A Criação na Bíblia e na Tradição


a)     A Criação No Antigo Testamento
b)    A Criação no Novo Testamento
c)     A Criação na Patrística
d)     Da Escolástica à Idade Moderna


a) A Criação no Antigo Testamento

O grande testemunho da fé do Antigo Testamento na criação é o relato do Génesis, o qual é apresentado em forma de uma cosmogonia, a única em toda a Bíblia (Gn 1, 1-2,4-a). Este texto apresenta-se-nos como uma espécie de descrição retrospectiva das origens. O autor procede como se tivesse assistido aos primórdios da criação.

Durante séculos interpretou-se esse texto à letra como se fosse uma descrição pormenorizada dos acontecimentos primordiais. No entanto, a revolução copernicana primeiro, a visão evolucionista de Darwin e o progresso das ciências cosmológicas e astrofísicas, tornaram totalmente inviável uma leitura de tipo histórico do texto do Génesis. O contraste entre o relato bíblico e os dados científicos eram demasiados grandes para proceder através de simples concordismos.

Posta de lado a simples interpretação literal do texto, o relato deixou de ser entendido como um relato de ciências naturais que nos descreve o modo como aconteceu a criação. Trata-se, pelo contrário, de uma reflexão da fé com uma veste literária própria dos procedimentos de épocas remotas. O conteúdo de fé subjacente a este texto é digno de toda a credibilidade.

Não é possível utilizar o relato bíblico da criação para afirmar que a Bíblia ensina a criação do mundo em seis dias, ou que a luz apareceu antes das estrelas ou ainda defender como verdade de fás o fixismo criacionista. Quando pronunciamos o credo dizemos: “creio em Deus Pai criador do Céu e da Terra”. Com esta afirmação não estamos a dizer o modo como aconteceu a criação, mas a confessar a nossa Fé em Deus. É exactamente o que se passa com relato do Génesis sobre a criação.

A fé de Israel na criação está indissociavelmente ligada ao modo como Israel entendia o seu Deus. A noção bíblica de Deus não tem como pano de fundo como em muitas religiões a ideia de natureza cósmica, mas a ideia de história. Os credos bíblicos em Deus sublinham este aspecto (Dt 26, 5-10). O Deus de Israel caminha e faz história com o Seu povo. Yahvé cuida do seu povo, conduzindo-o por caminhos de segurança e salvação. O Senhor tem um projecto histórico para o seu povo e por meio deste para toda a Humanidade (Gn 12, 3).

A saída do Egipto é celebrada em termos de um acontecimento épico presidido por Yahvé ((Ex 15, 1-8). Esta gesta revela o rosto de Deus como alguém que salva. O Senhor reina sobre os elementos naturais como seu senhor. A natureza, durante a saída do Egipto era totalmente dócil a Deus, seu Senhor (cf Ex 15, 4.8.10.12). Deus pode surgir no furacão, no tremor de terra , no fogo ou na brisa (1Rs 19, 11-13).

Yahvé não se identifica com os poderes cósmicos, pois domina-os a todos. Se os domina é porque os fez a todos. A noção do Deus da aliança é muito anterior à noção do Deus da criação. No entanto, os dois conceito não se opõem. Pelo contrário, o Deus da Aliança criou em função da aliança que sonhara. Por isso a criação surge dentro de um projecto de amor. Deus escolheu Israel por um impulso de amor. Todos os povos lhe pertencem, mas amou de modo especial a Israel (Dt 7, 6-7).

O Deus que criou um povo a partir de um casal que não podia ter filhos, pode criar todas as coisas do nada. O nada é a expressão máxima de esterilidade. Mas o Deus capaz de tornar as estéreis fecundas. É igualmente capaz de criar do nada. Jeremias fala expressamente da criação como obra de Deus (Jer32, 17; 33, 25-26). Mas não desenvolve a temática. É o Deutero Isaías que vai desenvolver este tema. O povo, desolado no exílio interroga-se sobre o poder de Deus. Será que o Deus que libertou o povo do Egipto ainda é igualmente poderoso para libertar agora do poderoso Império Caldeu? O deutero  Isaías reponde que Yahvé é o Deus todo poderoso que criou o Céu e a Terra. Por isso, assim como libertou Israel da opressão do Egipto pode libertar, agora, o seu povo da opressão dos caldeus

A fé bíblica na criação é tardia. Responde a questões puramente religiosas e dentro de um contexto histórico. O deutero Isaías pede aos exilados para levantarem os olhos e fixarem-se. Foi o Senhor que fez tudo isso que os seus olhos podem observar. Yahvé reduz e destrui os tiranos da Terra, reduzindo-os a nada, pois ele é o criador do Céu e da Terra (Is 42, 5-6).

O Deus da graça e o Deus da criação é o mesmo. Os deuses dos pagãos são obra de mãos humanas. Têm olhos e não vêem: Têm boca e não falam. Têm pernas e não andam. Os deuses não actuam nem salvam (Is 41, 29; 43, 10). Yahvé, pelo contrário, é o autor dos olhos que fazem o homem ver e do ouvido que faz o homem ouvir. O Homem e toas as criaturas são obra de Deus (Is 46, 1-10).

Deus chamou Israel para ser o seu povo. A Palavra de Deus foi eficaz, pois congregou o povo de Israel, a fim deste ser o Povo de Deus (Is 45, 3-4; 48, 12; 54, 6). Do mesmo modo chamou aquilo que não era para que fosse. Chamou os céus e estes apareceram em seguida (Is 48, 13).

A Palavra de Deus é verdadeira e eficaz, não mentirosa e infiel como a dos homens (Is 55, 10-11). A criação, portanto, é o início do diálogo que constitui a história da criação e da salvação. No princípio era Yahvé, Deus pessoal que chama as coisas e elas surgem. Ao nomear as coisas estas surgem dentro de um plano com sentido útil e harmonioso. A criação não é fruto do acaso nem de um destino cego e sem sentido.

O povo bíblico, durante muitos séculos, não formulou um artigo de fé no sentido de afirmar a sua crença em um Deus criador. Só pouco a pouco despertou para a necessidade de afirmar que Yahvé é a origem de todas as coisas. A sua compreensão de Deus centrava-se no Deus da História e não no Deus da Natureza.

A cosmogonia de Gn 1,1-2, 4a) é da escola sacerdotal. É do mesmo período do deutero Isaías e as razões de fundo de uns e outros são semelhantes. A razão do surgimento destes textos deve-se ao contacto com a cosmogonia e os relatos de criação dos povos com os quais o povo bíblico esteve em contacto durante o exílio. De modo particular o pensamento religioso do masdaísmo persa. No fundo os relatos veterotestamentários  tentam enquadrar a criação dentro da História da Salvação.

Por outro lado afirmar o monoteísmo, uma vez que a cosmogonia persa assentava sobre dois princípios divinos: Ormus (princípio divino bom) e Harriman (princípio divino mau). Assim, por exemplo, para o masdaísmo, o varão procede de um princípio divino bom, a mulher procede de um princípio divino mau. Para o relato bíblico o varão e a mulher, apesar do masculinismo judeu, procedem ambos de yahvé, único princípio divino (Gn 1, 27). O relato, portanto, é a primeira página da História da Salvação e uma afirmação muito forte do monoteísmo.

Israel faz uma leitura da criação em função da sua própria origem como povo de Deus. As obras criadas são oito: luz, firmamento, Terra e Mar, plantas, astros, peixes e pássaros, animais terrestres e homens. Normalmente a cada obra corresponde um dia. Mas, na intenção do autor, as obras têm de ocupar apenas seis dias. Há dois dias, o terceiro e o sexto em que se criam duas classes de seres (Terra-mar e plantas; animais e homens).

O autor sacerdotal estava interessado em deixar livre o Sábado, afim de apresentar dentro do esquema litúrgico do descanso sabático. Deste modo, a criação surge dentro do modelo da Aliança. O versículo primeiro (no princípio, Deus criou os Céus e a Terra) o autor introduz a ideia de uma novidade absoluta. Esta noção está totalmente ausente das cosmogonias pagãs.

O versículo segundo tem nítidas influências dos relatos pagãos (a Terra era algo caótico e vazio e as trevas cobriam a superfície do abismo), pois sugerem a ideia do caos aquático primordial, o qual, através de divisões sucessivas vão surgindo a Luz, a Terra e Mar. É assim que começa o poema babilónico (Enuma Elis): “ Quando, em cima, os céus não existiam nem abaixo a terra firme tinha nome, só reinavam Apsu (água doce), o progenitor, e Tiamat (água salgada), a que realizou a gestação. As suas águas se confundiam em um”.

Marduk, rei dos deuses, lutará com este caos aquático, personificado no monstro marinho Tiamat. Depois de o vencer dividiu-o em pedaços, os quais deram origem às várias partes do Universo. Esquemas cosmogónicos muito idênticos (caos aquático primordial, deuses, combate entre um deus e a personificação do caos, origem do Universo a partir do esquartejamento do caos vencido), encontram-se nos poemas cosmogónicos do Egipto, da Suméria, da Fenícia e Caldeia. O povo bíblico pertencia a esta região cultural.

Por isso o esquema do relato bíblico pressupõe uma acção de Deus que faz do caos (desordem), um Cosmos ( Harmonia), seguindo o esquema das cosmogonias da época que concebem  o Universo como a sobreposição de três estratos: travas, águas, terra. A acção de Deus realiza-se, portanto, de cima para baixo Segunda a ordem lógica da descida de Deus até à Terra onde vai criar o Homem.

O autor assumiu, pois o esquema mítico vigente. Não lhe interessam as verdades de tipo biológico ou cosmológico. O que lhe interessa é ajudar os crentes a compreender a relação existente entra Criador e criatura. Esta existe em total subordinação em relação ao Criador. Deus não é o herói das  cosmogonias pagãs nem um ser isolado e longínquo. Não é alguém estranho à nossa história. O Deus da criação é o Deus da Aliança. É o Deus de Abraão, Isaac e Jacob. É o Senhor de tudo o que existe. Todas as coisas subsistem por Ele.

O Termo criou (bara) tem sempre como sujeito exclusivo o próprio Deus. Esta acção não é nunca exercida sobre uma matéria pre-existente. Dizer que Deus Criou o Céu e a Terra significa dizer que criou tudo. Naturalmente que o autor concebe o acontecimento da criação como algo temporal. A criação faz parte da História da Salvação. A criação tem o selo da Aliança. O mundo tem um começo. Com este começo se inicia o tempo e a história do amor criador e salvador de Deus.

No relato vê-se que Deus não é como os deuses pagãos. A criação não é resultado de uma luta com os monstros marinhos ou com o caos primordial. Deus cria sem luta. Cria de modo totalmente livre, soberano e transcendente. Tudo procede do querer amoroso de Deus, o qual não precisa de nada para conferir o ser às coisas.

Deus cria pela Palavra. A Criação surge talhada para a relação e o diálogo com Deus. As coisas são chamadas. Isto quer dizer que o Universo tem uma meta inteligente. A criação é já revelação, sinal da existência de Deus, princípio da História da Aliança que é, por excelência, uma história de diálogo entre Deus e o povo eleito.

Deus achou que tudo o que tinha feito era bom (Gn 1, 31).O sentido destas palavras é afirmar que as coisas criadas correspondem à intenção do Criador. Deus não é o autor do mal. O projecto de Deus é perfeito e bom. A luz surge, não da Palavra mas do esquartejamento do caos do qual resulta a separação entre a luz e as trevas. A realidade cósmica resulta do caos primordial. No entanto o caos é totalmente vencido. O caos foi inteiramente transfigurado, tornando-se cosmos. Apenas existe as realidades derivadas: dia, noite, céus, terra, mar, os quais são obra de Deus. Ao nomeá-los, Deus transfigurou-os, conferindo-lhes outra essência. As realidades são boas, pois têm a identidade que Deus lhes quis conferir.

Ao verificar a identidade e a bondade das coisas, Deus abençoou-as (Gn 1, 22). Esta bênção lava consigo a capacidade de ser fecunda. Quando a Bíblia quer acentuar o chamamento dos patriarcas ou outros  personagens  importantes normalmente fala de uma mulher estéril  que, através de um milagre, se torna fecunda. A faculdade de transmitir a vida é um Dom de Deus (Gn 1, 28).

O ponto alto da acção criadora de Deus acontece com a criação do Homem. Deus criou-os varão e mulher e à imagem de Deus (Gn 1, 27). Deus suscita uma cabeça para a criação. O Homem é um concriador de Deus. Mas o Homem não pode cair na arbitrariedade. Não pode comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Por outras palavras, a decisão sobre a finalidade da criação pertence a Deus, não ao Homem. Por outras palavras, a decisão sobre o que é bom e mau não é uma arbitrariedade do Homem.

Deus entrega a criação ao Homem, a fim deste a conduzir à sua plenitude. A criação termina no sexto dia. A criação caminha para o Sábado, o sacramento da Aliança de Deus. O Sábado não quer dizer que Deus criou e, em seguida se afastou. É o gesto de um deus que olha com bondade a sua criação.

O relato, está fundamento num monoteísmo sem qualquer concessão. A revelação acontece como processo histórico. Dá-se como uma cadeia de aquisições teológicas, as quais dependem umas das outras. Existe apenas um Deus, Senhor todo poderoso e que é o princípio exclusivo de tudo o que existe. Não surge como emanação necessária e inevitável nem é resultado de uma luta feroz com o caos primordial. O caos funciona apenas como o leque dos possíveis para que o Cosmos aconteça.

Deus é amor. O amor não pode deixar de fazer o Bem e o Bom. Deus pode tudo, mas apenas o que pode o amor. O pensamento bíblico antigo é totalmente estranho a conceitos abstractos. Por isso não podemos ver no pensamento do autor a ideia ontológica da “Creatio ex nihilo”. Não o nega, mas não o tem presente. O próprio conceito de creatio ex nihilo” só tem sentido se quiser significar que a criação é totalmente dependente de Deus.

A fé bíblica opõe-se totalmente ao mito do eterno retorno do mesmo. O começo da criação coincide com o começo da História da Salvação, a qual teve princípio e está em marcha para uma plenitude. O Universo é assumido nessa História da Salvação, a qual tem como protagonistas Deus e o Homem.

A narração Yahvista (J) precedeu a sacerdotal de três séculos. Mas não é, como se pensa habitualmente, um relato de criação. Trata-se de uma reflexão sobre a origem do mal. Há apenas uma rápida alusão à criação, a fim de introduzir o tema: ”No dia em que o Senhor Deus fez a Terra e os Céus”(Gn 2,4). O capítulo 2 está redigido em função do capítulo 3 onde se nos relata a queda original.

No entanto, o relato Yahvista tem elementos que interessa a um estudo teológico sobre a criação. O modo da criação é totalmente diferente do relato de Gn 1: a situação inicial não é um caos aquático, mas uma terra seca. A ordem em que vão aparecendo os seres nada tem a ver com o relato sacerdotal. Aqui, o Homem aparece como a primeira obra. Tudo isto nos confirma a tese de que os autores pretendiam afirmar um facto histórico. Estes não tinham qualquer preocupação por nos apresentar uma reportagem sobre o acontecido. Se assim não fosse o autor da redacção final não teria tido a falta de senso de colocar dois relatos seguidos que os quais se contradiziam profundamente se a sua pretensão fosse histórica.

A literatura sapiencial imprime ao tema da criação um novo motivo: Além de afirmar que deus é o autor de todas as coisas, trata o tema da criação de modo a conduzir o leitor à contemplação das perfeições e dos atributos de Deus e agir numa linha de fidelidade ao projecto de Deus. Por outras palavras, existe uma intenção ética nos relatos de criação da corrente sapiencial.

Pelo facto de sermos criaturas de Deus somos todos irmãos, quer se trate de ricos ou pobres, poderosos ou humildes, pois todos somos obra do mesmo Deus (Pr 22, 2; 29, 13). Por sairmos todos das mãos do único Deus temo a mesma dignidade fundamental. Como criaturas dependemos totalmente de alguém que, por nos ter criado por amor merece toda a nossa gratidão. A ordem que reina no cosmos conduz-nos ao conhecimento do criador. Existe uma ordem lógica no Cosmos. Analisando a bondade e harmonia dos bens visíveis podemos chegar a deduzir a existência de alguém que é o autor dessa obras.


b) A Criação no Novo Testamento

O Novo Testamento é a proclamação do projecto salvador de Deus realizado em Jesus Cristo, morto e ressuscitado. Cristo é o ponto culminante do plano amoroso de Deus iniciado com a Criação. A História foi inteiramente recapitulada em Cristo constituído como “Kyrios”, Cabeça da Criação restaurada em Jesus Cristo.

No princípio, a Palavra é o protagonista da acção criadora de Deus. Era esse dinamismo cheio de significado que realizava aquilo que significava. Agora esta mesma Palavra realiza o que significa: Deus ama-nos de modo familiar: Deus Pai ama-nos como filhos e Deus filhos como irmãos. Para realizar isto, a Palavra encarnou e veio habitar no nosso meio (Jo 1, 12-14). Deste modo a criação entra na fase da plenitude.

Com o Senhor Ressuscitado iniciam-se os últimos tempos. Com o mistério da encarnação fica consumado o projecto da criação, da revelação e da Salvação ou divinização do Homem. O Novo Testamento confere à visão veterotestamentária da criação um horizonte de plenitude: O Homem, cabeça da Criação torna-se, em Cristo, membro da Família Divina. Com a divinização do Homem a Criação atinge a sua plenitude.

Tal como acontece com o Antigo Testamento, não encontramos no Novo Testamento a preocupação de oferecer aos leitores uma cosmologia no sentido de um tratado científico. O cosmológico é aprofundado numa perspectiva soteriológica e, consequentemente, cristológica. A Criação está entretecida no  projecto salvador de Deus. Deus é o Senhor do Céu e da Terra (Mt11, 25).

Uma vez que o mundo é criação de Deus, tudo é bom. A bondade ontológica das coisas afirmada pelo Génesis é reafirmada pelo Novo Testamento agora à luz do acontecimento salvador de Cristo. O legalismo levítico e o farisaísmo com as suas distorções rabínicas tentaram dividir as coisas entre puras e impuras, boas e más, benditas e malditas. Jesus opõe-se a estes tabus e reafirma a bondade essencial de todas as coisas. Os alimentos são todos puros. O que mancha o homem é a maldade que lhe sai do coração e não os alimentos que possa ingerir (Mc 7, 14-20).

O Sábado, sinal da aliança, aparece em Gn 1 como a consumação e santificação da criação. Jesus entende a santificação do Sábado como compromisso com a libertação, restauração e salvação do Homem. A Salvação é uma verdadeira recriação. Deus cuida com ternura das criaturas. Nem um só pássaro cai por terra sem que Deus o permita (Mt 10, 29). Deus olha por todas as criaturas, até pela erva, embelezando-a como acontece com os lírios do campo. O mesmo se diga em relação aos animais (Mt 6, 25-34).

Tudo provém de Deus (1 Cor 11, 12). Do Senhor é a terra e tudo quanto ela contém (1 Cor 10, 26). Deus cria, chamando a coisas que não são, a fim destas serem (Rm 4, 17; cf. Gn 1, 3). O deus criador é o que mantém o ser a todas as coisas. Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas (Rm 11, 36). É Ele que dá a vida a todas as coisas (1 Tm 6, 13).

Deus é invisível. No entanto, o invisível de Deus mostra-se-nos de modo analógico através das criaturas (Rm 1, 19; cf. Sb 13). A plenitude da Criação é a Salvação. Cristo é a cabeça da Criação no estado de plenitude. O mundo foi criado por Cristo e para Cristo (1 Cor 8, 6; Col 1, 15-20; Flp 2, 6-11). Adão, criado como cabeça da Humanidade, desorientou-a. Cristo é a cabeça da criação restaurada.

Paulo vê o papel de Cristo em relação à criação idêntico ao papel atribuído pelo livro da Sabedoria à Sabedoria. Paulo chama a Cristo a sabedoria de Deus (1 Cor 1, 24; 1, 30). Cristo é o único medianeiro da Salvação (1 Tim 2, 5). Do mesmo modo Ele é o medianeiro da criação. Cristo é o princípio, o centro e o fim da Criação (Col 1, 15-20). Segundo Gn 1, Adão foi criado imagem de Deus. Por isso é medianeiro de Deus em relação à Criação. Também a Sabedoria, segundo o livro da Sabedoria, é imagem de Deus (Sb 7,26). Adão e a Sabedoria eram medianeiros de Deus. Agora Jesus Cristo é também imagem ( Col 1, 15; Flp 2, 6). Por isso Pau o chama igualmente sabedoria de Deus (Col 1, 24; 30).

A Sabedoria tinha uma função arquétipa (forma virtual da realidade que viria a ser criada). Servia de inspiração e modelo a Deus no princípio da criação (Prov 8, 22). Agora Cristo é igualmente visto como forma primordial e modelo da acção criadora de Deus. Ele é o primogénito (protótokos: gerado antes). Cristo é o primeiro, não em relação a uma série homogénea, mas por um título de supremacia e excelência. Assim, pois, por primogénito de toda a criação devemos entender que Cristo já estava presente como modelo, causa exemplar e inspiradora do projecto criador de Deus. Do mesmo modo é a sua plenitude, pois é a cabeça da Nova Criação. Os que estão em Cristo são uma Nova Criação. Passaram as coisas velhas. E tudo isto se deve ao facto de Deus Ter reconciliado consigo a criação por intermédio de Cristo, não levando mais em conta os pecados dos homens (1 Cor 5, 17-19).

Cristo é o ícone (imagem) de Deus. Por isso é a causa exemplar e molde do projecto de Deus para a Humanidade (Col 1, 1-16; cf Sb 9, 1-2, 4; Prov 8, 22).Tudo isto quer dizer que Deus, ao conceber o seu projecto criador já tinha presente a plenitude da salvação em Cristo. É este o sentido da afirmação de Colossenses: “ tudo foi criado nele e para ele “ (Col 1, 16b). Ao criar, Deus inspira-se na plenitude do projecto. Eis a razão pela qual Cristo é modelo inspirador no início da Criação (1 Cor 8, 6; Rm 11, 36). A criação é cristocêntrica. Adquire o seu sentido pleno em Jesus Cristo.

A união da criação a Cristo é orgânica. Adão foi constituído cabeça da criação. Procedeu mal e desorientou esta mesma criação. Cristo é o novo Adão, o qual restaura esta mesma criação (Rm 5, 15-17). A Igreja é, na História, o corpo de Cristo (1 Cor 10, 17; 12, 27; 12, 13; Ef 1, 22-23). Isto significa que a Igreja é, para a Humanidade, mediação visível de encontro com Cristo. Enquanto estamos na história precisamos de mediações visíveis para comunicar com o invisível. É este o papel dos sacramentos para Igreja. Por outras palavras, os sacramentos edificam a Igreja e esta torna-se sacramento para de Cristo para o mundo.

Ainda antes de iniciar o projecto criador, Deus já tinha um plano para a mesma. Deus elegeu-nos antes da criação do mundo (Ef 1, 3). Fomos eleitos de antecipadamente, segundo um prévio desígnio divino (Ef 1, 11). Deus elegeu-nos de antemão, a fim de recapitular todas as coisas em Cristo (Ef 1, 10). Deste modo se evidencia o cristocentrismo do projecto criador de Deus.

A criação foi concebida em função da Humanidade, a qual foi criada para ser divinizada em Cristo. Com Cristo a criação entrou na sua última fase. Chegou a plenitude dos tempos. O “eschaton” fez a sua irrupção na história. A Humanidade está em processo de divinização. Está em marcha a Nova Criação (2 Cor 5, 17; Ga 6, 15). A criação é boa. Nada há impuro. Por isso podemos comer de tudo, sem pôr-se questões de consciência (Rm 14,14; 1 Cor 1 0, 25). “Tudo o que Deus criou é bom. Não devemos rejeitar qualquer alimento por razões de pureza ou impureza legal (1 Tm 4m 2-5).

Uma vez que Cristo é o Senhor do Universo, os cristãos, como membros do corpo de Cristo, medianeiros de encontro com Cristo para o mundo, devem viver a sua vocação para a liberdade. Cristo libertou-nos, a fim de sermos livres. Com efeito, fomos chamados à liberdade (Ga 5, 1; 5, 13). Tudo é vosso. Vós sois de Cristo e Cristo é de Deus (1 Cor 3, 21-23).

O prólogo de João é um dos cumes da Cristologia do Novo Testamento. Mas também é um testemunho fundamental da fé n criação. O prólogo do quarto evangelho pretende ser um novo Génesis, agora elaborado à luz de Cristo. Por isso o prólogo começa com a mesma expressão de Génesis 1: “ No princípio” (Jo 1,1; cf Gn 1, 1). A criação é obra da Palavra  (Jo 1,3). A referência à luz e às trevas (Jo 1, 4-5), são outras provas da intenção do autor de fazer do prólogo um novo Génesis, mas agora iluminado com o acontecimento de Cristo.

No entanto, se em Génesis a criação é iniciada em simultâneo com a marcha do tempo, no prólogo de João ela é concebida no interior da eternidade. Os possíveis da criação surgem antes do tempo. Mas só no tempo se inicia a sua realização. A Encarnação, apesar de concebida na eternidade só acontece no tempo (Jo 1.12-14).

A estrutura literária do prólogo de João é a dos grandes hinos sapienciais (cf Pr 8, 22;Si 24, 3-12; Sb 9, 9-12). Existe um ser pre-existente à criação, que mediação e causa exemplar da mesma. Foi enviado aos homens para revelar e salvar. Voltou a Deus depois de Ter cumprido a sua missão. Jesus é a Vida. Dá-nos essa vida em forma de Água viva a jorrar, no nosso íntimo, vida eterna (Jo 4, 14; 7, 37-39). Na perspectiva de João, Cristo é o Alfa e o Omega. O princípio e o fim da Criação ( cf Apc 1, 17; 22, 13).

A fé bíblica na criação não impõe uma determinada imagem física do mundo. A chave de leitura da teologia bíblica sobre a criação é a Aliança e a História da salvação e não qualquer modelo de tipo científico. O Novo Testamento faz uma leitura sobretudo cristocêntrica do projecto criador de Deus. Podemos dizer que o documento fundamental da teologia bíblica sobre a criação não é Génesis 1, mas sim João 1. É o prólogo de João que explica o relato sacerdotal e não o contrário.

Outro aspecto importante a termos presente na teologia bíblica sobre a criação é a visão optimista da tanto do sentido geral do Universo, como da criação do Homem. Desde a afirmação de que Deus viu que tudo era bom presente Gn 1,31, até ao mistério da Encarnação, graças ao qual os Homens foram divinizados e introduzidos na família de Deus (Jo 1, 12-14), passando pela proclamação do mistério benevolente de Deus anterior ao início da criação, a fé bíblica sobre a criação é perfeitamente positiva.

Mesmo apesar do pecado, Deus não abandonou o seu projecto. Quando o Homem fica nu na sua condição de infiel ao projecto do amor de Deus, o Senhor começa a revesti-lo, isto é , a restaurar os rasgões interiores que o afastavam de si, de Deus e dos irmãos. Deus resolve reconciliar consigo a Humanidade em Cristo, não levando mais em conta os pecados dos homens (1 cor 5, 17-19).

Ainda que o homem exterior envelheça, se degrade e perca energias, o interior vai-se renovando gradualmente pela acção do Espírito Santo (2 Cor 4, 16-17). Graças ao Dom messiânico do Espírito o Espírito Santo é essa Água Viva que faz jorrar no nosso íntimo a vida eterna (Jo 4, 14; 7, 37-39). Todos os que são movidos pelo espírito são filhos de Deus e irmãos de Cristo (Rm 8, 14-16). A Árvore da Vida já está ao alcance de todos nós. Quem comer o seu fruto viverá eternamente (Jo 6, 50-52). Cristo aparece no Novo Testamento como a causa exemplar que inspira Deus, pois o Pai, no princípio, já tinha presente o fim e a plenitude da criação.

A fé bíblica na criação é optimista, pois é vista à luz da consumação final de todas as coisas em Cristo. A ressurreição de Cristo é a afirmação plena de que Deus está a favor da vida. Além disso é a garantia de que a sorte do Homem não é o vazio da morte mas a plenitude da vida a qual acontece comunhão humano-divina. Em Jesus Cristo criador e criação interligam-se amorosa e definitivamente. Não tem sentido a dicotomia entre Deus e criação como se fossem coisas opostas. Graças a Cristo não tem sentido querer Deus sem o mundo ou querer o mundo sem Deus.

A criação de Deus não está acabada. Somos convidados a colaborar com Deus na obra da criação e da salvação. Cristo tornou efectivo o sonho da reconciliação de todas as coisas, as da Terra e as do Céu. O Homem, como cúpula da Criação, é o medianeiro do diálogo entre criação e criador.


C)A Criação na Patrística

A reflexão teológica sobre a criação assenta sobre dois pilares: ontologia e ética. A questão ontológica podia pôr-se do seguinte modo: Se Deus é infinito, como pode existir algo diferente dele? É este o ponto de partida do panteísmo, tentação filosófica que se repetiu ao longo dos séculos. Perante a dificuldade de conceber algo que não seja Deus, sendo Deus infinito, o panteísmo cai num monismo nivelador: a)só existe o espírito (monismo idealista); b) só existe a matéria (monismo materialista). Para a visão panteísta matéria e espírito opõe-se ontologicamente.

O problema ético é posto sobretudo pela dificuldade em integrar num projecto bom a existência do mal. O mal não pode proceder do bem (Deus). Portanto, junto ao lado de um princípio bom tem de existir um princípio mau: dualismo.

As teses dualistas caracterizam-se em geral pela depreciação da matéria e exaltação do Espírito. Por esta via o dualismo termina por se aliar ao monismo espirtualista. Contra estas posições reducionistas, o Cristianismo afirma simultaneamente a existência do Criador e da Criatura, do espírito e  da matéria. Contra o dualismo de princípios afirmará que existe apenas um único princípio divino, o qual é bom e fonte de bem. Na origem de todas as coisas criadas está uma comunhão amorosa de três pessoas. Deus é Amor. A “Creatio ex nihilo” exclue a ideia de uma matéria eterna, divina e pre-existente. A criação no tempo põe fim ao mito do eterno retorno e à concepção de uma temporalidade cíclica. O carácter livre e amoroso da iniciativa criadora, afirma a transcendência absoluta de Deus e afirma um optimismo sem reservas sobre o sentido da criação e a bondade da matéria.

1- Os Símbolos da Fé

A primeira tentativa de sistematização doutrinal das verdades reveladas encontra-se nos símbolos da Fé. Nestas confissões sintéticas da Fé nota-se perfeitamente a preocupação de guardar o património doutrinal das Escrituras. Nestes símbolos o facto da criação não é relevante. O que interessa antes de mais é proclamar a presença dinâmica de Deus no Universo como força que mantém todas as coisas. Deus é Dono e Senhor de todas as coisas (Ds 1-17).

É notório o silêncio destas proclamações sintéticas da Fé, o silêncio sobre a função de Cristo como cabeça da Nova Criação e o seu domínio como “pantokrator”, isto é, Senhor da Criação. Este tema, como vimos, é muito querido do Novo Testamento. Agora, os símbolos de fé tendem a proclamar apenas Deus Pai como criador. Até ao século IV junta-se à proclamação de Deus Pai como criador a expressão da totalidade Cósmica “Criador do Céu e da Terra” (Ds 19s). A razão deste acréscimo está, nos perigos dualistas do gnosticismo e maniqueísmo. Por isso sentiu-se a necessidade da afirmação universal do acto criador: todas as coisas vêm de Deus. São boas, mas não são Deus.

As fórmulas mais primitivas dos símbolos da Fé não faziam referência explícita ao dogma da criação. A polémica anti-dualista é sobretudo evidente na fórmula do símbolo de Niceia: ”visíveis e invisíveis” (DS 125). O mesmo Deus cria o visível (matéria) e o invisível (espírito). Este símbolo recupera a dimensão cristológica da criação: “e em Cristo… por quem tudo foi feito”. Introduz-se uma distinção fundamental, a fim de combater os arianos e que é a distinção entre criação e geração. O Filho é gerado, não criado, como afirmava o arianismo. O mundo, pelo contrário, é criado, não gerado. Existe uma diferença radical entre o cósmico e o divino.

A criação é referida a Deus por uma relação de liberdade, não de necessidade. O Filho pertence à ordem do eterno e necessário. O mundo, pelo contrário, pertence à ordem do temporal e contingente. Deus é uma plenitude perfeita desde toda a eternidade. A criação exprime a perfeição e a comunhão divina, mas não é essencial a essa perfeição e comunhão.

2- Os Apologistas

Os cristãos não podiam permanecer indiferentes ao mundo no qual estavam inseridos. Sobretudo ao entrar em contacto com as culturas grega e romana. Nos meios mais cultos professavam-se as ideias cosmológicas da filosofia grega, sobretudo as correntes platónica e estoica. Nestas filosofias era totalmente estranho o conceito de “creatio ex nihilo”. O Cosmos é resultado da acção de uma entidade ordenadora (o demiurgo platónico ou o logos spermatikos dos estoicos). Os padres apologistas procuram dialogar as correntes de pensamento vigentes, sobretudo com a cultura helenista.

Os apologistas de tendência conciliadora (Justino e Atenágoras) insistiam nos pontos de contacto entre filosofia e criatianismo. Os de tendência mais polémica (Teófilo de Antioquia e Taciano) acentuarão sobretudo a incompatibilidade do dogma da criação com a crença na preexistência da matéria. As duas tendências, no entanto, têm a mesma preocupação de fundo: a inculturação da Fé no mundo das filosofias gregas, a fim de possibilitar a difusão da mesma.

De tal modo São Justino está influenciado pela ideia platónica da transcendência divina que o papel do Logos, na criação é em tudo semelhante ao do demiurgo dos gregos: o mediador da criação. O Logos foi gerado para este fim. Ao modo de Platão, Justino acredita que existia uma matéria originária informe: “ Platão foi buscar aos nossos mestres, isto é, ao ensinamento dos profetas, a sua ideia de um Deus a criar o Mundo, transformando uma matéria informe” (Apol.1, 59).

Próximo de São Justino situa-se Atenágoras: não somos ateus, pois admitimos um só Deus incriado cujo Filho único, o Logos, procede de Deus, o qual procedeu de Deus quando todas as coisas materiais eram informes. Um discípulo de Justino, Taciano, tornamais preciso e claro o pensamento do mestre: Deus, o único sem princípio, gera o Verbo, o qual produz a matéria necessária para criar. A matéria, portanto não é preexistente. Não é uma espécie de um anti-Deus incriado e eterno. A matéria tem um começo. Foi produzida. A constituição do mundo e a criação, no seu conjunto, estão feitas de matéria, a qual foi produzida por Deus (Adv. Graecos, 12).

A refutação mais radical para combater as teorias e os mitos helenistas é obra de Teófilo, o qual põe em evidência as contradições de Platão: Platão e os seus seguidores dizem que Deus é ingénito e criador de todas as coisas. Mas logo em seguida afirmam que a matéria coexiste com Deus. Teófilo afirma expressamente a “creatio ex nihilo” como doutrin específica da Fé cristã: “Omnia Deus fecit, cum antea non essent”. Deste modo se afirma a grandeza de Deus, o qual não é um mero ordenador de algo preexistente. Qualquer artesão é capaz de transformar a matéria dando-lhe formas novas e diferentes.

O poder de Deus, portanto, manifesta-se no facto de poder fazer todas as coisas do nada. A doutrina da criação a partir do nada não é fruto de simples especulações filosóficas, diz Teófilo. Pelo contrário, é fruto da revelação do próprio Deus. Foram os profetas que nos ensinaram estas verdades.

Com o conceito de “creatio ex nihilo” cava-se uma rotura entre pensamento cristão e cosmovisão helenista. Sobretudo surge a refutação de dois aspectos fundamentais para os gregos: a questão das origens e o estatuto ontológico do mundo. Todas as filosofias gregas tinham um ponto de partida comum sobre a compreensão do mundo: este é algo que não começou a existir em um preciso momento histórico. Nem está situado frente a uma alteridade divina que lhe confere (ao mundo) uma grandeza finita e contingente.

Se Deus é eterno e infinito, o monismo ontológico não é admissível. Por outro lado, o facto de o Cosmos ser diferente de Deus não significa que seja oposto. Apesar de serem duas realidades distintas não significa que são dois princípios antagónicos. Por outras Palavras, Deus e o mundo não são um princípio bom e um princípio mau. Deus e o mundo não são duas entidades homogéneas e, portanto, rivais. O Cosmos e Deus não devem ser vistas como realidades opostas e contrárias, as realidades Cosmos e Deus  devem ser vistas como realidades hierarquizadamente distintas e não conflituosamente distintas. O carácter criador de Deus salvaguarda a sua transcendência e impõe entre o divino e o cósmico a distinção e não a confusão ou indiferenciação.

A Igreja teve de enfrentar logo nos seus começos uma série de heresias. Um dos mais significativos foi um movimento dualista de colorido cristão. Este movimento representava um perigo muito maior que o paganismo. Trata-se, como é evidente, do gnosticismo, doutrina que tenta explicar o problema do bem e do mal recorrendo a dois princípios ontologicamente opostos : Deus, fonte do Bem e a matéria, fonte do mal. Fala do devir de Deus como uma génese em cujo processo houve porções originais que se separaram dando origem à matéria e, portanto, ao mal. Para os gnósticos, não existe propriamente criação mas uma geração ou desagregações da génese divina primordial.

Os gnósticos inventam uma genealogia do mundo no qual Cristo é posto ao mesmo nível do dos outros homens. Tanto Cristo como os outros homens só podem chegar á salvação através do conhecimento (gnosis) da sua própria substância espiritual e pela libertação das suas amarras materiais. O mundo origina-se por imanação (através de sucessivos intermediários) do princípio do mal. Os seres espirituais são desterrados no mundo material, a fim de purgarem a sua culpa. O processo imanentista através do qual surge a matéria é necessário e eterno. A criação, portanto, não é um acto livre e amoroso de Deus.

Santo Ireneu deu-se conta dos perigos deste movimento, dizendo que Platão é muito menos perigoso que os gnósticos. Com efeito Platão mostra-se muito mais religioso que os gnósticos ao assinalar a bondade de Deus como fundamento do mundo e não a ignorância ou um éon extraviado (Adv. Haereses 3, 25, 5). A sua obra Adversus Haereses  é uma refutação global das doutrinas gnósticas. Santo Ireneu opõe ao pessimismo ontológicodos gnósticos um optimismo histórico baseado na unidade do projecto de Deus o qual implica a continuidade entre criação e salvação.

Santo Ireneu opõe à atemporalidade típica do mito gnóstico a perspectiva bíblica de um projecto salvador de Deus segundo o qual a criação é o pressuposto da Salvação realizada em Cristo. A criação não é um subproduto da decadência original dos espíritos. A matéria não é eterna. Pelo contrário, teve um começo temporal e permanece nop ser não por qualquer necessidade mas por vontade de Deus.

A dor e o sofrimento não provêm de um deus iníquo e malvado, mas devido ao facto de a criação ainda estar inacabada. Além disso, há muito sofrimento, sobretudo o mais intolerável que é produto do pecado do Homem. Mas o processo histórico tem um sentido e um dinâmica salvífica. Estamos a caminhar para a reconciliação universal. Esta acontecerá quando Cristo recapitular em si a totalidade do Universo criado. Jesus é a plenitude dos tempos, o Kairós da História e a cabeça da Nova Criação (Adv. Haer. 3, 17, 6).

Também Tertuliano enfrentou corajosamente os gnósticos, sobretudo nas suas obras “Adversus  Hermogenem” e “Adversus Marcionem”. Só Deus é o Criador do Cosmos, fazendo surgir as coisas a partir do nada. A matéria não é preexistente à acção criadora de Deus, aliás não podíamos falar rigorosamente de criação.

Orígenes insiste em que o cosmos teve um início e terá um fim. Este mundo está dentro de uma sequência de uma pluralidade de mundos sucessivos que se libertam uns dos outro ao longo de um tempo cíclico. Deus não começou a criar apenas quando fez surgir este mundo visível. Existiram mundos diferentes antes e virão outros depois do nosso (De Princ. 3, 5, 3).

O Maniqueísmo foi a última grande heresia derivada do dualismo gnóstico. Expandiu-se  muito rapidamente no Ocidente durante os séculos III e IV. Sabemos como Santo Agostinho se deixou atrair por este dualismo pessimista. Foi o problema do mal que o levou a procurar a solução no maniqueísmo. Os maniqueus blasfemam, diz Santo Agostinho, falando de duas naturezas uma boa outra má (De Nat. Boni, 41). Mas enganam-se, pois foi o mesmo Deus que criou todas as coisas do nada.

Os maniqueus diziam que primeiro foi a matéria informe e depois os seres a partir dessa matéria informa. Santo Agostinho insiste que a criação aconteceu no tempo. Após a sua conversão ataca a ideia de uma matéria eterna, bem como a ideia de que o tempo opera uma degradação nas coisas, afastando-as da sua pureza origina. O tempo, diz ele, não goza de uma natureza autónoma. Existe como mera dimensão dos seres criados. O mundo não foi feito no tempo, mas com o tempo. Não tem sentido pensar como Orígenes em tempos ilimitados e inacabados (De Civ. Dei, 11, 5). O relato do Génesis, diz Santo Agostinho, não deve ser tomado de modo literal. Os seis dias não significam dial solares, mas grandes etapas da génese criadora. Os dias dignificam que a pluralidade das obras da criação (Gen ad Litt., 5, 5, 12). Santo Agostinho tem uma compreensão evolutiva ao projecto criador de Deus.

O problema do mal continuou a preocupá-lo, apesar de ter abandonado o maniqueismo. Encontra a solução do problema na ideia platónica da participação descendente do ser. Deus é a suma essência. Portanto é pura bondade e perfeição. As criaturas participam de modo limitado da perfeição e da bondade de Deus. Deus comunica a sua essência às criaturas mas de forma limitada e hirarquizada, segundo os seres. Esta limitação implica uma imperfeição. A raiz do mal está na ontologia das criaturas limitadas. Tudo o que não é Deus é mutável, corruptível, não inteiramente bom (De Nat. Boni, 16s).

Agostinho resolve o problema do mal na simples limitação na participação da essência do bom e do perfeito. Foge do dualismo maniqeu. Mas esta saída é perigosa, pois abre as portas ao monismo panteísta: os seres são emanação do Ser. Santo Agostinho evitou este perigo através da afirmação da “creatio ex nihilo”. Os seres não emanam de Deus, pois neste caso seriam Deus (Ibid. 1).


d) Da Escolástica à Idade Moderna

1- O Pensamento Escolástico

O prestígio enorme de Santo Agostinho não podia deixar de marcar o pensamento posterior, o qual vai permanecer platónico até à grande viragem aristotélica de Santo Tomás. No entanto a ideia platonica de participação do ser levava subjacente o perigo panteísta. Foi o que aconteceu com Juan Escoto Eriúgena
.
Na sua obra De divisione naturae, Eriúgena fala de criação, mas de facto o conteúdo do seu pensamento não é o de criação mas sim o de emanação. Tudo emana de Deus. Tudo é simultaneamente criado (emanado) e eterno. O Verbo é o demiurgo platónico e o Espírito Santo é a alma do Cosmos (visão estoica). A criação não é um acto livre e amoroso de Deus mas surge como necessidade de Deus. Flui necessariamente  da essência criadora de Deus. Brota de modo necessário como emanação da relação pela qual o Filho é gerado pelo Pai. Com Escoto Eriúgena encontramo-nos perante o primeira tentativa de elaborar um concordismo perfeito entre a fé e a filosofia platónica.

A teologia também se converte em puro racionalismo com a filosofia de Abelardo. Deus faz sempre o melhor. Portanto não podia ter deixado de fazer o que fez (DS 726). Isto quer dizer que esta criação é óptima. Se na criação existe o mel isso significa que Deus não pode nem deve impedi-lo (DS 727). Deste modo se nega a liberdade divina de Criar, ao mesmo tempo que se culpabiliza Deus pela existência do mal. Abelardo foi condenado pelo sínodo provincial de Soissons e, mais tarde, por Inocêncio II (Nota introdutória de DS 721).

Por volta do século XI volta a irromper no Ocidente a velha semente do dualismo. Uma seita nascida nos Balcãs difunde-se pelo sul da França, Renânia e norte de Itália. Os membros da seita chama-se a si mesmos de cátaros (puros), mais conhecidos por Albigenses por Ter florescido sobretudo em Albi, cidade francesa. Para os cátaros ou albigenses a matéria e o mal têm origem num princípio eterno mau, o qual se opõe a outro princípio bom também eterno. Estamos perante um dualismo ontológico fundamental. O princípio bom só criou espíritos, não matéria.

Os albigenses têm importância para a história do dogma, pois surgiu o IV concílio de Latrão para os combater (DS 800). Eis alguns princípios importantes do concílio: a) Há um só princípio criador, apesar de serem três as pessoas divinas; b) A “creatio ex nihilo” rejeitando a ideia de uma matéria preexistente e informe; c) A criação no tempo (ab initio temporis);d) A universalidade do acto criador que implica não apenas os seres materiais como também os espirituais; e) A origem do mal não de origem ontológica mas moral. Tudo foi criado como ontologicamente bom.

As formulações do Concilio IV de Latrão foram tão felizes e satisfatórias que, até ao Vaticano I, não se fez sentir na Igreja a necessidade de voltar a falar do assunto. Por outro lado põe fim ao agostinianismo, afirmando que a origem do mal não é ontológica mas ética. Como sabemos, Agostinho punha a origem do mal no facto de as criaturas participarem de modo limitado da essência divina. Agora, o quarto concílio de Latrão fala de uma decisão histórico-ética, voltando à perspectiva bíblica.

Santo Tomás consegue fazer uma síntese entre o platonismo de Agostinho, mas com a novidade de uma reformulação aristotélica. De Agostinho conserva a tese da participação do ser. De Aristóteles vai usar o binómio acto-potência, bem como o esquema dos diversos tipos de causalidade. Deus é causa exemplar, eficiente e final da criação (S. Th. I, q.44). A criação do nada pode provar-se pela razão (Set., d.1,q.1, a . 2.). Recorre ao nexo aritotélico entre o contingente e o necessário (Contra Gentios 2, 16; STh I, q.44, a. 1.). O conceito de Deus como acto puro, sublinha a transcendência divina, fechando definitivamente as portas ao panteísmo. Em relação à criação dentro do Tempo Santo Tomás diz que embora esta não se possa demonstrar pela razão, mas é uma verdade de fé, pois é admitida pelas Escrituras (STh. I, q.46, a .2.),

No fundo não via problema em afirmar que a criação é eterna. Pensa que ser totalmente criado por Deus e no ter começo não são proposições contraditórias. No entanto defende a creatio ex nihilo (De Eternitate..., 3). A criação é mais uma questão de relação Criador criatura do que de começo da acção criadora (STh. I q.45, a .3.). Santo Tomás sublinha de modo muito forte a liberdade divina ao decidir criar, bem como a condição contingente de todo o criado (STh. I q.19, a .3.).

Quando ao aspecto ontológico, Santo Tomás diz que tanto o Criador como a criatura são (Ser), mas não do mesmo modo nem com base na mesma substância. Graças à analogia é possível conhecer Deus a partir do conhecimento das realidades criadas. Do mesmo modo é possível ultrapassar o panteísmo: Há um Ser que dá a existência e seres que a recebem. Do mesmo modo supera o dualismo: entre Deus e o mundo há afinidade, não hostilidade (STh. I, q.13, a .3-5 ; Conte Gentes 1, 33s.).

Traduzido a Fé bíblica na criação para conceitos aristotélicos como : 1) Criador (ens a se), acto puro, motor imóvel, ser necessário. 2) Criatura (ens ab alio), potência, ser contingente, Santo Tomás prestou um serviço à teologia, fazendo-a sair das amarras platónicas. No entanto, temos de reconhecer que não existe um perfeita equivalência entre os conceitos aristotélicos  e a visão bíblica. O dinamismo criador de Deus na Bíblia agora converte-se numa actividade estática, fechado nos circuitos da causa-efeito. O dinamismo da História da Aliança e da Salvação desaparecem para ficarem reduzidos apenas ao conceito da bondade de Deus  como fim da criação. O projecto salvador de Deus, na visão de Santo Tomás, não parece Ter qualquer nexo com o projecto e a acção criadora de Deus.

2) Renascimento e Reforma

O renascimento suscita uma nova visão do mundo. Os descobrimentos geográficos e astronómicos revolucionaram o conceito do espaço e do cosmos. Este, a partir de Copérnico e Galileu deixa de ser geocêntrico. Em contrapartida a realidade começa a ser vista de modo antropocêntrico. A doutrina da criação entra em crise.

A chamada crise copernicana consiste essencialmente no abandono da metafísica como único modo de abordar a realidade e fonte exclusiva do conhecimento. Nascem as ciências com os seus métodos de observação empírica. Estas emancipam-se da teologia, criando o seu discurso próprio. Como a teologia estava demasiado envolvida com os velhos esquemas, não consegue adaptar-se à nova visão da realidade e aos novos modos de pensar. Por isso perde credibilidade junto do homens do saber.

Como surge um interesse grande à volta da Natureza, surge o perigo do panteísmo. O problema vai surgir efectivamente com Giordano Bruno. Este defende que o Universo e o espaço são infinitos. Estes são explicação, emanação e efusão da essência divina. A emanação é eterna, pois Deus não pode permanecer inactivo. É também necessária, pois a uma potência activa infinita deve corresponder outra potência passiva (igualmente infinita). Todos os seres estão informados pela alma universal que é essa potência activa divina. As almas particulares são modos ou participações limitadas dessa.

É curioso notar que Lutero defendeu acerrimamente o geocentrismo, devido ao seu fundamentalismo bíblico. No entanto a Reforma, devido ao seu retorno às Escrituras, recupera o dinamismo da história da Salvação, inserindo-o na sua compreensão do projecto criador de Deus. À maneira de São Paulo e São João, Lutero funda a criação sobre a cristologia. Explica o primeiro artigo da Fé (Deus Criador) pelo segundo (Cristo Redentor). Lutero mantém a fórmula “creatio ex nihilo”, pois servia-lhe para fundamentar a sua visão negativa acerca das criaturas: “A criatura proce do nada, portanto é nada tudo o que a criatura pode” (WA 43, 178, 39). Como a criatura não ´´e nada e não pode nada, criar é fazer sempre de novo (WA 1, 563, 6-13).

As deformações mais graves da doutrina protestante sobre a criação têm como origem a sua visão sobre a justificação. O Concílio de Trento tratou a questão da justificação. Por isso não se preocupou com a questão da criação. Apenas diz que Deus é o autor do Bem mas não do mal (DS 1556).

3) O Pensamento Contemporâneo
3.1.- O Vaticano I

Foi preciso esperar pelo final do século XIX para encontrarmos teólogos dispostos a reajustar o diálogo com a cultura ambiente. A rotura entre a teologia e a ciência é enorme. A caminhada de reencontro e reconciliação vai ser lona e difícil. Até ao presente a doutrina da criação teve de defender-se essencialmente de desvios de tipo dualista: gnosticismo, maniqueísmo, albigenses ou cátaros. As tendências panteístas (Escoto Eriúgena  e Giordano Bruno) foram casos episódicos muito limitados. Agora o naturalismo renascentista prepara o caminho para as cosmovisões monistas. O panteísmo mais ou menos explícito de  Giordano Bruno se consolida em Espinoza, vindo a alcançar o seu cume com o idealismo Hegeliano (panteísmo espiritualista) e o materialismo de Feuerbach e Marx (panteísmo materialista.

Numa altura em que a essência do cristianismo parecia condena à dissolução devido aos ataques combinados da ciência e da metafísica, os teólogos da criação apresentação o seu pensamento de forma apologética. O concordismo trata desesperadamente combinar os dados científicos com uma leitura literalista do Génesis, enquanto a teologia especulativa tenta demonstrara criação como verdade racional é o caso de Hermes e Gunther. A sua doutrina desliga-se quase totalmente da revelação para configurar-se simplesmente com a teologia natural. Hermes e Gunther foram condenados por Roma (Cf. DS 2738-2740; 2828-28-31).

Vai ser tarefa do Vaticano I definir dogmaticamente a liberdade do acto criador de deus, bem como o fim da criação. O essencial da doutrina do concílio sobre a criação encontra-se no capítulo primeiro da sessão terceira (DS 3001-3003), bem como nos respectivos cânones (DS 3021-3025). A solenidade da fórmula introdutória não deixa lugar a dúvidas sobre a intenção de definir dogmaticamente a doutrina da criação. Em primeiro lugar Deus é definido como criador de todas as coisas. Mas sublinha-se que Deus é real e essencialmente distinto do mundo. É evidente que se tenta condenar toda  e qualquer forma de panteísmo (DS 3001).

Quanto ao fim da criação o concílio declara que Deus não adquire qualquer perfeição mediante a criação. Deus cria para mostrar a perfeição divina através das qualidades impressas nas criaturas (DS 3002). O Concílio recolhe e confirma a definição do quarto concílio de Latrão. Condena todas as formas de panteísmo: materialista, espiritualista e imanentista (DS 3022-3024). Criatura e Criador não são consubstanciais. Os entes espirituais não são parcelas da substância divina. A multiplicidade dos seres é real e não simples demarcação de um ser único , universal e indefinido. A “creatio ex nihilo” é definida como a produção das coisas com a sua própria e plena substância (DS 3025).

Tendo-se limitado a reiterar a fé tradicional da Igreja sobre a criação, o Vaticano I deixava intactos os dois problemas com os quais a mesma fé sobre a criação estava a ser confrontada no início do século XX: a interpretação científica do mundo e, sobretudo, a chave em que deviam ser lidos os textos bíblicos relacionados com a criação. Já no final do século XIX a leitura literal de génesis 1 não podia manter-se, por maior que fosse o esforça concordista. Após o aparecimento das doutrinas evolucionistas. Já não é possível  pensar o Universo como uma grandeza estática, construída de uma vez  por todas e com os seres tal como hoje existem.

Agora o Universo é visto como uma corrente dinâmica, uma génese, um devir. Tudo se relaciona com tudo através de uma complexa rede de conexões mútuas. Ora no relato bíblico tudo aparece desde o primeiro momento como acabado e completo. Em 1909 um decreto da Comissão Bíblica (DS 3512-3519), mostra bem qual era o estado da questão. Recolhe as tentativas de encontrar uma saída ao problema considerando o texto de Génesis 1 como não sendo um relato histórico, com algumas críticas. No entanto foi bastante moderada a sua posição: Histórico (real e não fabuloso) é o facto da criação e de sua índole temporal. A Comissão não impõe a obrigação de aceitar no seu sentido próprio todas e cada uma das coisas descritas no texto bíblico (DS 3516).

3.2.- O Vaticano II

A descoberta dos géneros literários com a consequente renovação da hermenêutica dos textos bíblicos criacionistas, já não são história, mas actualidade. O mesmo acontece com a integração da teologia na visão evolutiva, tarefa na qual o Pe Teilhard Chardin teve um mérito excepcional . Liberta destas preocupações,  a teologia da actual  procura desenvolver e aprofundar a doutrina da criação fundamentando-se nas Escrituras. Isto não pode deixar de levar a teologia a introduzir na doutrina da criação a dinâmica da História da Aliança e da Salvação. Nesta linha se situa o grande contributo do Concílio do Vaticano II. O tema da criação é desenvolvido sobretudo na Gaudium et Spes.

O Concílio tem uma visão dinâmica do mundo, no qual intervém não só a acção criadora de Deus como a colaboração do Homem. O Homem como colaborador de Deus prolonga e actualiza a obra do mesmo Deus. Deste modo o concílio apresenta uma doutrina segundo a qual a criação é resultado da combinação da acção do Deus criador com a do Homem criativo. Ao mesmo tempo que os homens confessam Deus como criador de todas as coisas aperfeiçoam, com seu trabalho, a obra do Criador (GS 34). Por isso, o concílio, longe de rejeitar a criatividade humana, julgando-a inimiga de Deus, valoriza-a e reconhece-a como dinamismo colaborador da acção criadora de Deus.

Outro aspecto importante da doutrina sobre a criação desenvolvida pelo Concílio é o conceito de autonomia das realidades criadas. As criaturas gozam de leis e valores próprios. Este facto corresponde aos desígnios do próprio Criador. Pela própria natureza da criação todas as coisas estão dotadas de consistência, verdade e bondade próprias (GS 36; GS 59).

O elemento doutrinal mais importante que o concílio nos oferece é a recuperação e inserção da História da Aliança e da Salvação na própria génese da criação. A criação tem uma face cristológica e histórico-salvífica. O Verbo de Deus por quem foram feitas todas as coisas entrou na História do Mundo assumindo-a a recapitulando-a em si mesma (GS 38).

A função de Cristo cabeça da Nova Criação não se circunscreve ao momento inicial de criação. A Nova Criação é a plenitude da primeira criação. A natureza está chamada a desembocar na graça (GS 39). É notória a insistência do concílio a finalidade da criação. A realidade criada é lida à luz da cristologia e da sotereologia, na perspectiva de São Paulo (cf Col 1, 15; Rm 8, 29) (LG 2). O Verbo de Deus por quem as coisas foram criadas, encarnou para recapitular todas as coisas. Cristo ressuscitado é o fim da história humana.

É o ponto de convergência para o qual tende os desejos da história e da civilização. Vivificados e reunidos pelo Espírito do Senhor ressuscitado caminhamos como peregrinos para a consumação da história humana, a qual coincide plenamente com o desígnio divino: Restaurar em Cristo todas as coisas do Céu e da Terra (Ef 1, 10). A Salvação é uma verdadeira restauração da criação rasgada e ferida pelo pecado (GS 45). Deus entrou de modo novo na História humana, enviando  o Seu Filho, Ele que também esteve no começo da criação, o Senhor dos séculos. Foi constituído herdeiro de todas as coisas, a fim de as restaurar a todas em Cristo (AG 3).

O Concílio do Vaticano II teve o grande mérito de reactivar os grandes temas bíblicos da unidade entre o projecto criador e salvador de Deus. A criação leva impressa em si a marca de Cristo. O concílio não deixa antever qualquer dificuldade ou incómodo em acolher as cosmovisões das ciências contemporâneas.


Em Comunhão Convosco
Calmeiro Matias

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