanto a nível psíquico com espiritual. Quando estas relações estão vivificadas pelo amor capacitam a criança para, ao longo da vida, fazer opções, escolhas, decisões e tomar atitudes que, por vezes, são autênticos milagres de amor.

A nível dos adultos as relações são sobretudo plenificantes, pois optimizam aquilo que a pessoa já é como realidade estruturada. O adulto atinge a plenitude da sua realização pessoal mediante relações com a densidade do amor. Se estas relações forem negativas bloqueiam essa mesma realização ou plenitude. Na verdade, as relações negativas bloqueiam as possibilidades de crescimento humano, pois conduzem a comportamentos destrutivos. Isto é verdade não apenas ao nível psíquico como também espiritual. De facto, o eu pessoal-espiritual também se estrutura. Por isso podemos falar da configuração histórica eu espiritual. Por outras palavras, a nossa identidade pessoal permanecerá eternamente com o jeito de amar que adquiriu na história.

Em relação à criança podemos dizer que ela é sobretudo um barro a ser modelado pelos outros. Esta modelagem acontece sobretudo através das relações. A modelagem fundamental acontece no contexto familiar, escolar, cultural e social. Todos conhecemos a fragilidade deste ser que é a criança. Daqui a necessidade de estabelecermos com ela relações assentes na ternura e amor. É fundamental termos presente que uma criança não é um adulto em miniatura. Há muitas riquezas que emergem da experiência e das opções de amor que a criança ainda não tem mas que terá quando for adulta. Uma criança é uma aposta de vida livre consciente e responsável que falta concretizar. É uma história por contar, um poema que falta escrever e uma estátua ainda não esculpida.

As crianças começam por adquirir o jeito do contexto em que crescem e se desenvolvem: se crescem num contexto de fé, aprendem a ser crentes. As crianças, com efeito, são um barro que faltar moldar. São uma história de amor que ainda não aconteceu e um canção que ainda não foi cantada. O primeira verso desta canção não é da autoria das crianças, mas daqueles que as modelam. Todos começamos por ser o que os outros fizeram de nós. Assim, por exemplo, se o seu meio familiar é indiferente aos valores espirituais, as crianças vão-se tornando indiferentes.

Uma criança, é realmente um romance que ainda não foi escrito, embora o esboço já esteja a ser redigido pelos outros. Se no meio em que vivem as pessoas tomam a vida a sério decidindo, optando e agindo segundo padrões de liberdade, consciência e responsabilidade, as crianças aprendem a realizar-se como pessoas comprometidas consigo, com os outros e com Deus. São uma capacidade de renascer que ainda não foi concretizada.

A criança é uma paixão que ainda não germinou e uma opção de vida que deseja emergir. É um decisão que ainda não foi tomada e uma vocação ainda não plenamente definida.
Se vivem permanentemente em ambientes críticos e intolerantes, as crianças vão-se tornando intolerantes...
Se vivem rodeadas de atitudes hostis, aprendem a ser agressivas...
Se vivem em ambientes vazios de ternura começam a sentir-se inseguras e dominadas pelo medo, tornando-se pouco a pouco pessoas neuróticas...

Uma criança é um dom que ainda não se realizou, um coração ainda não poluído e uma fé que ainda não foi posta à prova. Por isso acreditam cegamente nas afirmações e propostas dos adultos que as modelam. Se as pessoas em vez de as valorizarem actuam com elas como sendo coitadinhas as crianças começam a enredar-se em sentimentos de auto compaixão. As crianças são feixes de possibilidades ainda não realizadas, uma fome enorme de ser e crescer, a fim de atingirem a sua maturidade.

Se são ridiculizadas tornam-se tímidas e deixam de confiar em si. Ninguém é capaz de gostar de si antes de alguém ter gostado o ter valorizado e ter dado provas de gostar dele... Se no seu meio domina a inveja, a criança começa a ser invejosa. Ela é um projecto de liberdade ainda não concretizado e uma consciência ainda não estruturada e responsabilidade ainda não assumida.

Se os pais se dão muito mal, a criança começa a sentir-se culpada. Pensa que as tensões entre os pais acontecem por causa delas.
Se vivem em meios marcados pela mentira aprendem a ser mentirosas...
Se vivem em meios marcados pela tolerância, aprendem a ser compreensivas e a valorizar os outros, apesar de serem diferentes...
Se são estimadas e encorajadas aprendem a ser confiantes...
Se vivem em meios onde são estimadas e apreciadas tonam-se seguras e capazes de reconhecer as suas qualidades e capacidades.
Se sentem aprovação, aprendem a ser elas mesmas sem necessidade de reprimir a emergência da sua realidade profunda.
Se lhe dão ternura começam a ver o mundo como um lugar onde há amor...
Se são aceites nas suas iniciativas, aprendem a programar objectivos para a vida...
Se vivem em contextos onde acontece a partilha aprendem a ser generosas...

A criança é o ponto de partida da pessoa em construção. É uma originalidade a afirmar-se fortemente mas ainda não plenamente revelada.
Se vivem rodeadas por atitudes de honestidade e rectidão, aprendem a agir segundo a verdade e a justiça...
Se vivem em ambientes afectivamente seguros aprender a ter fé em si e nos que as rodeiam...
Se vivem rodeadas por gestos de carinho e amizade começam a ver a vida como uma coisa que vale a pena ser vivida...
Se vivem rodeadas por atitudes de serena repreensão e correcção aprendem que na vida há valores que não podem ser postos em causa...

Educar é uma arte que só pode realizar-se com muito amor. Ajudar uma criança a crescer de maneira feliz é ser benfeitor de toda a humanidade. É também ser mediação do amor de Deus.  Com efeito, o Reino de Deus é a Comunhão universal das pessoas, onde cada qual está presente com a riqueza que conseguiu realizar. A criança é um ser identidade pessoal inacabada. Sem deixar de ser quem é irá sendo gradual e progressivamente diferente do que agora é. A criança é um ser que, apesar de estar constantemente a imitar os outros, não será cópia de ninguém, pois irá sendo cada vez mais única, original e irrepetível

A pessoa está talhada para o encontro; só pode realizar-se em relações com os demais. De facto, não somos ilhas. Ninguém se pode realizar sozinho, embora os outros não possam substituir-nos na nossa realização pessoal. Os que caminham ao nosso lado são mediações fundamentais par nos podermos realizar. A qualidade das nossas relações com os outros está condicionada pela qualidade das relações que os outros tiveram connosco na primeira etapa da nossa vida. As relações são fundamentais para a realização da pessoa. O bem-amado está capacitado para amar bem, pois sente-se intimamente equilibrado. Isto quer dizer que o bem-amado está mais possibilitado para se realizar como pessoa do que o mal-amado.

A pessoa comunica-se na medida em que se possui, e nessa medida, deixa o outro comunicar-se. Nesta interacção vai-se estruturando de modo social e, no sentido mais profundo, vai emergindo o seu eu pessoal e espiritual capaz de reciprocidade e comunhão amorosa.
    
A criança precisa tanto da ternura para se estruturar afectivamente como do pão para viver e crescer. Daí a sua arte para cativar os adultos e obter essa ternura fundamental para um desenvolvimento psicológico equilibrado. É através das relações com os outros que a pessoa vai sendo capaz de se possuir, de se amar e conhecer em profundidade. Ninguém consegue gostar de si antes de alguém o ter valorizado e apreciado. É este o mistério da reciprocidade.

Esta fome de realização em sociedade leva as pessoas a criar associações ou grupos, espaços humanos fundamentais para a pessoa se conhecer, realizar e possuir. À medida em que amadurece socialmente, a pessoa começa a ser capaz de sair de si para ir ao encontro do outro. Para lá de si, descobre o outro com as suas diferenças e qualidades. Deste modo cresce em si o sentido da solidariedade, do trabalho em equipa, do companheirismo, da generosidade e gratuidade ou sentido do dom para os demais.


b) O Amor Como Dinamismo Vital das Relações

A realização pessoal é resultado de um processo histórico. Para nos dizermos temos de contar uma história. Quando nos queremos comunicar em profundidade sentimos uma necessidade enorme de contar a nossa história. Estruturamo-nos de modo gradual e progressivo. A força que faz avançar a estruturação pessoal é o amor. O bem-amado vai emergindo como pessoa bem estruturada. O mal-amado, pelo contrário, emerge como pessoa complicada, mal estruturada e condicionada nas suas possibilidades de realização pessoal. Só o amor possibilita uma boa estruturação pessoal.

Nascemos com um leque de talentos que são a condição básica da nossa realização pessoal. Ninguém é herói por ter recebido muitos talentos. Também não somos culpados se o feixe das nossas capacidades é limitado. A heroicidade está na fidelidade aos talentos que recebemos.

O amor é a opção mais livre que a pessoa humana é capaz de realizar. Por isso ninguém é capaz de nos obrigar a amar. O outro torna-se nosso próximo a partir do momento em que o elegemos no nosso íntimo como tal. Amar é sempre uma decisão pessoal. Quando elegemos o outro como nosso próximo, o nosso coração dilata-se. Como vemos, amar não é uma questão de sentimentos, mas de decisões e opções que implicam o bem do outro e, por efeito de reciprocidade, o nosso próprio bem.

Amar é quer bem e querer o bem do outro, solidarizando-se com a sua realização e felicidade. Quando decidimos amar, as nossas atitudes tomam o jeito da fraternidade, da solidariedade, da reciprocidade e da partilha. Quando amamos uma pessoa, esta sente que uma porta se lhe abriu para a felicidade e alegria. A sua força interior cresce e a confiança em si aumenta.

Sem o amor dos outros não somos capazes de nos auto estimar e resolver adequadamente as nossas dificuldades. Amar não é pretender que o outro seja à minha medida e segundo os meus critérios. Pelo contrário, é deixar o outro ser segundo o melhor das sua possibilidades, as quais não são iguais às minhas. Amar é não pretender ser a medida do outro. O Evangelho interpela-nos no sentido da universalidade do amor. Convida-nos a eleger o outro como próximo, para lá da língua, da raça, da nacionalidade ou dos laços do sangue.

O próximo, portanto, é todo aquele que elegemos dentro do coração como sujeito da nossa solidariedade e comunhão. Todo o ser humano é uma proposta que Deus nos faz para o elegermos como próximo. Eis as palavras de Jesus: “Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Procedendo assim tornar-vos-eis filos do vosso Pai que está nos céus” (Mt 5, 44-45).

Com efeito, sabemos que a família de Deus não assenta nos laços do sangue, mas nos laços do Espírito Santo, o qual deseja conceder ao nosso coração a medida do coração de  Cristo. É esta a proposta que Jesus nos faz: “ Se amais apenas os que vos amam, que recompensa tereis. Os publicanos também fazem isso. Se saudais apenas os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem assim também os pagãos? Sede antes perfeitos como perfeito é o vosso Pai do Céu” (Mt 5, 46-48).

A proposta de Cristo é para que abramos o nosso coração à medida do coração de Deus: amar a todos. Amar é a opção mais nobre e humanizante que a pessoa humana é capaz de realizar. O nosso amor possibilita a realização e felicidade do outro.  A solidão estrutura-se no coração do mal amado mal amado. Por isso ele se sente só. Cada um de nós é possibilitado pelo amor dos outros. Do mesmo modo, o nosso amor possibilita a realização dos demais. O mal amado não é capaz de se amar bem. Fecha-se e desconfia dos outros. É uma pessoa estruturada no desencontro e na solidão. O amor torna a vida das pessoas ternas e doces. O amor ajuda a pessoa a despertar para o encontro e a comunhão. As pessoas mal amadas são muito frequentemente  azedas e agressivas.


c) Histórias do Homem Amachucado

1) O Falso Amor
A Mónica foi vítima de um falso amor. Há relações que enredam as pessoas numa teia que enreda e bloqueia a sua humanização.  Sabemos que a lei da humanização é: emergência pessoal mediante relações de amor e convergência para a comunhão humana universal. As possibilidades de humanização da Mónica estavam bloqueadas. Deixou-se amarrar por uma relação que a não deixou crescer como pessoa. Está dominada por um irmão, solteirão, que a castrou psiquicamente, desfazendo todas as tentativas de casamento que se lhe apresentavam.

O irmão funcionava como a escala de valores para ela. Só ele sabia o que era bom para ela. O que lhe convinha ou não era sempre o irmão que decidia. Para melhor a controlar até lhe construiu uma boa casa que era como que uma gaiola dourada. Como tinha uma visão distorcida sobre a vida humana, o irmão da Mónica considerava-se o grande amigo e benfeitor da sua irmã.

Hoje, apesar da sua idade avançada, a Mónica não é capaz de decidir nada sem consultar o irmão. Estabeleceu-se uma relação sado-masoquista que faz dela uma pessoa substituída. Isto significa que está incapacitada de se realizar de maneira livre e responsável. O seu mundo interior não tem profundidade.

A Mónica não teve oportunidades para escolher, decidir, optar e orientar a vida segundo aquilo que considerasse como o melhor para si. O irmão, sempre atento às tentativas de voo, surgia muito solícito dizendo-lhe que não tinha que se preocupar. Na verdade não a deixava voar. Ele tratava de tudo. A ela bastava-lhe seguir as instruções que ele dava. Dizia muitas vezes à sua irmã que ela era feliz, pois tinha a vida facilitada. Deste modo não cometia erros.

A Mónica ficou reduzida à condição de pessoa substituída. Foi-lhe roubado o direito e a oportunidade de crescer como pessoa livre, consciente e responsável. Não acertou nem errou. Mas também não crescer como pessoa. A Mónica limitou-se a fazer o que o irmão, sempre atento e solícito lhe indicava. Uma pessoa que se deixa anular e manipular por outra nunca chega a humanizar-se profundamente. Este homem chamou amor a uma máscara que encobria uma das formas mais subtis de opressão. Iludindo a verdade, fazia questão de realçar que actuava assim para bem da irmã. No entanto mutilou e bloqueou profundamente a irmã, impedindo-a de se realizar segundo as suas possibilidades e talentos. A pessoa não é igual aos talentos que tem, mas sim aos que realiza. Ninguém é a medida do outro. O maior pecado deste homem foi pretender ser a medida da sua irmã.

A Humanidade está a edificar-se como processo histórico. Emerge de modo único, original e irrepetível em cada pessoa. O dever ético fundamental da pessoa humana é deixar emergir a pessoa do outro com a sua originalidade, unicidade e irrepetibilidade. É este o primeiro e fundamental dever do amor ao irmão. Amar é facilitar a emergência dos talentos que existem no irmão. Toda a pessoa normal é capaz de ir descobrindo o que é melhor para si. Na relação da Mónica com o irmão instalou-se um falso amor. Sob uma aparência de amor vivia-se uma relação doentia de dominador e dominada.

É verdade que ninguém se pode realizar sozinho. Mas também é certo que ninguém pode realizar a pessoa do outro. As pessoas que substituem os outros estão a impedi-los de se realizar. Não amam de verdade. Quem impede o outro de se realizar também não se realiza. Por isso não atingem um grau profundo de humanização.

O pecado é sempre um dizer não ao amor. É uma recusa a acolher amorosamente a novidade do outro. O egoísmo só se vê a si. O pecado que leva à perdição é a oposição sistemática e incondicional às propostas do amor tal como ele nos é proposto pela nossa consciência e, no caso do cristão, também pela revelação e os sinais dos tempos. A perdição ou estado de inferno é sempre resultado do agir humano, nunca uma decisão de Deus.  Por outras palavras, toda a pessoa humana tem a possibilidade de se perder. Mas isto será sempre fruto do querer humano, nunca uma decisão divina.

Face ao pecado as pessoas situam-se quer como vítimas quer como culpadas. A vítima sofre as consequências do pecado sem dele ter culpa. Culpada é a pessoa que se recusa a crescer em humanidade através do amor. O amor é a força criadora da pessoa. É a seiva que alimenta o dinamismo relacional humano, o qual faz da Humanidade uma realidade orgânica. A salvação ou perdição da pessoa é decidida pelas atitudes que esta toma face ao amor. 

2) O Caso da Mãe Possessiva
O Tiago era um adolescente precoce. A mãe investiu nele toda a sua afectividade, superprotegendo-o e exercendo sobre ele um controle asfixiante... Se o Tiago tenta libertar-se desta influência exagerada, a mãe faz chantagem: torna-se uma mulher inconsolável... Para melhor controlar e possuir o Tiago, a sua mãe vai destruindo as amizades do filho... A mãe do Tiago quere-o apenas para si...

Grande parte dos comportamentos desta mulher possessiva são inconscientes. Por isso rejeita os reparos do filho quando se refere a este problema. Pouco a pouco a angústia começa apoderar-se do Tiago e a roubar-lhe a alegria de viver. Junto dos colegas sente-se inferior. Procura compensar-se desta inferioridade sendo o melhor nos estudos...

O Tiago é brilhante nos raciocínios e fluente na comunicação. Mas a tendência para se isolar tem aumentado cada vez mais. A mãe, por seu lado, quando mais o vê sem amigos mais tenta compensá-lo com mimos... O Tiago não vive uma adolescência normal... Não gosta de si nem dos outros. Superou em conhecimentos os colegas. Foi este o modo de compensar-se dos sentimentos de inferioridade. Como não entendem o que se passa com o Tiago, os colegas Interpretam-no mal. Tem a mania que é bom, dizem!

Devido aos seus sentimentos de inferioridade, o Tiago tem medo de ser posto a ridículo pelos colegas. Por esta razão se isola. Os colegas interpretam este afastamento como resultado da sua mania de pretender ser superior... A nível da escola, o Tiago é considerado um marrão. O drama do Tiago aconteceu de modo gradual e progressivo. Quando se deu conta já estava enredado neste drama. Como assuas relações, normalmente terminam em desencontros, o Tiago tem medo dos encontros. É cada vez mais um jovem só.

3)O Pai Ausente
O Nuno tem dezoito anos... A sua dor radica no facto de não conhecer o pai. Apenas o conhece através de algumas fotografias. O pai abandonou-os, a ele e à mãe, quando o Nuno tinha cerca de dois anos: emigrou e nunca mais voltou. A mãe é uma mulher frustrada no casamento... Vinga-se da traição do marido dizendo muito mal dele para o filho. Isto gera um sentimento de revolta no interior do Nuno, pois ele desejava ter pelo menos uma imagem de um pai bom, a fim de ter um padrão de referência...

Há momentos em que o Nuno tem desejos muito fortes de encontrar o pai. Estes impulsos brotam de um sentimento de vazio que o habita com muita frequência. No seu íntimo, o Nuno vive como se lhe faltasse algo de fundamental. Sente, por vezes, um desejo enorme de abraçar o pai. A mãe através de conceitos religiosos distorcidos não foi capaz de comunicar-lhe um sentido válido para a vida. Apenas incutiu nele sentimentos de culpa.

O Nuno sente-se interiormente revoltado quando a mãe fala mal do pai. É como se esta estivesse a destruir algo de si mesmo ou a roubar-lhe uma dimensão fundamental de si mesmo. Por isso se sente uma pessoa sem apoios sólidos. Os filhos amam as mães através dos pais e estes através das mães. É importante não destruir este triângulo edipiano, fonte de equilíbrio e maturidade.

À medida em que o psiquismo se estrutura, situa a pessoa no seu íntimo como um face a face: masculinidade feminilidade. É aqui que radica essa diferenciação que capacita a pessoa para relações qualitativamente distintas segundo se trate de relações com pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente. As relações humanas são sempre sexuadas, o que não quer dizer sexuais...

Por vezes, o Nuno sente um desejo de abraçar o pai que apenas conhece através de retratos antigos. Imagina o pai a repreendê-lo. Sente que isto era muito importante para si, a fim de poder opor-se a alguém e saber o que quer e as possibilidades que tem. Estruturamo-nos numa dinâmica de reciprocidade relacional. O Nuno compreende muito bem que a afectividade tem duas faces: masculina e feminina. Se a mãe lhe falasse bem do pai, o Nuno podia idealizá-lo, interiorizando a figura de um pai ideal.

As mães não devem roubar os pais aos filhos. Mesmo que seja o pai imaginário. Hoje o Nuno não tem ideais nem projectos de vida. A sua vida não tem sabor. Apesar de, materialmente, não lhe faltar nada, sente-se insatisfeito e infeliz. Quem não sente vocação para o dom não devia gerar filhos. Não é de indivíduos humanos que a humanidade está carenciada, mas de homens e mulheres bem amados e, portanto, capacitados para gostarem de si e dos outros, condições para uma realização humana satisfatória.

Não basta procriar para se ser pai humano. A paternidade humana exige dom e muito amor. A paternidade humana exige muitas mortes, a fim de dar vida amorizada. A noção de Deus Pai é vazia para o Nuno. Falta-lhe uma experiência e um ideal que confira conteúdo a esta noção espiritual. A paternidade humana é mediação para a acontecer a paternidade divina e também para esta se revelar.

4) O Pai Chantagista
O pai da Margarida era verdadeiramente chantagista. As suas chantagens destruíram a alegria de viver da sua filha. Quando discutia com a esposa, o pai da Margarida ameaçava suicidar-se. Se discutia com a filha dizia que se ia matar. A criança é vulnerável às chantagens, pois não tem critérios para se valorizar as coisas e, deste modo, poder defender-se.

A Margarida vivia o seu dia a dia aterrorizada com a ideia de perder o pai. Passava os dias inactiva com medo de desgostar o pai. Por esta mesma razão evitava brincar com as outras crianças. Quando fazia algo de incorrecto, a angústia apoderava-se dela, ao ponto de fazer temperaturas altas.

A Margarida, hoje, é uma mulher. O pai morreu recentemente no hospital. Este acontecimento é uma fonte de tormentos, pois o pai tinha-lhe dito que não queria morrer no hospital. Quando a Margarida levou o pai para o hospital, pensou apenas no facto de este ser melhor atendido. Enquanto o pai viveu, a Margarida não foi feliz. Hoje é uma mulher atormentada com sentimentos de culpa.

A chantagem é uma forma de explorar e manipular as pessoas... Durante a vida do pai, a Margarida não viveu nem se realizou como pessoa: Não casou com o rapaz de quem gostou com medo de que o pai se matasse; Não tirou o curso de que gostava porque o pai não gostava desse curso; Não foi promovida no emprego, pois tinha de sair da terra em que vivia com o pai e isto iria desgostar profundamente o pai; não realizou algumas modificações profundas na sua casa porque o pai não gostava dessa ideia.

O pai da Margarida morreu. Mas morreu demasiado tarde para que a Margarida se realizasse como pessoa. Hoje, a Margarida vive só, na sua casa e sem alegria. Ninguém é obrigado a renunciar à sua realização profissional pela simples razão de que alguém viva usando a arma da chantagem. A Margarida passou a vida a pedir a Deus que lhe mande sofrimentos mas que impedisse o pai de se matar. Quando sofria ficava aliviada e tranquila, pois isso significava que o pai não se iria suicidar.

Os pai que o sabem ser são arquitectos da maravilha da humanização. São verdadeiros benfeitores da Humanidade. São a raiz de pessoas livres e criadoras. São mediação da paternidade e da maternidade divina. Os primeiros arquitectos do Homem em construção são realmente os pais. Depois são os filhos com o que receberam de bom dos pais. Eis a grandeza da paternidade humana!

4) O Manuel dos olhos tortos
Era considerado o coitadinho da família. Na escola todos o consideravam o menos dotado. Tudo isto porque, como sofria de dislexia, dava mais erros que os outros. Como era estrábico, chamavam-lhe o Manuel dos olhos tortos. Em casa, os pais tratavam-no com compaixão e não lhe permitiam as mesmas liberdades de que usufruíam os seus irmãos.

Todos pensavam que o Manuel não chegaria a ser uma pessoa realizada na vida. O Manuel desde pequeno que se perguntava a razão pela qual não prestava. A criança acredita cegamente nos seus pais. Quando estes lhe dizem que não presta, ela considera-se como alguém que não presta. Só que o Manuel não entendia a razão pela qual os seus irmãos prestavam e ele não.

Desde muito cedo, disfarçadamente começou a prestar atenção às conversas dos adultos tentando, deste modo, descobria a razão pela qual os seus irmãos prestam e ele não. Apesar da dislexia, o Manuel conseguiu fazer um curso superior. No entanto nunca teve confiança em si. Como os outros sempre o desvalorizaram, o Manuel não era capaz de se valorizar. Com efeito, ninguém é capaz de gostar de si antes de alguém o ter valorizado. A nossa auto-estima acontece na medida em que os outros nos valorizaram e apreciaram.

Pouco a pouco, o Manuel foi inventando comportamentos e recursos para se defender e proteger, mas sempre considerando-se como alguém inferior aos outros. Antes de agir estuda minuciosamente todas as possibilidades de não falhar. Isto desgasta-o e bloqueia enormemente as suas possibilidades de render. Não falha, mas também não cria, pois é incapaz de aventurar ou correr um risco, por mínimo que seja.

As suas limitações tornaram-no notado e foram causa de humilhações. Hoje, o Manuel, sente horror a assumir qualquer comportamento que dê nas vistas. Isto fá-lo anular-se constantemente. Arranja sempre maneira de agir de modo a não ser notado. Somos seres estruturados em reciprocidade relacional. O juízo que os outros fazem Acerca de nós condiciona e molda o juízo que fazemos a nosso respeito. Amamo-nos segundo fomos amados e estimados pelos outros.

Em Comunhão Convosco
Calmeiro Matias

Sem comentários:

Enviar um comentário