a) Eucaristia e Teologia Tradicional
1- O Fisicismo da Presença Real
2- A Transubstanciação
3- A Eucaristia Como Sacrifício
4- Eucaristia e Perdão do Pecado
b) A Boa Nova da Eucaristia
1- Memória e Proclamação da Salvação de Deus
2- A Presença Real de Cristo na Eucaristia
2.1- A Presença é Relacional
2.2- Dinamismo da Presença Real
3- A Reserva Eucarística
3.1-O culto da reserva
3.2-A Reserva Como Mediação de Encontro
a) Eucaristia e Teologia Tradicional
1- O Fisicismo da Presença Real
Até ao século XI, a linguagem sobre a presença real não tinha conotação fisicista. Utilizava-se normalmente a designação de corpo real de Cristo para a Igreja e Corpo místico para a Eucaristia. Não deixa de ser curioso notar que, no século XI, se opera uma viragem total, ao ponto de se inverterem os termos.
3- A Reserva Eucarística
3.1-O culto da reserva
3.2-A Reserva Como Mediação de Encontro
a) Eucaristia e Teologia Tradicional
1- O Fisicismo da Presença Real
Até ao século XI, a linguagem sobre a presença real não tinha conotação fisicista. Utilizava-se normalmente a designação de corpo real de Cristo para a Igreja e Corpo místico para a Eucaristia. Não deixa de ser curioso notar que, no século XI, se opera uma viragem total, ao ponto de se inverterem os termos.
Esta viragem foi desencadeada por um teólogo chamado Berengário. Ao tratar dos sacramentos, Berengário diz que estes são símbolos. O pão e o vinho, portanto, são símbolos do corpo e sangue de Cristo. Berengário é acusado de herege e teve de se retratar, a fim de não ser queimado como acontecia a todos os que eram considerados hereges.
Berengário acaba por assinar um documento que continha a síntese doutrinal, a qual é o começo da linguagem fisicista posterior. Eis uma síntese da doutrina que Berengário foi obrigado a assinar: “Eu, Berengário, creio de coração e confesso de boca que o pão e o vinho que se colocam sobre o altar, pelo mistério da santa oração e pelas palavras do nosso Redentor, se convertem, substancialmente, na verdadeira, própria e vivificante carne e sangue de Jesus Cristo, nosso Senhor. Depois da consagração, são o verdadeiro corpo de Cristo, que nasceu da Virgem e que, oferecido pela salvação do mundo, esteve pendente da cruz e está sentado à direita do Pai” [Denz. 355].
O termo carne, na cultura bíblica (basar), não é um conceito biológico. Pelo contrário, significa a interioridade humana enquanto ser estruturado para relação e fazendo um todo orgânico com toda a Humanidade. Comer a carne e beber o sangue de Cristo significava, na cultura judaica do tempo de Jesus, entrar na comunhão humana universal cuja cabeça é Cristo.
Para a Bíblia, a Humanidade forma um todo orgânico cuja cabeça era Adão. Quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga. É este o sentido do pecado de Adão que atinge a Humanidade inteira. O pecado original, na visão bíblica, é uma mutilação ou uma distorção operada na Humanidade por Adão, sua cabeça. O Novo Testamento vê em Cristo o Novo Adão. Assim como pelo primeiro Adão veio a morte, diz São Paulo, pelo segundo veio a vitória sobre a morte (Rm 5, 17-19).
Esta visão bíblica desaparece da linguagem teológica e é substituída pela linguagem das filosofias platónica e aristotélica. O documento assinado por Berengário um texto elaborado em linguagem tipicamente aristotélica. Nos primórdios do século XIII, Inocêncio III diz que o pão e o vinho da Eucaristia são o verdadeiro corpo e sangue de Jesus Cristo. O acto da consagração é visto como um rito com efeitos automáticos que opera, pelas palavras de Cristo, a mudança da substância do pão e do vinho na substância do corpo e do sangue de Cristo. Como o corpo e a alma são inseparáveis da divindade de Cristo, a divindade de Cristo está também presente na Eucaristia.
O Concílio de Latrão utiliza a terminologia “substância” e “espécies”. Espécie é aquilo que não subsiste por si e é variável. O corpo de Cristo permanece oculto sob as espécies do pão e do vinho [Denz. 430]. Segundo o aristotelismo, as espécies não podem subsistir sem a sua substância própria. Aqui, a substância muda e as espécies permanecem. Naturalmente que é fácil resolver este problema, dizendo que se trata de um milagre.
Urbano IV diz que a Eucaristia é a comemoração de Cristo. Nesta comemoração, o Senhor torna-Se presente com a Sua substância [Denz. 459]. Neste tipo de linguagem já não existe a noção de que a Eucaristia não é uma questão biologia mas sim espiritual. Por outras palavras, a Eucaristia que corporiza o Cristo histórico, mas o Cristo ressuscitado, como diz o evangelho de São João: “Isto escandaliza-vos? E se virdes o filho do Homem subir para onde estava antes? O Espírito é quem dá vida, a carne não serve para nada. Ora, as palavras que vos disse são Espírito e Vida” (Jo 6, 62-63).
No século XV, o Concílio de Constança diz que sob o véu do pão e do vinho, está o próprio Jesus que sofreu na cruz e está sentado à direita do Pai [Denz. 666]. Por seu lado, o Concílio de Florença afirma que, em cada pedacinho da hóstia consagrada, bem como em cada gota do vinho, está Cristo inteiro [Denz. 698].
2-A transubstanciação
À mudança de substância a teologia dá o nome de transubstanciação. No século XI a fórmula da retracção imposta a Berengário diz que Cristo está presente no pão e no vinho, não apenas pelo sinal e força do sacramento, mas na propriedade da sua natureza e substância [Denz. 355]. Pouco a pouco, a transubstanciação vai ganhando um sentido de um resultado automático, associado ao rito e às palavras da consagração.
A substância é a essência interior das coisas. É a realidade interior que serve de suporte aos aspectos mutáveis, os acidentes. Segundo o aristotelismo, os acidentes são suportados pela substância. Os acidentes correspondem, portanto, à realidade substancial. Na Eucaristia os acidentes são de pão e vinho e, portanto, não correspondem à substância que é o corpo de Cristo. Isto só pode acontecer graças a um milagre permanente.
A substância, pelo contrário, não é suportada por qualquer outra realidade. Suporta os acidentes e não é suportada por estes. Por outras palavras, a substância existe em si e por si. Mais tarde, começa-se a afirmar que a substância de Cristo permanece enquanto permanecem os acidentes do pão e do vinho consagrados.
Esta linguagem já não serve para os nossos dias. Com efeito, as ciências descobriram que as coisas não têm qualquer substância. As ciências descobriram que a estrutura básica das coisas não é uma substância estática, mas uma estrutura profundamente dinâmica: o átomo. A linguagem metafísica do pensamento teológico tradicional é essencialista e fisicista. Este fisicismo da teologia tradicional não resiste a um confronto com o pensamento contemporâneo.
E não vale o argumento de que se trata de um mistério, querendo significar que é algo que não se pode entender. Na visão do Novo Testamento o mistério significa uma realidade totalmente diferente: O projecto que Deus sonhou desde toda a eternidade acerca dos homens. Este mistério foi revelado aos homens na plenitude dos tempos (Ef 1, 9-10; 3, 1-9; Col 4, 3).
Ao revelar o Seu projecto, Deus convida os homens a abrirem-se à sua compreensão. Os que se abrem à acção do Espírito Santo chegam à experiência e compreensão do mistério (Mc 4, 11; Col 2, 2; 1Cor 2, 7ss). O mistério de Deus e do homem é revelado no concreto da vida dos crentes e das comunidades (Rm 16, 25-27; 1Cor 2, 7-10). Em perspectivas cristãs o mistério é revelado aos homens pelo Espírito Santo. Trata-se, portanto, de algo que o crente deve conhecer cada vez mais profundamente. De facto, a fé não anula a razão. Pelo contrário, potencia-a e ajuda-a a ver os horizontes de plenitude que, por si, jamais poderia conhecer.
Segundo o conceito aristotélico, a substância de uma coisa não se divide. Eis a razão pela qual Cristo está presente em cada fragmento de pão consagrado, pois a substância do seu corpo e sangue, alma e divindade está toda no pão e toda no vinho [Denz. 626, 627 e 698, 932]. Os leigos, comungando apenas as espécies do pão, estão a comungar toda a substância de Cristo [Denz. 626]. Defender que, para comungar Cristo inteiro, é preciso comungar as espécies do pão e do vinho é heresia, diz o Concílio de Constança [Denz. 668].
Como se vê, já se perdeu o sentido da refeição que explicita e antecipa o banquete do Reino de Deus. Por outras palavras, o sentido original da Eucaristia como refeição que realiza o mandato de repetir o que ele fez está totalmente desfigurado. Agora, a questão é afirmar que a substância de Cristo está inteira tanto no pão como no vinho. No século XVI, o Concílio de Trento declara que, se alguém disser que a Igreja errou ao adoptar a prática da comunhão só do pão para os leigos seja excomungado (Denz. 935).
Além disso, como já vimos, junto à substância do corpo e sangue de Jesus, está a da alma e divindade, pois o corpo e sangue de Jesus são inseparáveis da alma e divindade. É esta a razão pela é legítimo adorar a hóstia consagrada, prestando-lhe culto de latria, o qual só pode ser prestado a Deus. Se na hóstia consagrada está também a divindade de Cristo, então esta pode receber culto igual ao de Deus (Denz. 878, 888). Surge assim o culto da reserva da Eucaristia, interpretando a presença real de Cristo em termos de biologização e localização espácio-temporal de Cristo ressuscitado.
3-A Eucaristia como sacrifício
A leitura sacrificial da Eucaristia representa um retorno ao culto sacrificial do Antigo Testamento. A interpretação sacrificial da Eucaristia é fruto da sacerdotização do ministério. Como sacerdotes, os ministros da Eucaristia estão dotados de um poder que os capacita para fazerem este sacrifício cultual.
Como consequência desta leitura, a presença dos fiéis não é fundamental. Em rigor, o padre pode realizar este culto sacrificial sozinho. No sacrifício da missa Jesus Cristo oferece-se todos os dias como vítima de propiciação a Deus, a fim de o aplacar e obter o perdão dos pecados, tanto para os vivos como para os mortos. Trata-se, portanto, de um sacrifício propiciatório, a fim de tornar Deus benévolo aos homens.
Esta linguagem do Concílio de Trento contraria a linguagem do Novo Testamento. A Carta aos Hebreus diz expressamente que os crentes da Nova Aliança já não têm necessidade de oferecer sacrifícios pelos pecados (Heb 10, 18). Além disso, afirma que Cristo não entrou no santuário definitivo, isto é, no Céu, para se oferecer muitas vezes: “Cristo não entrou num santuário feito por mão do homem, o qual é apenas figura do verdadeiro. Ele entrou no próprio céu, para Se apresentar agora diante de Deus por nós. E não entrou para se oferecer muitas vezes a si mesmo, como o sumo-sacerdote entra, cada ano, no santuário com sangue alheio. Nesse caso, ser-lhe-ia necessário padecer muitas vezes desde o início do mundo” (Heb 9, 24-26).
São Paulo defende esta mesma perspectiva. Cristo ressuscitado já não morre mais, diz ele. Quanto ao morrer pelo pecado, ele morreu apenas uma vez. Agora, a Sua vida é uma vida com e para Deus (Rm 6, 9). Temos de dizer que a perspectiva teológica da Eucaristia como sacrifício se desvia da visão do Novo Testamento.
A teologia tradicional fez da Eucaristia um sacrifício para justificar o ministério como sacerdócio. No século XII Inocêncio III diz que o sacrifício da missa só pode ser oferecido pelo presbítero ordenado pelo bispo [Denz. 424]. Só o presbítero é sacerdote. Portanto, só ele pode oferecer o sacrifício do altar. Além disso, o Concílio de Trento diz que, na última ceia, Cristo instituiu o sacrifício da missa.
Citando a Carta aos Hebreus, Trento diz que o sacerdócio levítico foi insuficiente. Por isso, Deus anunciou um outro sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec (cf. Gen 14, 18; Sl 110, 4; Heb 7, 11). Este sacerdote foi Cristo, diz o Concílio. No entanto, para que não se extinguisse com a sua morte, constituiu, na última ceia, os apóstolos como sacerdotes (Denz. 938).
É curioso que a argumentação do Concílio de Trento vai no sentido contrário ao da Carta aos Hebreus. Esta diz que, enquanto esteve na terra, Cristo nem sequer tinha funções sacerdotais. Já existiam os sacerdotes levitas que exerciam essas funções segundo a Lei (Heb 8, 4). Cristo foi constituído sumo-sacerdote pela ressurreição (Heb 7, 16). Ele não precisa de substitutos, pois está eternamente junto de Deus como único medianeiro entre Deus e os homens (1Tim 2, 5).
Jesus Cristo, continua a Carta aos Hebreus, não pertencia à tribo sacerdotal, isto é, à tribo de Levi. Pelo contrário, ele pertencia à tribo de Judá. Ora, como sabemos, os membros desta tribo não tinham funções cultuais (Heb 7, 13-14). Mas, pela sua ressurreição, Cristo foi constituído sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec e não segundo a ordem de Aarão (Heb 7, 11).
Mudado o sacerdócio, devia mudar-se também a lei e as normas (Heb 7, 12). Esta mudança consistiu em abolir os sacrifícios, os quais foram superados pela morte e ressurreição de Cristo (Heb 10, 5-10). Deste modo, Cristo estabeleceu o novo culto que é fazer a vontade de Deus (Heb 10, 8-9). Este novo culto não consiste em oferecer vítimas a Deus para o aplacar e obter o perdão do pecado, mas é um culto em Espírito e Verdade, diz o evangelho de São João (Jo 4, 22-23).
A primeira carta de São Pedro diz que a comunidade é o templo da Nova Aliança. Os crentes constituem um sacerdócio santo cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais, os únicos agradáveis a Deus (1Ped 2, 5). A sua missão é anunciar a misericórdia de Deus que sonhou um projecto de salvação para a Humanidade (1Ped 2, 9-10).
Segundo São Paulo, este plano de salvação consiste em que Deus nos oferece a salvação mediante o Espírito Santo que nos incorpora na família divina (Rm 8, 14-17; Gal 4, 5-7). Sentado à direita de Deus para sempre, Cristo já não tem necessidade de oferecer sacrifícios todos os dias, diz a Carta aos Hebreus (Heb 7, 27-28). Depois acrescenta que os antigos cultos não agradaram a Deus (Heb 10, 6). O novo culto não assenta em sacrifícios e oblações, mas na fidelidade à vontade de Deus (Heb 10, 9).
Quando o Concílio de Trento afirma que em cada missa Jesus Cristo é uma vítima que se imola de modo real, embora diferente do modo como se imolou na Cruz, está a distanciar-se da visão do Novo Testamento (cf. Denz. 938, 940). Convertido em sacerdote, o ministro oferece, em nome de Cristo, o sacrifício da cruz. A validez deste sacrifício não requer a presença dos leigos nem a comunhão destes (Denz. 944, 955).
A Eucaristia, entendida como celebração comunitária da Fé fica distorcida. São Paulo insistia em que, sem ágape comunitário, não há Eucaristia (1Cor 11, 17-34). Agora, tudo pode ser feito de modo automático por sacerdotes que, segundo a linguagem da espiritualidade sacerdotal, têm tal dignidade que podem fazer descer Cristo do Céu à terra.
4-Eucaristia e perdão do pecado
Como sacrifício propiciatório, a Eucaristia torna Deus propício ao homem, perdoando-lhe o pecado. O Novo Testamento vê o perdão no dom do Espírito Santo. A maneira concreta de aceitar este dom é a reconciliação e o perdão vivido entre os crentes. Na Eucaristia, existia o beijo ou o abraço da paz como gesto de reconciliação. Deus não nos perdoa se não perdoarmos aos irmãos (Mt 6, 14).
Já os profetas acentuavam com força de que a reconciliação com Deus não se obtém pelos cultos mas pela vivência da misericórdia, da solidariedade e pelo perdão aos irmãos (Jer 18, 33; 33, 8; Is 44, 22; Miq 7, 18; Jer 31, 34). Para o Novo Testamento, a reconciliação é um acto de amor gratuito de Deus oferecido em Cristo (2Cor 5, 19; 1Jo 4, 7; Act 10, 43; Rom 5, 11). É o Espírito que opera em nós o mistério da reconciliação (Ef 2, 13-3, 21). A prova de que estamos reconciliados é que Deus nos dá parte no Seu Espírito, diz a primeira carta de São João (1Jo 4, 7-16; 5, 1-9).
O sacramentário de Verona (século IV-VI) fala da Eucaristia como remédio, expiação e purificação. Esta linguagem ainda não tem qualquer conotação sacrificial. Significa o robustecimento do homem espiritual e o fortalecimento da comunhão de Deus. Neste sentido, é mediação de perdão e reconciliação (cf. François Bourdeau, La route du pardon, Ed. Cerf, Paris, 1982, p. 34).
Neste mesmo sentido, Santo Ambrósio fala do efeito redentor da Eucaristia o qual produz no interior do homem o perdão e a reconciliação com Deus (Ibid. p. 35). Estas afirmações, no entanto, não têm qualquer sentido sacrificial. Jamais passaria pela cabeça destes autores falarem de um sacrifício expiatório ou propiciatório.
O que eles pretendiam dizer é que a Eucaristia, como celebração da Fé, é um espaço privilegiado para a acção do Espírito Santo que restaura a reciprocidade e comunhão com Deus. Na verdade, os conceitos sacrificiais da teologia medieval são consequência da crescente sacerdotização do ministério.
Sublinhando o pensamento de São Paulo, Santo Ambrósio dizia que os hebreus comeram o maná e morreram. Os cristãos, pelo contrário, comem o pão da Eucaristia e obtêm o perdão e a vida eterna (Santo Ambrósio, De sacram. IV, 5, 24). A Eucaristia, como todos os outros sacramentos são espaços privilegiados para o crente viver a dinâmica do baptismo no Espírito.
Os Padres gregos acentuavam com vigor que todos os pecados cometidos antes do baptismo são perdoados no baptismo. Por outro lado, os pecados posteriores são perdoados na Eucaristia (cf. François Bourdeau, La route du pardon, Ed. Cerf, Paris, 1982, p. 37). Santo Ambrósio explicita a relação perdão Eucaristia ao afirmar que só os pecados públicos eram excluídos desta dinâmica do perdão, sendo necessário, neste caso, a penitência pública (Ibid. p. 40).
Os Santos Padres estavam longe do esquema que chegou até nós e que assenta na relação automática que vê a reconciliação como sacramento para lavar a alma e a Eucaristia como celebração através da qual Cristo entra na alma lavada. Esta relação é um produto da teologia medieval. O Concílio de Trento diz que a Eucaristia perdoa a pena devida ao pecado, mas não o pecado. Além disso, dispõe o crente para o sacramento da penitência. A Eucaristia perdoa a pena dos pecados por mais graves que sejam [Denz. 940].
Segundo o Concílio de Trento, os méritos do sacrifício de Jesus na cruz são aplicados aos crentes no sacrifício da missa. Esta aplicação faz-se mediante a acção dos sacerdotes (Denz. 940). Além de acção de graças e louvor, o crente deve acreditar que a missa é um sacrifício propiciatório (Denz. 950).
No século XVIII, Bento XIV reafirma a doutrina de Trento, dizendo que a missa é um sacrifício propiciatório e pode ser oferecida por vivos e defuntos (Denz. 1469). Já no século XV, o Concílio de Florença tinha afirmado que a missa é útil para os que estão no Purgatório (Denz. 693). Pio XI diz que o Cristo que se ofereceu na cruz está continua e permanentemente a oferecer-se como vítima na Eucaristia (Denz. 2195). O sacrifício da missa é útil para os defuntos porque perdoa a pena temporal do pecado (Denz. 940, 950).
Aplicado aos vivos, perdoa os pecados veniais, a pena temporal devida ao facto de se ter pecado. Além disso previne ainda contra possíveis pecados mortais (Denz. 875, 887). Esta visão levou à contabilização das missas, a fim de se saber quantos sacrifícios se iam aplicar ou se tinham aplicado por um determinado defunto. O Novo Testamento não oferece fundamento a esta leitura sacrificial da Eucaristia.
Na verdade trata-se de uma visão mágica que faz da Eucaristia um culto que realiza de maneira automática a libertação dos que estão em estado de purgatório, levando-os para o Céu. São Paulo é muito claro neste ponto. Os judeus tiveram a sua eucaristia, pois comeram um pão do Céu e este já corporizava o Cristo Salvador que viria salvar a Humanidade. No entanto, a maior parte destes judeus não agradou a Deus e não chegou à meta que era a terra prometida. A nossa meta é o Reino. Não pensemos que, por termos o baptismo e a Eucaristia, diz São Paulo, já temos o Reino dos Céus automaticamente assegurado (1Cor 10, 1-6).
Desde os primórdios que a Igreja ora e celebra em comunhão com os falecidos. Esta prática, no entanto, pressupunha que a oração e a celebração da Fé leva os crentes a fazer o bem em comunhão com os falecidos. Sempre que fazemos o bem, estamos a realizar possíveis recebidos dos outros. Como sabemos, sempre que fazemos o bem estamos a humanizarmo-nos e a inscrever possibilidades de humanização naqueles que se cruzam connosco na vida. Estamos também a superar ritmos negativos que os falecidos possam ter deixado na história em consequência das suas recusas de amor.
Além disso, ao fazer o bem estamos a dizer sim aos apelos que o Espírito Santo provoca no interior da nossa consciência. Com efeito, sempre que fazemos o bem já estamos a dizer sim aos apelos que o Espírito Santo faz do interior da nossa consciência. Como vemos, o bem que fazemos tem alcance universal.
É factor de comunhão amorosa tanto com os vivos como com os defuntos. Os cristãos proclamam o Reino Deus que é a comunhão universal dos Santos cujo coração é a Santíssima Trindade. Só o crente pode compreender o alcance universal da comunhão dos santos. Esta sabedoria adquire-se em contexto comunitário de oração, partilha da Palavra de Deus e celebrações da fé.
b) A Boa Nova da Eucaristia
1-Memória e Proclamação da Salvação de Deus
As celebrações sacramentais são linguagem do projecto salvador de Deus a acontecer na história. Isto quer dizer que explicitam o dom da salvação de Deus realizado em Cristo e a acontecer nas diversas situações da vida. Cada sacramento aponta para o acontecimento salvador realizado em Jesus Cristo e a concretizar-se pela acção do Espírito Santo no concreto das várias situações da vida.
A Eucaristia fala essencialmente da comunhão do Reino. Cristo é o anfitrião que convida para o Banquete da Comunhão Universal. Na Festa da Vida Eterna todos têm o essencial e ninguém está preocupado com os excedentes. Tudo circula. Na Comunhão do Reino de Deus cada pessoa é um ponto de encontro, partilha, diálogo e reciprocidade amorosa. O Espírito Santo é o princípio que anima as relações amorosas e optimiza os vínculos familiares da comunhão universal humano-divina.
A Eucaristia está directamente ligada com o acontecimento de Cristo. É o memorial da Ceia do Senhor. Na Eucaristia, a comunidade proclama o amor incondicional de Jesus Cristo que foi fiel até à morte. Foi esta a razão pela qual Deus o ressuscitou, pois não pode permanecer na morte quem gasta a sua vida pelo amor.
A eucaristia, à luz do Novo Testamento, é uma refeição e um memorial que antecipa o banquete da Festa do Reino de Deus. Não se trata, portanto de um culto sacrificial fundamentado na morte de Jesus Cristo, a vítima que torna Deus favorável para com o homem pecador. Na verdade o que agradou a Deus não foi a morte violenta de Jesus, mas sim a sua fidelidade incondicional.
Como sabemos, os pais humanos têm a capacidade de perdoar sem exigir a morte violenta dos filhos. Os evangelhos dizem que o coração de Deus Pai é muito melhor do que o coração dos pais humanos: “Ora bem, se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem” (Mt 7, 11).
Na verdade, Deus não precisa do sofrimento humano para ser generoso para a Humanidade. O que agradou a Deus foi a generosidade e fidelidade incondicional de Jesus à missão que o Pai lhe confiou. Um dos aspectos desta missão era a reconciliação da Humanidade com Deus (2 Cor 5, 17-19).Outro aspecto fundamental da missão que Deus confiou ao seu Filho foi a edificação da Família de Deus, a qual não assenta nos laços do sangue mas sim nos laços do Espírito Santo. Ainda que me matem, dizia Jesus ao Pai, não deixarei de ser fiel à vontade do meu Pai. “Desci do Céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou” (Jo 6, 38). Ou então: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar o seu plano” (Jo 4, 34). As opções, as atitudes e escolhas de Jesus são uma afirmação incondicional de fidelidade: Ainda que me maltratem, não te negarei. Mesmo que me persigam não deixarei de anunciar o teu plano salvador.
A eucaristia é a memória deste Jesus que anunciou, corajosamente o plano salvador de Deus. Perseguiram-no e não deixou de a Palavra do pai. Mataram-no e não abandonou a missão que o Pai lhe confiara. Foi esta fidelidade incondicional que agradou a Deus e não a morte violenta que sofreu, pois esta foi um pecado. Como sabemos, a injustiça e o pecado nunca agradam a Deus.
A Eucaristia é memória do melhor que um homem pode realizar: dar a vida pela causa de Deus e dos irmãos. Como memória do Jesus que se fez dom total, a Eucaristia alerta para o facto de que ninguém pode ser feliz sem estar disposto a fazer algo pela felicidade dos outros. Por outras palavras, não é possível atingir a plenitude da vida imortal sem gastar a vida mortal pelo amor.
Na Eucaristia Jesus identificou-se com o pão partido e distribuído. Isto quer dizer o alimento da nossa Vida Nova é o Espírito do Senhor ressuscitado que nos alimenta e fortalece. A partilha, a fidelidade, o dom de si e o acolhimento dos irmãos são condições fundamentais para a comunhão agápico-eucarística do Reino de Deus.
A Eucaristia é, portanto, a memória de Cristo e proclamação da força da salvação a acontecerem nós pelo Espírito que o Senhor ressuscitado nos comunica. A comunhão com Cristo, no Espírito Santo, não acontece magicamente pelo simples facto de comermos o pão consagrado. A comunhão com Cristo ressuscitado passa pela linguagem do pão e do vinho a circular. O encontro com Cristo passa pela capacidade de eleger o outro como próximo.
O contexto adequado para a celebração da Eucaristia é a comunidade cristã. Como vemos, a memória, na Eucaristia, é uma interpelação profética. Recorda um acontecimento passado que é fermento de um mundo novo e nos interpela no sentido de nos empenharmos na tarefa da Nova Aliança inaugurada por Jesus. Comungar com o Jesus que se recorda na Eucaristia, portanto, é decidir-se a fazer escolhas semelhantes às Suas.
Por outras palavras, a Eucaristia é um memorial que nos insere num projecto em marcha na história. Ninguém se recorda, pessoalmente, de Cristo, pois ninguém o conheceu enquanto viveu na história. Só o Espírito Santo conheceu plenamente os compromissos históricos, pois foi ele que os inspirou. Agora, na Eucaristia, é este mesmo Espírito Santo que nos convida a continuar a sua missão.
São Paulo diz que ninguém é capaz de saber quem é o Senhor a não ser pelo Espírito Santo (1Cor 12, 3). A Eucaristia celebrada em contexto comunitário é, pois, uma memória viva de Jesus Cristo: “Fazei isto em minha memória” (Lc 22, 19). A memória de Cristo vivida pela comunidade animada pelo Espírito Santo é compreensão e proclamação do ser e do agir de Jesus Cristo.
Por outras palavras, o Espírito Santo é a testemunha que proclama no coração dos crentes o ser de Jesus ressuscitado e a sua força salvadora a actuar no mundo. A Eucaristia é um contexto privilegiado no qual os crentes são capacitados pelo Espírito Santo para anunciarem aos homens o projecto da Comunhão Universal do reino de Deus. Trata-se de uma memória com horizontes de futuro, isto é, do que falta à Humanidade para ser uma Comunhão Universal de irmãos e filhos do mesmo Deus Pai.
Celebrada com estes horizontes e na abertura à dinâmica do Espírito Santo, a Eucaristia é um fermento que faz levedar, através dos crentes, o mundo novo que Deus sonhou para a Humanidade. Celebrada e vivida na dinâmica do Espírito de Cristo ressuscitado, a Eucaristia é um alimento que gera crentes adultos na fé. Ao mesmo tempo é alfobre de profetas que anunciam o Reino de Deus e denunciam as forças tenebrosas que se opõem à emergência da Nova Humanidade.
Segundo o evangelho de João é exactamente isto que Jesus diz aos discípulos após a Eucaristia: “Quando vier o Espírito da Verdade, guiar-vos-á para a verdade total. Não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido (no diálogo entre o Pai e o Filho). Ele anunciar-vos-á o que há-de vir e glorificar-me-á, pois há-de receber do que é Meu para vo-lo anunciar” (Jo 16, 13-14). A redução da Eucaristia a um culto sacrificial matou esta dinâmica da Eucaristia e fez dos cristãos consumidores e cultos e sacrifícios para salvar as almas dos defuntos.
2- A Presença Real de Cristo na Eucaristia
2.1- A Presença é Relacional
Enquanto celebrou a ceia pascal com os discípulos, Jesus estava presente de modo relacional, comunicando-lhes a Palavra. Ao mandá-los repetir a Ceia Pascal, Jesus estava convencido de que a morte que se avizinhava o ia reduzir ao silêncio.
O mandato da repetição da Eucaristia, é a prova de que Jesus estava seguro de que Deus o ia ressuscitar na sua missão messiânica. Quando Jesus se identificou com o pão e o vinho não pretendeu realizar uma operação metafísica de mudança de essências ou substâncias. Pelo contrário, Jesus quis exprimir a maneira como continuaria a estar com os discípulos, mesmo após a sua morte. Por outras palavras, ao pronunciar as palavras da consagração, Jesus não saltou do lugar onde estava para dentro do pão e do cálice.
O pão e o vinho a circular por todos corporizavam algo profundamente significativo para os discípulos, isto é, a comunhão vital com Cristo mediante o Espírito Santo. Isto era expresso em hebraico por comunhão na “basar-nefesh”, isto é, comunhão orgânica que é fonte de vida e fecundidade, como diz o evangelho de São João: “Permanecei em mim que eu permanecerei em vós. Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dará muito fruto, pois sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 4-5).
O evangelho de São João, como vemos, exprime de maneira profundamente feliz o sentido da Eucaristia como sacramento da união orgânica a Cristo Salvador. O termo bíblico “basar”, isto é, carne, não corresponde ao conceito grego de “sarx” que é o nosso conceito de carne. “Basar”, no mundo bíblico, significa o homem como interioridade estruturalmente relacional e genealogicamente ligada a todos os homens.
A humanidade forma um todo orgânico e genealogicamente. É este o sentido das genealogias bíblicas. Lucas insere Jesus no todo da humanidade. Elabora uma genealogia que vai até Adão, a fim de situar Jesus na comunhão orgânica da Humanidade inteira (Lc 3, 23-38). A genealogia de Mateus vai até Abraão para situar Jesus na comunhão orgânica do povo bíblico (Mt 1, 1-17). O varão, sozinho, não está completo. Ele faz uma unidade orgânica com a mulher. Os dois fazem uma unidade orgânica, isto é, uma só carne (Gn 2, 24). No mundo bíblico, “basar-nefesh” significa comunhão no Espírito de Deus. Nefesh significa o homem como interioridade animada, dinamizada e modelada pelo sopro vital de Deus (Gen 2, 7).
São Paulo passa do pão e do vinho da Eucaristia para a comunidade Corpo de Cristo é a comunidade que, por isso, come do mesmo pão partilhado (1Cor 10, 16-17). Cada crente é um membro deste Corpo (1Cor 12, 27). O princípio de incorporação e interacção é o Espírito Santo, por isso, diz São Paulo, fomos baptizados num mesmo Espírito a fim de formarmos um só Corpo (1Cor 12, 13).
A grande dificuldade aconteceu na tradução do termo “basar” para grego. Para o mundo grego, a “sarx” são tecidos e células. Comer a carne de Cristo, segundo este conceito não podia deixar de ter uma conotação antropofágica. É evidente que não era nada disto que Cristo tinha na Sua mente.
O evangelho de São João acentua que a presença real de Cristo é relacional e não tem nada de biológico. O Cristo da Eucaristia é o Senhor ressuscitado, diz o quarto evangelho e nada tem de biológico (Jo 6, 62-63). A biologização da ressurreição da carne da carne de Cristo na Eucaristia é produto da cultura grega.
São Paulo ao falar do corpo de Cristo ressuscitado insiste em que se trata de um corpo espiritual, não biológico (1Cor 15, 42-47). Termina o seu discurso sobre o corpo espiritual de Cristo ressuscitado dizendo que a carne e o sangue, como realidades biológicas, não podem tomar parte no Reino de Deus (1Cor 15, 50). Só o que nasce do Espírito Santo é pneumático, diz o evangelho de São João. Por isso para tomar parte na comunhão orgânica com Cristo é preciso nascer de novo pelo Espírito Santo (Jo 3, 6).
Quando a teologia medieval afirma que o pão e o vinho consagrados contêm o corpo que nasceu de Maria e morreu na cruz está a Biologisar a fé. A presença real de Jesus, na Eucaristia, é relacional e acontece no interior dos crentes mediante o Espírito Santo. O pão da Eucaristia corporiza, isto é, torna-se mediação de encontro com o Senhor ressuscitado.
O Espírito Santo é uma pessoa que tem o jeito de ser princípio animador de relações e vínculo de comunhão orgânica. Por outras palavras, o Espírito Santo é o coração que anima o encontro e a comunhão com o Senhor ressuscitado. São Paulo insiste em que não pode haver comunhão com Cristo ressuscitado a não ser pelo Espírito Santo (1 Cor 12, 3). O Espírito Santo, diz o Apóstolo, é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5).
Como vemos, a presença real de Jesus, na Eucaristia, é relacional. Além disso, a densidade desta comunhão não é separada da comunhão com os irmãos. A presença de Cristo na Eucaristia não significa um retorno ao estado de pré-ressuscitado. A presença de Cristo na Eucaristia não está encerrada nas coordenadas da biologia, nem está encerrada nas coordenadas da espácio-temporalidade. O Senhor ressuscitado, como todos os ressuscitados, está nas coordenadas da plenitude com Deus: equidistância e omnipresença. Eis a razão pela qual o Senhor ressuscitado pode estar presente a todas as comunidades cristãs dispersas nos diversos quadrantes da terra.
Quando Jesus, nas vésperas da sua morte, celebrou a Eucaristia com os discípulos, só podia haver aquela Eucaristia, pois Jesus ainda não estava nas coordenadas da Universalidade. Após a ressurreição de Jesus já podia haver milhares de Eucaristias ao mesmo tempo, pois o Senhor já está nas coordenadas da Universalidade e da equidistância. Basta que dói ou três se reúnam em nome do Senhor, a fim de o Espírito Santo ter condições para interagir em contexto comunitário. Por outras palavras, o corpo eucarístico de Cristo, precisa do corpo comunitário de Jesus, espaço adequado para acção do Espírito Santo. A comunhão de dois ou mais reunidos em nome do Senhor é o espaço adequado para a acção do Espírito Santo.
A presença real de Jesus, na celebração da Eucaristia acontece, pois, em dinâmica relacional. É mediatizada pela comunidade e corporizada pelo pão e o vinho. O Senhor ressuscitado já transcendeu as coordenadas exteriores de ordem biológica, psíquica, rácica, cultural e espácio-temporal. O ser exterior, individual, é a matriz em cujo seio emerge o ser interior, isto é, pessoal-espiritual.
Pela morte o ser interior liberta-se da matriz em cujo seio emergiu, isto é, do ser exterior. O nosso ser interior, mediante o acontecimento da morte, liberta-se das limitações do nosso ser interior como o pintainho se liberta das coordenadas limitativas do ovo. Após a morte, o homem fica nas coordenadas da plenitude: equidistância e omnipresença em tudo e em todos. São estas as coordenadas da comunhão do Reino de Deus.
É exactamente por esta razão que, após a morte, Cristo se torna o medianeiro universal da salvação, isto é, o portador do Espírito Santo para os homens (Jo 7, 37-39). Enquanto Jesus não fosse, diz o evangelho de São João, o Espírito não viria: “Digo-vos a verdade: é conveniente para vós que Eu vá. Se eu não for, o Consolador não virá a vós. Quando eu for, enviar-vo-lo-ei” (Jo 16, 7).
Como disse acima, na noite da ceia pascal, não podia haver mais que aquela Eucaristia, devido ao facto de Jesus ainda não estar nas coordenadas da universalidade e equidistância. Após a ressurreição, pelo contrário, começa a ser reconhecido em diversas experiências e em diversos sítios diferentes (Lc 24, 13-35).
O corpo é mediação de encontro. Mas os encontros profundos e humanizantes transcendem sempre a corporeidade. Até o encontro amoroso de tipo sexual transcende a corporeidade. De facto, sem esta dimensão da interioridade amorosa a sexualidade torna-se frustrante. Por outras palavras, é no interior de si que o marido encontra a esposa e esta o marido. As pulsões, as manifestações de ternura e todas as expressões corporais são mediação para se operar este encontro. Cristo ressuscitado não pode ser objectivado e limitado a um frio espaço físico.
2.2- Dinamismo da Presença Real
Cristo ressuscitado é o coração da dinâmica universal da Humanidade com Deus. Fazendo parte da interioridade máxima do Universo com Deus e os ressuscitados, Jesus Cristo não precisa de se deslocar para estar presente a tudo e a todos. Além disso, a sua presença aos seres humanos acontece de maneira interactiva.
O princípio animador desta interacção amorosa da presença do Cristo Eucarístico connosco, é o Espírito Santo, tal como ele prometeu: “Mas o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome ensinar-vos-à tudo e há-de recordar-vos tudo o que vos disse” (Jo 14, 26). A espiritualidade eucarística tradicional deformou esta dinâmica da presença real de Jesus na Eucaristia. Basta recordar as referências ao prisioneiro solitário do sacrário! Estas afirmações pretendiam difundir a devoção eucarística dos fiéis mas acabaram por deformar a verdade da Eucaristia.
É mais importante proclamar que Cristo ressuscitado é o coração da comunhão humano-divina do Reino de Deus. Está no Céu à direita do Pai, pois ele é o único medianeiro entre Deus e os homens (1Tim 2, 5). Pela Encarnação, o Espírito Santo cria uma interacção directa e recíproca entre a interioridade humana de Jesus e a interioridade da segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
O Logos não teve de Se deslocar para a Encarnação acontecer. Ele está omnipresente, pois está em coordenadas de equidistância: a interioridade máxima de todas as coisas. A interioridade do Logos e a interioridade humana de Jesus formam um só Cristo, não por andarem colados, mas porque estão em permanente interacção e reciprocidade. É assim também que o Pai e o Filho fazem um (Jo 10, 30).
Como homem, Jesus esteve sempre interiormente em sintonia com o Logos mediante o Espírito Santo. No momento da Sua morte-ressurreição, torna-se omnipresente à comunhão humana universal. A humanidade de Jesus é, de facto, a mediação de comunicação ou difusão do Espírito. Com efeito, a nossa comunhão com a Santíssima Trindade é mediatizada pela humanidade de Jesus.
É exactamente isto o que significa fazer um com Cristo mediante a comunhão no Espírito: “Não sabeis que aquele que se junta a uma prostituta forma com ela uma só carne? Porque os dois serão uma só carne, como diz a Escritura. Aquele porém que se une ao Senhor ressuscitado constitui um só Espírito com Ele” (1Cor 6, 16-17).
Como vemos, Paulo explicita de maneira feliz o significado da comunhão com Cristo. É exactamente esta a comunhão com Cristo corporizada na Eucaristia. É esta também a perspectiva de São João no relato da oração de Jesus após a Eucaristia: “Para que todos sejam só um, como tu, Pai, estás em mim e eu em Ti. Faz que também eles estejam em Nós, a fim de o mundo acreditar que Me enviaste” (Jo 17, 21).
A comunhão humana com Jesus Cristo, expressa de modo singular na Eucaristia, ultrapassa a linguagem sacramental. Os sacramentos são isso mesmo: sinal, linguagem, proclamação de uma realidade que os transcende. No Reino de Deus, não existem sacramentos, pois as pessoas humanas já estão em posse da realidade que os sacramentos explicitam. Mediante a linguagem sacramental, o crente saboreia, portanto, a presença do Senhor ressuscitado no coração da comunhão humana universal.
A Eucaristia não é um modo mágico de os cristãos terem a exclusividade do encontro com Cristo ressuscitado. Na Eucaristia, vivem e celebram este encontro em densidade teologal ou revelacional, a fim de ficarem aptos a anunciar a comunhão de toda a Humanidade com Deus através de Jesus Cristo e pela acção maternal do Espírito Santo. Os cristãos não têm o monopólio da comunhão com Deus. Mas são a mediação da revelação do plano de Deus para o mundo.
Por outras palavras, o pão e o vinho consagrados são o corpo de Cristo para a comunidade dos crentes, tal como a comunidade é corpo de Cristo para o mundo. Ser corpo do Senhor, como vimos, significa ser mediação de encontro com e comunhão com Cristo ressuscitado.
3-A reserva eucarística
3.1-A Reserva Como Mediação de Encontro
A reserva da Eucaristia prolonga a linguagem da celebração sacramental. É o sinal de que a comunhão e o encontro com o Senhor ressuscitado também são para os que não puderam estar na celebração sacramental. A primeira função da reserva é ser mediação de comunhão com Cristo para os ausentes, particularmente os doentes.
O portador da reserva não deve entender-se como o que leva Cristo aos doentes. O Senhor já lá está! Pelo contrário, o portador da reserva é uma mediação do Espírito Santo para que a dinâmica celebrativa da Eucaristia aconteça também para os ausentes. A sua missão não é apenas levar a hóstia para que o doente comungue Jesus de modo mágico. O ministro que leva a comunhão aos doentes deve ser o portador da Palavra que foi proclamada na celebração. Na medida do possível, o ministro deve ajudar o doente a reviver o que a comunidade experimentou na celebração da Eucaristia.
Deste modo, os doentes podem sentir que estavam presentes e tinham lugar na celebração realizada. A comunidade envia um mensageiro para que este leve uma síntese do que foi vivido na celebração comunitária.
3.2-O culto da reserva
Não existem duas Eucaristias, isto é, a celebração sacramental e a reserva. Existe uma só Eucaristia, a qual é uma celebração comunitária da Fé. A reserva, no entanto, tem a missão de prolongar o discurso da celebração Eucarística. Eis a razão pela qual a reserva merece exactamente o mesmo respeito que merece a celebração litúrgica.
Entre uma celebração e outra, a reserva pode exercer, para os crentes, uma mediação de reencontro com o Senhor reencontrado na celebração eucarística. Face à reserva, o crente pode reviver a dinâmica vivida e experimentada na celebração. Este encontro, no entanto, acontece no íntimo do crente, não no exterior.
Por outras palavras, a reserva é corpo de Cristo, isto é, mediação para que o crente se encontre com Cristo no seu coração. O Espírito Santo é capaz de compor sinfonias maravilhosas no interior do crente que se situa, em atitude de oração face à reserva da Eucaristia. As principais notas musicais de que o Espírito dispõe para compor essa sinfonia são as adquiridas na própria celebração eucarística.
Com efeito, mediante o Espírito Santo, o crente pode experimentar um encontro maravilhoso com Cristo ressuscitado diante da reserva. Quando a devoção é iluminada por uma fé esclarecida torna-se conhecimento, apaixonamento, confronto e imitação da realidade que se conhece. Quando a devoção caminha por si, sem a fé teologal, pode cair nas atitudes e distorções mais ridículas.
É importante ter presente que o encontro com Cristo mediante a reserva da Eucaristia não acontece dentro do sacrário. É no mais íntimo do coração do crente que acontece este encontro, graças à acção do Espírito Santo que é a ternura maternal de Deus derramada nos nossos corações (cf. Rm 5, 5).
Cristo ressuscitado já transcendeu as coordenadas espácio-temporais, pelo que já não pode estar delimitado a qualquer espaço ou lugar sagrado. A única porta aberta para a transcendência é a nossa interioridade que, pelo facto de ser pessoal, já transcende as estruturas do Cosmos.
Como sabemos, Deus é pessoas. Do mesmo modo, o homem está a realizar-se como pessoa. A pessoa é, pois, um ser com interioridade livre, consciente, responsável, única, original, irrepetível e capaz de comunhão amorosa. Esta interioridade a que a Bíblia chama o coração é realmente o ponto de encontro amoroso com as pessoas humanas e as divinas.
As pessoas só com seres pessoais podem entrar em reciprocidade de comunhão amorosa. A reserva da Eucaristia não é uma maneira mágica de reter Cristo na espácio-temporalidade. Ele está para sempre nas coordenadas de Deus que são interioridade máxima equidistante e omnipresente a tudo e a todos.
As palavras da consagração não realizam uma reacção físico-química no sentido de alterar os átomos do pão e do vinho. É importante ter presente que a reserva não constitui o núcleo do Evangelho da Eucaristia. O Centro da mensagem eucarística é a comunhão de Deus com a Humanidade a acontecer na marcha da história por Jesus Cristo que é o único medianeiro entre Deus e o Homem (1 Tm 2, 5).
O princípio animador desta comunhão é o Espírito Santo que Cristo, ao ressuscitar, comunicou de modo intrínseco à Humanidade (Jo 7, 37-39). É o Espírito Santo que, no coração das pessoas, edifica de modo gradual e progressivo o Reino de Deus a constituir-se na história e a transcendê-la constantemente.
Mais que objecto estático de culto, a reserva é uma interpelação a continuar a dinâmica da Eucaristia no dia a dia da vida mediante atitudes semelhantes às atitudes de Jesus. Por outras palavras, a reserva da Eucaristia explicita a presença de Cristo a acontecer na marcha da humanização das pessoas que optam pelo amor. Esta leitura, no entanto, é percebida apenas pelos crentes. Por isso eles são o corpo de Cristo, isto é, mediação para que o mundo se possa encontrar com Cristo ressuscitado.
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