Construíndo a Família Cristã (I)


a) A Família como Realidade em Construção


A família humana é um espaço fundamental para a humanização dos seres humanos. Podemos dizer com toda a verdade que a família é a célula mãe da sociedade. Segundo tenha sido bem ou mal amado, o ser humano ficará capacitado ou não para amar. Na verdade a lei do amor é esta: ninguém é capaz de amar antes de ter sido amado e o mal amado ficará a amar mal.

É na família que se inicia a dinâmica básica da humanização que acontece como emergência pessoal mediante relações de amor e convergência para a comunhão universal. À luz da fé cristã a comunhão universal para a qual as pessoas humanas convergem na medida em que emergem como pessoas é o Reino de Deus.

Isto quer dizer que a meta da Família humana é a Família de Deus. Por outras palavras, a família humana é uma mediação fundamental para acontecer a edificação da família divina, a qual transcende os laços da carne e do sangue.

Jesus tinha consciência de que a sua missão implicava a incorporação das pessoas humanas na comunhão familiar de Deus mediante o dom do Espírito Santo (Rm 8, 14-17; Ga 4, 4-7). Eis a razão pela qual Jesus anunciava o Reino de Deus, isto é a Família Universal de Deus, a qual assenta nos laços da Palavra e do Espírito Santo:

“Entretanto chegaram sua mãe e seus irmãos que queriam falar com Jesus. Ficaram do lado de fora, pois a multidão estava sentada à volta dele. Entretanto alguém disse a Jesus: “Está lá fora a tua mãe e os teus irmãos que te procuram”. Jesus respondeu: “Quem são minha mãe e meus irmãos? E percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele, disse: “Aí estão minha mãe e meus irmãos, pois todo aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3, 31-34).

Mais que um lugar de aprendizagem teórica, a família é um entretecido de relações, onde emerge o amor como dinâmica de bem-querer que tem como origem as pessoas e como meta a comunhão. A família é o espaço adequado para acontecer o amadurecimento dos esposos, dos pais e dos filhos. Primeiro amadurece o marido e a esposa. Depois amadurece o pai e a mãe.

A família é a comunidade de amor mais adequada para o ser humano se estruturar como pessoa livre, consciente, responsável e capaz de amar. É na família que a natureza humana encontra as melhores condições para emergir como vida pessoal e convergir para a comunhão amorosa. Por outras palavras, a família é um contexto humano excepcional para a humanização das pessoas.

Quanto maior for a densidade do amor no entretecido das relações familiares, mais os seus membros crescem como pessoas bem-amadas e, portanto, capacitadas para colaborar na criação de uma sociedade mais justa e feliz. Uma pessoa bem-amada está capacitada para amar bem, facilitando a realização das outras pessoas e, portanto, da sociedade.

Como sabemos, a plenitude do ser humano não está em si, mas no encontro e na comunhão com os outros. Apenas em relações de amor com os outros a pessoa se pode realizar e possuir plenamente. Na medida em que se amam, os membros da família elegem-se mutuamente como alvo de bem-querer e procuram aceitar-se apesar das diferenças.

É no interior de uma família bem-amada que a natureza humana encontra condições para emergir na sua perfeição máxima. De facto, é no coração da pessoa bem-amada que a Humanidade emerge de forma única, original e irrepetível. De facto, não há duas pessoas iguais. É por esta razão que ninguém está a mais, pois ninguém é uma cópia de alguém que já existe ou existiu.

A família humana é uma imagem perfeita de Deus. A nossa fé diz-nos que Deus é uma comunhão familiar de três pessoas.  Em condições normais, é na família que as pessoas recebem o leque básico dos seus talentos ou possibilidades de humanização. A fidelidade aos talentos recebidos é, como diz o evangelho de São Mateus, a vocação básica do ser humano. Na verdade, a fidelidade aos talentos recebidos na família, pessoa torna-se apta para ser um bom construtor da sociedade e um bom participante da festa da comunhão universal que é a Família de Deus (cf. Mt 25, 14-30).


b) Família e a Epopeia da Humanização

Podemos dizer que o Homem faz parte do melhor que a Criação já produziu. A Humanidade concretiza-se em pessoas, isto é, em seres com uma interioridade espiritual. É verdade que o ser humano não é Deus, mas devido ao facto de ser pessoa é proporcional à própria Divindade.

Com efeito, a Divindade é pessoas em comunhão e a Humanidade também. Eis a razão pela qual o Homem é o sonho e a paixão de Deus. Está em processo de realização histórica. Por isso, para se dizer, precisa de contar uma história. A vida humana já tem sabor a eternidade, pois devido à sua densidade espiritual deu o salto para a imortalidade.

Como realidade em construção na História, o Homem está a emergir em cada ser humano de forma única, original e irrepetível. Mas a Humanidade não se esgota nas pessoas actualmente em construção na História. Na verdade, a multidão dos seres humanos que nos precederam nesta aventura da humanização já está incorporada na comunhão Universal da Família de Deus.

Com a Encarnação do Filho Eterno de Deus, a Humanidade deu um salto de qualidade e entrou na plenitude dos tempos. Com o termo plenitude dos tempos, São Paulo quer significar e a fase dos acabamentos, isto é, o processo da divinização do Homem. Foi no interior espiritual de Jesus de Nazaré que o divino se enxertou no humano, formando uma união orgânica e dinâmica de grandeza humano-divina. Nesta interacção humano-divina nem o humano é anulado pelo divino, nem o divino é diminuído pelo humano.

Com Jesus Cristo, portanto, começou a marcha da divinização do Homem mediante a inserção dos seres humanos na Família de Deus. Eis a maneira Como São Paulo exprime esta dinâmica da divinização do Homem:

“De facto, todos os que são conduzidos pelo Espírito Santo são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para andardes com medo. Pelo contrário, recebestes um Espírito de adopção que faz de vós filhos adoptivos de Deus e vos leva a clamar “Abba”, isto é, Pai! É o próprio Espírito Santo que no nosso íntimo dá testemunho de que somos realmente filhos de Deus. Ora, se somos filho de Deus somos também herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (Rm 8, 14-17).

A partir de Jesus Cristo, portanto, a divinização do Homem está em marcha. Podemos dizer que será eternamente mais divino quem mais se humanizar na História. Por outras palavras, comungará mais com Deus quem mais crescer na capacidade de comungar com os irmãos.

Como sabemos, o Reino de Deus é a Festa Universal da Família de Deus. Nesta Festa todos dançam o ritmo do amor, mas cada qual com o jeito que tiver treinado agora na História. É exactamente isto que significa dizer que a pessoa é um ser em construção histórica. Por outras palavras, o ser humano faz-se, fazendo. Realiza-se, realizando. Ninguém o pode substituir nesta tarefa da sua realização.

No entanto, a pessoa humana só pode realizar-se em relações com as outras, pois não somos ilhas. Podemos dizer que começamos por ser aquilo que os outros fizeram de nós. Mas o mais importante e decisivo é o modo como nos realizamos a partir do que recebemos dos demais. Ao falar da Encarnação, o evangelho de São João diz que o Filho de Deus, ao encarnar, nos deu o poder de nos tornarmos nos filhos de Deus.

Eis as suas palavras: “Mas a quantos o receberam, aos que nele crêem deu-lhe o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram dos laços do sangue, nem dos impulsos da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus. E o Verbo de Deus encarnou e veio habitar no nosso meio. E nós vimos a sua glória, essa glória que ele possui como filho unigénito do Pai cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 12-14).

Na sua configuração espiritual, o ser humano é uma pessoa semelhante às pessoas divinas. Como cada ser humano é único, podemos dizer que a pessoa é um ser alicerçado na sua unicidade, mas talhado para a reciprocidade da comunhão amorosa. Isto quer dizer que a plenitude da pessoa não está em si, mas na comunhão amorosa.

Eis a razão pela qual a Divindade, apesar de ser três pessoas, é apenas uma plenitude divina. Por outras palavras, o Uno, em Deus, é a comunhão trinitária. O plural, são as pessoas. Tal como acontece com a Divindade, também a Humanidade forma uma unidade orgânica e dinâmica, onde cada pessoa encontra a sua plenitude.

Por ser um homem plenamente realizado, Jesus de Nazaré faz um todo com a Humanidade. Pelo facto de formar uma interacção humano-divina, Jesus é a fonte a partir da qual emana a Água Viva, isto é, o Espírito Santo que diviniza a diviniza toda a Humanidade.

Como vimos acima, foi no coração de Jesus que aconteceu o enxerto do divino no humano, a fim de este ser divinizado. De facto, a Encarnação é a cúpula da criação do Homem. No princípio, Deus iniciou a génese histórica do Homem através dessa intervenção especial em que Deus insufla o sopro do Espírito Santo no coração do Homem (Gn 2, 7).

Utilizando o cenário simbólico apresentado pelo Livro do Génesis, podíamos dizer que Deus amassou o barro e talhou-o, dando-lhe uma configuração humana. Esta imagem significa que a marcha evolutiva caminhou no sentido da complexidade cerebral específica do ser humano. Quando a marcha evolutiva entrou no limiar da hominização, Deus interveio, comunicando ao Homem a dinâmica do Espírito Santo, dando início ao processo histórica da Humanização. A Hominização é a estrutura natural do Homem. A Humanização é o processo histórico da personalização e espiritualização do mesmo Homem.

Deus não realizou qualquer outra intervenção especial no que se refere à criação dos outros animais. Utilizando a imagem bíblica do relato da criação, podíamos dizer que Deus, ao introduzir o hálito da vida espiritual no coração da pessoa humana, fez que esta se tornasse barro com coração.

Barro com coração é a pessoa humana capaz de eleger os outros como alvo de bem-querer e de realizar com eles alianças de amor. Barro com coração é o ser humano dotado de livre arbítrio, isto é, com a capacidade psíquica de optar pelo bem e pelo mal. Barro com coração é o ser humano chamado a construi-se como pessoa a partir dos talentos que recebeu dos outros. Barro com coração é o ser humano chamado a optar pelo bem, rejeitando o mal, tornando-se assim um ser com uma vida ética.

No interior de cada ser humano, o Espírito Santo dá o impulso primordial à marcha da humaniza e depois acompanha esta marcha no concreto das situações onde se jogam as questões importantes para a humanização. E é assim que o Espírito Santo se torna o arquitecto da humanização do Homem, inspirando e insinuando, mas sem jamais substituir a pessoa.

É o Espírito Santo que faz emergir no coração do Homem a Sabedoria que o ajuda a saborear o sentido da Vida, da História e do Universo com os critérios do próprio Deus. Podemos dizer que a História do Homem está marcada pelo amor e a presença de Deus, nosso Criador e Salvador. O Deus bíblico é, de facto, o Emanuel, pois está connosco desde os primórdios da História Humana.

Ao nascer da aurora, Deus foi amassando o barro que constitui a base orgânica e psíquica do nosso ser. Ao chegar o meio-dia, concedeu-nos o dom da salvação em Cristo. Após o meio-dia, somos convidados a aceitar o dom da salvação vivendo como membros da Família de Deus: Filho de Deus Pai, irmãos do filho de Deus e dos demais seres humanos.

Os cristãos estão chamados a celebrar este plano amoroso de Deus, a fim de melhor o saborearem e poderem anunciar a todos os homens. Podemos dizer com toda a verdade que Deus no amou antes de nos criar.

A paixão que Jesus Cristo sentia pela libertação e salvação dos seres humanos é a expressão do amor incondicional de Deus pelo Homem. Na verdade, Deus não esteve à esperou que fossemos bons para gostar de nós. Mesmo após a rotura do pecado, Deus continuou a amar-nos incondicionalmente. Jesus ensinou-nos esta verdade com a parábola do Filho Pródigo: todos os dias Deus, como um Pai bondoso, subia ao alto da colina, na esperança de ver o filho regressar.

Ao ressuscitar, Jesus Cristo deu-nos a Água Viva que faz jorrar em nós um manancial de Vida Eterna, incorporando-nos na Família de Deus. Ao nascer do dia, Deus Pai sonhou o Homem à sua imagem e semelhança. Quando chegou o meio-dia, Deus Filho, mediante a Encarnação, levou este sonho à plenitude, enxertando o divino no humano e assumindo o humano na plenitude da comunhão divina. E foi assim que a Humanidade passou a ser uma Nova Criação reconciliada com Deus, como diz São Paulo:

“Se alguém está em Cristo é uma Nova Criação. Passou o que era velho e eis que tudo se fez novo. Tudo isto vem de Deus que, em Cristo, nos reconciliou consigo, não levando mais em conta os pecados dos homens” (2 Cor 5, 17-19).

Podemos dizer que, em Jesus Cristo, os anseios mais profundos do coração humano encontraram a sua resposta! Na verdade, a fome de plenitude que grita no mais íntimo do nosso ser encontrou a sua resposta plena. É por esta razão que o Espírito Santo, no íntimo do nosso ser não cessa de nos convidara crescer, dando-nos a garantia de que não estamos a caminhar para o vazio da morte.

O facto de não nascermos acabados faz parte do projecto amoroso de Deus. Na verdade nós temos que tomar parte na nossa realização, a fim de nos realizarmos como pessoas livres, conscientes, responsáveis e capazes de amar. Precisamos de tomar parte na nossa própria realização, a fim de podermos tomar parte na reciprocidade da Comunhão do Reino de Deus.

Por outras palavras, Deus criou-nos para que nos criemos, a fim de emergirmos como pessoas livres, conscientes e responsáveis. A História é o útero em cujo seio está a emergir o Homem a caminhar para Deus. Hoje estamos nós a construir esta Humanidade a talhada para Deus. Muitos outros edificaram antes de nós. E se não destruirmos a nossa Terra bonita e fecunda, outros virão enriquecer o património universal da Família de Deus.

A humanização é a grande tarefa do ser humano a caminhar para a plenitude da comunhão com Deus e os irmãos. A lei da humanização é: Emergência pessoal mediante relações de amor e convergência para a comunhão universal. Realizar-se é fazer emergir o que ainda existe em nós como possibilidade de ser.

Quanto mais a pessoa emerge, maior é a sua capacidade de interagir amorosamente com Deus e os irmãos. É este o caminho que conduz à Família Universal de Deus onde os laços do sangue, da raça, da língua, da nacionalidade, do espaço e do tempo são superados.
Em Comunhão Convosco
Calmeiro Matias

Sem comentários:

Enviar um comentário