Construíndo a Família Cristã (III)



d) A Vida Conjugal iluminada pela Bíblia


A Bíblia não nos fornece um manual acabado de normas sobre o matrimónio. É importante distinguir os condicionamentos culturais de uma época determinada e o que é a revelação de Deus na Bíblia. É certo que a Bíblia nos fornece uma série de verdades reveladas por Deus. Mas estas verdades chegam até nós revestidas dos condicionamentos culturais próprios da época em que os diversos livros foram escritos.

Não há dúvida de que, a nível cultural, o padrão bíblico sobre a família já não serve para hoje. Assim, por exemplo, o modelo familiar que aí nos é apresentado assenta em moldes patriarcais e num contexto social de tipo rural. Na verdade não é este o molde das famílias e das sociedades do nosso tempo.

Não é difícil encontrar na Bíblia textos ou frases que revelam os condicionamentos culturais da época do escritor. É importante termos consciência deste facto, a fim de relativizarmos esses condicionamentos culturais e não os considerarmos um padrão e uma norma obrigatória. Eis um exemplo, a fim de exprimir melhor o meu pensamento: “A esposa deve submeter-se ao marido como se do Senhor se tratasse” (Ef 5, 22-24). Esta frase pode ser substituída por uma outra bem mais profunda e significativa: O marido e a esposa devem procurar em conjunto a vontade de Deus e obedecer-lhe fielmente, pois esta vontade coincide rigorosamente com o que é melhor para os dois.

Apesar destes condicionamentos culturais, a Bíblia oferece-nos um conjunto de critérios básicos para a realização da aliança matrimonial segundo o plano de Deus. Muitos casais, ao fazerem a experiência de uma de crise mais ou menos longa, começam a desacreditar na possibilidade de edificar uma aliança de amor com sucesso.

Nestes momentos, é importante que os esposos entendam que Deus está tão interessado no sucesso matrimonial do casal como os próprios esposos. Com efeito, a aliança matrimonial é um dos elementos básicos da Aliança de Deus com o Homem, a qual implica, entre outras coisas, a incorporação da Humanidade na própria Família Divina.

De facto, Deus Pai precisa de pais humanos para ter filhos. Na família divina existe apenas um filho, o Filho Unigénito de Deus. Pelo mistério da encarnação, Deus, através do Filho e pela acção do Espírito Santo, enxertou-se na Humanidade, a fim desta ser divinizada. Ser divinizado significa ser incorporado na Família de Deus.

Pela dinâmica da Encarnação, o Filho de Deus tornou-se nosso irmão. De Filho Unigénito, passou a ser o primogénito de muitos irmãos. É assim que o designa São Paulo: “Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, os quais foram chamados segundo o seu plano de salvação. Àqueles que ele de antemão conheceu também os predestinou, a fim de serem uma imagem idêntica à de seu Filho, de tal modo que ele é o primogénito de muitos irmãos” (Rm 8, 28-29).

Deus está plenamente empenhado no sucesso da vida matrimonial. Eis a razão pela qual os esposos devem contar com Deus para resolver as dificuldades e crises de crescimento da vida matrimonial e familiar. Para isso, podem contar com a presença permanente do Espírito Santo na sua vida matrimonial. É certo que o Espírito Santo não substitui os esposos, mas está permanente presente nas suas vidas para facilitar o crescimento do amor e comunhão entre os esposos.

Para isso, o Espírito Santo facilita a vida dos esposos, inspirando atitudes e gestos fundamentais para o sucesso do seu matrimónio. São Paulo diz que todos os que são movidos pelo Espírito Santo são filhos de Deus Pai e irmãos de Deus Filho. Por isso já podemos dirigir-nos a Deus chamando-o de “Abba”, papá (Rm 8, 14-17).

A Carta aos Filipenses diz que as pessoas que vivem unidas a Cristo são capazes de realizar coisas que, sem ele, seria impossível realizar. O Senhor Jesus Ressuscitado robustece-nos com a força do Espírito Santo, a fim de podermos realizar maravilhas: “Tudo posso em Cristo que me fortalece. Se apenas confiamos em nós, o mais provável é falharmos. Mas nós acreditamos que Jesus providencia no sentido de nos proporcionar a força necessária para agirmos de acordo com a vontade de Deus” (Flp 4, 13).

Os esposos podem partir do princípio de que não é vontade de Deus que, entre eles, existam roturas que impeçam o crescimento da vida amorosa. O fundamento desta verdade radica no facto de Deus ser amor. Ao criar o varão e a mulher, Deus talhou-os um para o outro, a fim de se humanizarem numa relação de aliança fundamentada na cooperação e no amor.

Não podemos esquecer que a aliança matrimonial envolve marido e esposa. Isto quer dizer que a tarefa de eliminar problemas e dificuldades deve ser dos dois e não apenas de um. De facto, se apenas um dos esposos se esforça por remover o obstáculo, o outro pode perfeitamente fazer que o obstáculo continue. Assim como o amor entre o casal é fundamental para que os filhos se sintam bem amados, assim também este mesmo amor é condição para o Espírito Santo conduzir os esposos à maturidade da comunhão familiar.

É este o caminho para a comunhão profunda com Deus. Como sabemos, as famílias humanas encontram a sua plenitude na família divina. A plenitude das famílias humanas acontecerá pela incorporação e assunção dos seus membros na Família Divina como filhos em relação a Deus Pai e irmãos em relação a Deus Filho.

É o Espírito Santo que, com seu jeito maternal de amar, conduz e anima o crescimento familiar, bem como a incorporação dos seus membros na Família Divina. Os esposos cristãos estão chamados a olhar e valorizar o seu matrimónio com os critérios da Palavra de Deus. Este facto confere aos esposos horizontes novos muito mais vastos, capacitando-os para poderem decidir, programar e agir de acordo com a vontade de Deus.

Como vemos, é importante e a Bíblia esteja frequentemente nas mãos dos esposos, a fim de o seu casamento ser construído em conformidade com o projecto criador e salvador de Deus. Não podemos esquecer que a vontade de Deus, a nosso respeito, não é nunca arbitrária ou caprichosa. Pelo contrário, coincide rigorosamente com o que é melhor para nós. A esta luz torna-se claro que, para o casal, procurar a vontade de Deus e procurar o que é melhor para eles são uma e a mesma coisa.

A oração e a meditação da Palavra são espaços privilegiados para o Espírito Santo conduzir o casal à descoberta da vontade de Deus. A oração do casal deve ser um diálogo familiar com Deus. Os esposos devem ter presente que Deus é uma família de três pessoas à qual eles já pertencem. Eis a razão pela qual o Espírito Santo está tão empenhado no crescimento do amor do casal e na felicidade das famílias.

Dialogar com Deus sobre a vida do casal, os problemas dos filhos ou sobre a importância da família na construção de uma sociedade melhor, possibilita ao casal uma excelente compreensão do sentido em que deve caminhar o seu amor matrimonial e a construção familiar.

A oração e o confronto da vida do casal com a palavra de Deus, fazem emergir nos esposos a Sabedoria, isto é, a capacidade de saborear o sentido da vida matrimonial com os critérios do próprio Deus. Deste modo, a família torna-se uma pequena igreja doméstica à qual se aplicam os critérios da comunhão orgânica. É como comunhão orgânica que a Bíblia entende o mistério de comunhão de Deus com a Humanidade (cf. Jo 15, 1-8; 17, 21-23).

Esta comunhão é alimentada e fortalecida pelo Espírito Santo. Eis o que a este respeito diz a carta aos Efésios: “Com humildade e mansidão, bem como com paciência, aceitai-vos uns aos outros no amor, esforçando-vos por manter a unidade do Espírito, mediante o vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito, assim como fostes chamados à mesma esperança. Há um só Senhor e uma só Fé. Há um só baptismo e um só Deus que é Pai de todos, que reina sobre todos, age em todos e permanece em todos” (Ef 4, 2-6).

À luz da Bíblia, o casal constitui uma união orgânica, isto é, interactiva e fecunda, alimentada pelo princípio vital que é a fonte da verdadeira fecundidade: o amor. Quando houver problemas conjugais difíceis, acreditai na importância fundamental da oração, esse diálogo familiar com Deus. Depois, acreditai também na importância fundamental do diálogo conjugal, o qual deve ser leal e transparente.

Se ambos forem cristãos, é evidente que conseguirão caminhar muito mais neste sentido. Neste caso, os esposos podem ter a certeza de que Deus toma partido por eles. Nos períodos mais complicados, é importante dar mais tempo à meditação da Palavra de Deus. Não nos esqueçamos que esta é um convite permanente no sentido de agirmos em conformidade com os critérios de Deus. O homem sábio, diz o evangelho de São Mateus, não se limita a ouvir a Palavra. Pelo contrário, movido pela Fé, procura realizar o que esta Palavra diz (Mt 7, 24-27).

À medida em que crescem na Fé, o marido e a esposa vão-se transformando interiormente, crescendo cada vez mais como imagem de Deus, tanto a nível pessoal como familiar. Tornar-se imagem de Deus é um processo relacional e progressivo, como diz o livro do Génesis: “Depois, Deus disse: façamos o ser humano à nossa imagem e à nossa semelhança, a fim de que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do Céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pelo solo. Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus. Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra” (Gn 1, 26-28).

Esta estruturação espiritual que nos configura com Deus é um processo de renovação interior, a qual se dá através das relações de amor dos esposos. É sugestivo o seguinte texto da carta aos Efésios: “Foi-vos dito que vos deveis renovar pela transformação do Espírito Santo que anima a vossa mente. Também vos foi dito que deveis revestir-vos do Homem Novo, o qual foi criado em conformidade com Deus, na justiça, na santidade e na verdade” (Ef 4, 23-24).

A mesma carta propõe aos maridos que amem as esposas com o jeito com que Cristo ama a Igreja. As esposas, por seu lado, devem viver a sua união matrimonial como fonte de comunhão com Deus. São Paulo entende a comunhão familiar e a comunhão com Deus como uma realidade orgânica. Na Carta aos Coríntios ele insiste várias vezes em que a Igreja é o corpo de Cristo (cf. 1 Cor 10, 17; 12, 27; 13, 12).

Eis o que diz a carta aos Efésios: “Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo ama a Igreja entregando-se por ela, a fim de a santificar, purificando-a no banho da água e pela Palavra (…). Os maridos devem amar as suas esposas como amam o seu corpo. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. De facto ninguém odeia o seu próprio corpo. Pelo contrário, alimenta-o e cuida dele como Cristo faz à Igreja. De facto, nós somos membros do seu corpo. Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-à à sua mulher e serão os dois uma só carne” (Ef 5, 25-31).

E não podemos pretender que o outro deixe de ter defeitos para o amar a sério. A nossa atitude não pode ser esperar que o outro seja bom para o amarmos. É o contrário que é preciso fazer, pois o outro só conseguirá ser melhor na medida em que nós o amemos. É este o jeito de Cristo amar, diz a carta aos Romanos:“Foi assim que Deus demonstrou o seu amor para connosco: Cristo deu a vida por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5, 8).

Se Cristo estivesse à espera que fossemos bons para nos amar, nunca chegaria a amar-nos! Mas fez o contrário: amou-nos e deu-nos o Espírito Santo, a fim de nos irmos tornando melhores. É este o jeito de Cristo amar.

A carta aos romanos ensina um princípio sábio para evitar roturas e fortalecer o amor: “Não pagueis o mal com o mal. Interessai-vos pelo que é bom diante dos homens. Tanto quanto for possível e de vós dependa vivei em paz com todos. Caríssimos, não vos vingueis (…). Não vos deixeis vencer pelo mal, mas vencei o mal com o bem” (Rm 12, 17-21).

No momento de tensão, os esposos devem recordar o conselho da carta de São Tiago quando diz: “Meus queridos irmãos, que cada um seja rápido em escutar, lento em falar e lento em irar-se” (Tg 1, 19). Nestes momentos é importante que os esposos se proponham as questões geradoras de tensão e dialoguem sobre elas. Escutar com atenção, compreender os seus pontos de vista e, depois, cada qual dizer das suas razões.

Que nenhum pretenda dominar a discussão. Nenhum se fecha antecipadamente à verdade, pretendendo abafar as razões do outro, gritando mais alto que ele. Este modo de proceder não conduz à maturidade pessoal nem à comunhão do casal. É evidente que este modo de proceder cria feridas dolorosas no psiquismo dos filhos.

Nos momentos de tensão é importante que os esposos se interroguem sobre as motivações mais profundas desta tensão. Sobretudo é importante perguntar-se: “Será que ele/ela não têm razões que me escapam? E se os esposos quiserem ir ainda mais longe podem perguntar-se: “Até que ponto eu também contribuí para esta tensão e mal-estar”?

Os esposos devem lembrar-se muitas vezes da regra de oiro das relações, tal como Jesus a propôs: “O que quiserdes que os outros vos façam fazei-o vós também. Esta é a lei e os profetas” (Mt 7, 12). O evangelho põe-nos de sobreaviso em relação aos juízos fáceis. A regra de oiro é não julgar o outro, pois não temos na nossa mão todos os dados do problema: “Não julgueis para não serdes julgados. Com efeito, com o julgamento com que julgardes sereis julgados e com a medida com que medirdes sereis medidos. Porque reparas no cisco que está no olho do teu irmão quando não te dás conta da trave que está no teu”?

Os esposos cristãos devem ler muitas vezes, tanto em particular como em diálogo matrimonial, o hino ao amor da Primeira Carta aos Coríntios. Quanto mais tentarem moldar o seu amor com esta proposta mais estarão a amar ao jeito de Cristo:

“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha uma Fé tão grande que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita.

O amor é paciente e prestável. O amor não é invejoso. Não é arrogante nem orgulhoso. Nada faz de inconveniente, nem procura o seu próprio interesse. O amor não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade.Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

O amor jamais passará. As profecias terão o seu fim. O dom das línguas cessará. A ciência deixará de ser válida, pois o nosso conhecimento é imperfeito. Também a nossa profecia é imperfeita. Mas quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá (…).

Agora vemos como num espelho, de maneira confusa. Mas quando vier o que é perfeito, veremos face a face. Agora conheço de modo imperfeito, mas depois conhecerei como sou conhecido. Agora permanecem estas três coisas: a Fé a Esperança e o Amor. Mas a maior de todas é o amor” (1 Cor 13, 1-13).

O dinheiro, o poder e o saber não são maus em si. Mas sofrem de uma profunda ambiguidade: tanto podem servir para o bem como para o mal. O amor, pelo contrário, nunca é ambíguo. Nunca serve para o mal. Eis a razão pela qual Jesus Cristo resumiu as normas, os preceitos e as leis ao amor: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Assim como eu vos amei, também vós vos deveis amar uns aos outros” (Jo 13, 34-35).
Em Comunhão Convosco
Calmeiro Matias

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