Família e Relações Traumatizantes (II)



b) Maus-tratos e Marginalidade Infantil

É alarmante o número de casos de crianças maltratadas em todo o mundo. Estes casos são melhor registados e estudados nos países desenvolvidos. O Centro Nacional Sobre o Abuso e Negligência de Crianças dos Estados Unidos registou 970.000 casos de crimes violentos cometidos contra criança só no ano de 1996. Cerca de cinco mil crianças ou adolescentes morrem cada ano em virtude de maus-tratos ou abusos levados a cabo por pais ou vigilantes sobre crianças.

Um estudo realizado na Escócia demonstrou que no ano 2.000 cerca de 100.000 crianças escocesas foram maltratadas ou vítimas de abusos nas famílias. O mesmo estudo declara que 80 crianças escocesas, em cada dia, se tornam pessoas sem abrigo. A violência em casa, as drogas, a prepotência e a falta de estima familiar são as principais causas geradoras da infelicidade das crianças. Em cada ano 123.000 crianças e adolescentes são presos por crimes violentos nos Estados Unidos. Em 1998 morreram em média 16 crianças ou jovens por dia, atingidas com armas de fogo.

Estudos efectuados sobre violadores, e outros criminosos graves revelam que, na sua maioria, estas pessoas foram vítimas de violações, abusos sexuais e espancamentos quando eram crianças. Um estudo levado a cabo com 26 homicidas numa cadeia dos Estados Unidos demonstrou que todos eles foram maltratados quando eram crianças. É até possível que muitos deles tenham sofrido lesões cerebrais significativas. Se os abusos graves causam comportamentos anti-sociais tão graves, podemos deduzir que mesmo os maus-tratos menos graves afectarão a vida das crianças e o seu comportamento mais tarde.

Diversos estudos sobre crianças vítimas de maus-tratos encontram frequentemente uma relação entre maus-tratos e um baixo QI, juntamente com comportamentos delinquentes na fase da adolescência, criminalidade na fase de adulto, bem como conflitos e abusos a nível do matrimónio. Mas temos de reconhecer que, no meio destes casos há muitas excepções, isto é, pessoas que conseguiram estruturar-se de modo mais ou menos equilibrado.

Muitos casos de crianças que foram vítimas de abusos sexuais ou maus-tratos infantis mostram, sobretudo, problemas graves a nível comportamental, perturbações psíquicas que necessitam de atendimento psiquiátrico na adolescência. Na fase adulta estas pessoas tornam-se dependentes de drogas ou álcool.

É urgente trabalhar para melhorar a saúde mental das nossas sociedades, motivando os pais no sentido de mudar o castigo corporal por outra forma de disciplina. Com efeito, parece ser cada vez maior a relação entre adultos depressivos e maus-tratos ou espancamentos sofridos quando estes adultos eram crianças.

A depressão, nestes casos, não é mais que uma consequência da raiva sentida pela criança devido aos maus-tratos. Como eram impotentes para projectar essa agressividade e raiva contra os autores dos maus-tratos, orientaram inconscientemente toda essa agressividade contra si. O inconsciente funcionou como o repositório do desejo de vingança provocado pelos maus-tratos que os adultos provocaram à criança. A antiga raiva, portanto, ficou arquivada na estrutura psíquica do inconsciente, mas o adulto, agora, orienta-a contra si ou contra terceiros, por vezes contra crianças agindo de forma brutal sem ter motivos aparentes para isso.

É justamente esta falta de motivos evidentes que leva muitos adultos a orientar a raiva inconsciente contra si mesmos. Quando uma pessoa age de forma grave contra outrem sem haver motivos para tal significa que esta pessoa sofre de um grau elevado de perversidade e desequilíbrio comportamental. Quando esta agressividade não é orientada contra outros, a pessoa maltrata-se a si própria. No primeiro caso temos doentes do foro social e jurídico. No segundo, doentes do foro psíquico. 

A Universidade de Hampshire realizou um inquérito com 3.000 mães que batiam nas crianças. O inquérito demorou quatro anos a ser realizado (1986-1990) e concluiu o seguinte: as crianças entre os três e os cinco anos que sofriam espancamentos frequentes, passados dois ou três anos exibiam níveis mais elevados de comportamento anti-social como, por exemplo, bater nas outras crianças, ou desafiar os pais, ignorando as suas normas.

É curioso notar que o comportamento que os pais queriam impor aos filhos pelo espancamento, acabava por piorar devido ao mesmo espancamento. Estas crianças espancadas, quatro anos mais tarde, deram provas de ter um QI mais baixo que o comum das crianças da sua idade.

Pelo contrário, quando os pais que em vez de bater procuram explicar as razões e a necessidade de agir em conformidade com a disciplina imposta, facilitam o desenvolvimento do QI e, ao mesmo tempo, disciplinam a criança. Hoje sabe-se que as relações verbais, isto é, o diálogo entre os pais e a criança desenvolvem nela uma grande capacidade de conhecimento e raciocínio. Tenhamos presente que as crianças têm necessidade de ser disciplinadas, mas não espancadas.


c) Relações Familiares Não Satisfatórias

A criança experimenta abandono quando os pais a deixam muito tempo só ou demoram muito a satisfazer as suas necessidades. Esta criança começa deixa de ver os pais como uma ajuda e um apoio eficazes. Em resultado disto sentem-se sós e começam a fechar-se sobre si.

Eis algumas características desenvolvidas pelas crianças que experimentam o abandono:
*Começam a dar a impressão de ser muito independentes, como se não contassem com os pais. No fundo estão a viver a solidão derivada do facto de não verem nos pais um apoio que as atende de modo satisfatório.
*Pede menos vezes ajuda do que a criança que está habituada a ser ajudada de modo rápido e eficaz.
*Experimenta certa dificuldade em brincar com as outras crianças da sua idade.
*É mais agressiva do que o comum das crianças eficazmente atendidas pelos pais.
*Tem mais tendência para bater, empurrar, arranhar e morder os seus companheiros.

*Não grita quando os pais a deixam no jardim infantil e também não exulta de alegria quando estes a vêm buscar.
*Elas percebem que os pais estão ali para a levar. O desinteresse manifestado deriva do facto de os pais não serem um sinal de esperança de que as suas necessidades vão ser eficazmente satisfeitas.
*As crianças com experiência de abandono também não constroem normalmente uma relação de ligação muito forte com as educadoras que cuidam delas.
*Na verdade, o padrão ou o molde fundamental que configura as relações de uma pessoa com as outras é aquele que é modelado em criança na relação com os pais.

Eis alguns dos comportamentos típicos que moldam a experiência de abandono na criança:
*Os pais respondem às necessidades das crianças, mas demoram muito. Como sabemos, a criança não tem capacidade para adiar a satisfação das suas necessidades. Para ela sentir necessidade de uma coisa é igual a uma necessidade que deve ser imediatamente satisfeita. Eis a razão pela qual a demora gera nela desespero e frustração, deixando-a cada vez mais descompensada. Tudo isto faz com que ela deixe de ver nos pais um símbolo de satisfação adequada e, portanto, de alegria.

*Quando a criança está excitada por um motivo qualquer, os pais deixam-na sozinha. Por vezes ouvem-se expressões destas: chora para aí até te fartares.
*Como sente que os pais não respondem de modo satisfatório, a criança aprende a não contar com eles e a arranjar os seus mecanismos de defesa.

Por vezes estes mecanismos são dolorosos para a criança, pois significam que não vale a pena esperar coisas boas dos pais. As crianças que sofrem a experiência de abandono começam a perder o interesse de brincar e não se concentram para ouvir histórias. Estas duas coisas são normalmente as mais importantes para uma criança.

Normalmente as crianças que não tiveram ternura suficiente vão ter piores resultados escolares. Em casos muito graves ganham menos defesas que as outras crianças. É como se a natureza dissesse: não me interessa viver, portanto, não vale a pena lutar.

Os pais podem ter razões pessoais para o seu modo de actuar. Podem até pensar que é assim que se deve proceder, a fim de os filhos não crescerem demasiado caprichosos e mimados. Também podem pensar que é bom adiar a satisfação das suas necessidades, a fim de os filhos aprenderem a bastar-se. Mas é importante saber que esta aprendizagem deve ser feita mais tarde e de modo gradual.

Os educadores devem estar atentos aos comportamentos das crianças que têm a seu cuidado e avisarem os pais de quaisquer sintomas negativos. De facto, ao fazerem o confronto entre os comportamentos das crianças, os educadores podem aperceber-se de coisas que escapam aos pais. Deste modo, os pais podem corrigir, dentro do possível, o modo como se têm vindo a relacionar com os filhos.

Naturalmente que não estou a falar de ambientes familiares onde acontece o espancamento desumano. Neste caso, as crianças, ao verem o fim do dia aproximarem-se começam a sentir o coração oprimido e a alegria a desaparecer totalmente. Para as crianças maltratadas, o pôr-do-sol é um símbolo de angústia e sofrimento, pois é sinal de que os pais estão prestes a voltar para casa.

Quando os pais dão demasiadas provas de insegurança no seu modo de agir e se relacionar com os filhos, geram nestes instabilidade e sentimentos de indefinição. As crianças que se encontram numa situação destas têm a sensação de que as suas necessidades umas vezes são satisfeitas outras vezes não. Em relação aos valores, estas crianças sentem-se inseguras, pois não têm modelos firmes e definidos para imitar. Não nos esqueçamos de que a imitação é um dos principais factores da estruturação psíquica da criança.

Eis alguns traços das crianças que vivem em ambientes inseguros onde não há modelos de comportamento firmes e bem definidos:
*Sentem-se normalmente inseguras e por isso tendem a ser demasiado dependentes.
*Os seus comportamentos são mais infantis do que os comportamentos das outras crianças da sua idade e tendem a ser super emotivas.
*Gritam com muita frequência e facilmente ficam frustradas.
*Procuram constantemente ser o centro das atenções.
*Se vêem que as pessoas não lhes prestam atenção começam a perturbar o ambiente.

Eis alguns comportamentos típicos dos pais que geram insegurança e dependência doentia nas crianças:
*Quando a criança chora, os pais umas vezes atendem outras não.
*Quando a criança tem fome a criança deve ser alimentada, mas é quase certo que estes pais vão tentar alimentá-la quando ela não tem fome.
*Quando está assustada, muitas vezes os pais ignoram-na, outras vezes enchem-na de mimos e atitudes protectoras.

*Quando a criança está excitada com qualquer coisa, os pais não a compreendem a sua excitação ou então respondem com gestos e modos inadequados.
*Quando a criança precisa de respostas claras e seguras, os pais divagam e põem-se a filosofar em vez de dar respostas concisas e claras.

Como vemos, a criança é um barro extremamente sensível. Os primeiros modeladores deste barro são os pais. São eles os forjadores fundamentais que vão configurar os modos desta criança se realizar ou não como pessoa equilibrada e feliz.
Em Comunhão Convosco
Calmeiro Matias

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