a) A Eucaristia, Sacramento da Nova Humanidade
b) A Eucaristia Como Sacramento da Graça
c) A Eucaristia Como Sacramento da Água Viva
d) Eucaristia e a Árvore da Vida
1) A árvore que dá a Vida Eterna
2) A Vida Nova em Cristo
e) Eucaristia e Nova Aliança
f) A Eucaristia Como Memória
a) A Eucaristia, Sacramento da Nova Humanidade
O sacramento da Eucaristia explicita e corporiza a Nova condição da Humanidade unida a Cristo e incorporada na comunhão da Santíssima Trindade. A comunidade que celebra forma o corpo de Cristo. Cada membro da comunidade é, portanto, um membro do Corpo de Cristo. Eis a razão pala qual todos comem do mesmo pão, acrescenta São Paulo (1 Cor 12, 27).
A Eucaristia explicita a comunicação da Vida Nova que nos vem de Cristo Ressuscitado. O corpo Cristo que nos alimenta e comunica a vida Nova é o corpo de Cristo ressuscitado, não o corpo biológico do Cristo histórico. A Carne e o Sangue de Cristo ressuscitado, diz o evangelho de São João, é o Espírito Santo (Jo 6, 62-63).
É esta a carne e o sangue que nos liberta da morte e nos confere a vida Eterna (Jo 6, 54-56). Jesus venceu a morte no próprio acto de morrer. No momento em que morreu o último elemento do que em Cristo era mortal, aquilo que nele era imortal está totalmente glorificado e assumido na comunhão das Santíssima Trindade.
Ao ressuscitar Cristo difundiu também para nós a vitória sobre a morte: O Espírito Santo. A Carta aos Hebreus diz que Cristo, ao ressuscitar, se tornou o nosso Sumo-Sacerdote, isto é, o medianeiro da acção salvadora de Deus a acontecer no nosso coração (Heb 7, 11-16). No nosso interior, o Espírito Santo é o penhor e a garantia da vitória da vida sobre a morte em cada pessoa humana. O Espírito Santo que ressuscitou Cristo, diz São Paulo, é quem nos ressuscita também a nós.
É esta a Vida Nova em Cristo! Eis o que a Segunda Carta aos Coríntios diz a este respeito: “Se alguém está em Cristo é uma Nova Criação. Passou o que era velho. Tudo isto nos vem de Deus que nos reconciliou consigo em Cristo, não levando mais em conta os pecados dos homens (2 Cor 5, 17-19).
Pela consagração, o pão eucarístico torna-se o corpo de Cristo, isto é, mediação de encontro com o Senhor. Como sabemos, o nosso corpo é mediação de encontro com os outros. Podemos dizer que o pão e o vinho consagrados estão para a comunidade como a comunidade está para o mundo.
O pão e o vinho consagrados são mediação de encontro com Cristo para os crentes. Para os de fora, o pão e o vinho consagrados não significam nada. Os não crentes só podem encontrar-se sacramentalmente com Cristo através dos membros da comunidade, os quais são corpo de Cristo e, portanto, mediação de encontro com o Senhor.
Este encontro, no entanto, acontece sempre no interior das pessoas que comunicam com os crentes. Evangelizar não significa levar Cristo aos outros. Quando o evangelizador chega junto do não crente para o evangelizar, Cristo ressuscitado já está no seu coração. O papel do evangelizador é anunciar a Palavra e testemunhar a sua Fé. Fazendo isto, está a possibilitar aos não crentes um encontro com Cristo ressuscitado que, no seu íntimo, está a actuar pela acção do Espírito Santo
São Pedro, na casa de Cornélio ficou estupefacto ao verificar que, mediante o anúncio da Palavra, o Espírito Santo começou a actuar no coração dos não crentes: “Pedro estava ainda a falar, quando o Espírito desceu sobre todos os que ouviam a Palavra (…). Pedro, então, declarou: “Poderá alguém recusar a água do baptismo aos que receberam o Espírito Santo como nós? E ordenou que fosse baptizados” (Act 10, 44-48). A reserva da Eucaristia continua a dinâmica de encontro e comunhão com Cristo. Esta comunhão e encontro, no entanto, dão-se sempre no coração dos crentes, nunca fora.
b) A Eucaristia como Sacramento da Graça
A graça é a vida nova que emerge no coração da pessoa humana a partir de uma relação amorosa com Deus. Esta vida nova significa a vida humana optimizada graças à interacção que acontece entre o pólo divino e o pólo humano. Nesta relação humano-divina, Deus surge para o Homem como dom incondicional, isto é, graça total. Por seu lado o Homem surge para Deus como ser engraçado, isto é, capaz de acolher o dom gratuito de Deus e de responder em atitude de reciprocidade.
Por outras palavras, a pessoa humana é capaz de receber a gratuidade de Deus e responder agradecidamente. A gratidão perante o dom de Deus faz parte da relação da graça, pois oferece condições a Deus para se dar de novo e com matizes mais ricos devido à transformação que o dom de Deus provoca no ser humano quando este o acolhe.
A doação de Deus é infinitamente perfeita e totalmente incondicional. Mas a aceitação da pessoa humana é limitada e condicionada pela fragilidade, pelo pecado e pelas limitações humanas. Deus dá-se sempre em clima de aliança, isto é, de reciprocidade. Isto quer dizer que Deus se dá de modo adequado a cada pessoa. A aceitação por parte da pessoa condiciona ou optimiza o dom de Deus. Como sabemos, o amor propõe-se, nunca se impõe.
A graça, portanto, é uma vida nova. Por si, o ser humano só pode viver as relações de comunhão a nível humano e humanizante. Mas pelo mistério da Encarnação a pessoa humana pode relacionar-se de modo orgânico com a própria divindade potenciando, deste modo, a sua própria plenitude e felicidade.
Como sabemos, a plenitude da pessoa não está na pessoa isolada, mas na pessoa em relações de comunhão. Reduzida a si, a pessoa está em estado de perdição ou malogro total. Por outras palavras, a pessoa só se encontra e possui plenamente na comunhão com outras pessoas. Quando estas pessoas são divinas, então a plenitude da pessoa é optimizada. Vai além da mera medida humana e torna-se humano-divina.
A Divindade é constituída por três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. A Humanidade é constituída por muitos biliões de pessoas. A plenitude das pessoas divinas encontra-se nessa comunhão infinitamente perfeita do pai, com o Filho no Espírito Santo. Apesar de se tratar de uma comunhão de três pessoas, Deus é apenas um. A plenitude é a comunhão Trinitária.
Deus sonhou para a Humanidade uma plenitude semelhante à da própria divindade. Apesar de as pessoas humanas não serem iguais às divinas são-lhe, no entanto, proporcionais. Por outras palavras, as pessoas humanas são capazes de em reciprocidade amorosa com as pessoas divinas embora, embora a capacidade de acolher e agradecer das pessoas humanas não chegarem à densidade e perfeição infinita das pessoas divinas.
A expressão máxima da doação incondicional e gratuita de Deus aconteceu no mistério da Encarnação. A Eucaristia corporiza a dinâmica da Graça cuja fonte é Jesus Cristo. Ele é a cepa da videira cujos ramos somos nós. Os ramos só têm vida e são fecundos se estiverem unidos à cepa. Sem Cristo somos ramos estéreis que não têm garantia de vida eterna (Jo 15, 4-5). A seiva que vem da videira para os ramos é o Espírito Santo.
Eis a razão pela qual São Paulo diz que todos os que são movidos pelo Espírito Santo são filhos e herdeiros de Deus Pai e são co-herdeiros com Cristo (Rm 8, 14-15). Noutra passagem da mesma carta, São Paulo diz que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5).
c) A Eucaristia Como Sacramento da Água Viva
A Eucaristia é um sacramento. Os sacramentos são celebrações da Fé que corporizam, visibilizam e explicitam uma realidade que os transcende. Os sacramentos não são a realidade que explicitam, mas a sua corporização. Isto quer dizer que os sacramentos são uma mediação privilegiada de encontro com a realidade que proclamam.
No Reino de Deus já não há sacramentos, mas apenas a realidade que eles explicitam. No Céu temos todos acesso à realidade de Deus que é a plenitude da nossa salvação em Jesus Cristo. A salvação consiste numa vida nova que deriva do facto de a pessoa humana ser assumida e incorporada na Família da Santíssima Trindade. O princípio animador desta relação familiar é o Espírito Santo, princípio animador de relações e vínculo de comunhão orgânica. São Paulo diz que é pelo Espírito que somos incorporados na Família de Deus (Rm 8, 14-16; Ga 4, 4-7).
Jesus disse à Samaritana que o dom da Salvação acontece no interior da pessoa, graças à acção da Água Viva que ele tem para dar. Isto significa que Jesus é o portador da plenitude da salvação que acontece pelo dom do Espírito Santo: “Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é aquele que te está a pedir água, tu é que lhe pedirias e ele dar-te-ia Água Viva” (Jo 4, 10). O profeta Jeremias acusa o povo infiel por este voltar as costas à fonte da Água Viva que é o Senhor Deus. Para o Evangelho de João, a Água viva é o Espírito Santo, o grande dom de Cristo ressuscitado (Jo 7, 39).
A Carta aos Romanos diz que todos os que se deixam conduzir pelo Espírito Santo são filhos e herdeiros de Deus: “Todos os que se deixam guiar pelo Espírito Santo são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para andardes com medo, mas sim um Espírito de adopção graças ao qual clamamos “Abba”, papá. É o próprio Espírito que dá testemunho no nosso íntimo de que somos filhos de Deus. Se somos filhos, somos igualmente herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (Rm 8, 14-17).
São Paulo associa o Espírito Santo à Água da vida nova que nos vem de Cristo ressuscitado. Esta Água Vivificante é explicitada na água do baptismo: “Todos nós fomos baptizados num só Espírito, a fim de formarmos um só corpo, tanto judeus como gregos, escravos ou livres. Todos bebemos de um mesmo Espírito” (1 Cor 12, 13).
É pelo Espírito Santo que formamos essa união orgânica misteriosa que faz de nós membros de Jesus Ressuscitado. Referindo-se à Eucaristia, o evangelho de João diz que a carne e o sangue de Jesus Cristo ressuscitado é, no nosso íntimo, o alimento da vida eterna. Depois explicita melhor esta verdade afirmando que a carne e o sangue de Cristo é o dom do Espírito que nos é dado pela ressurreição de Jesus Cristo” (Jo 6, 62-63).
Em relação às dúvidas da Samaritana a propósito da Água Viva, Jesus diz-lhe que á Água Viva não é como a água do poço de Jacob, isto é, a antiga Aliança. A Água do poço de Jacob precisa de um balde (a multiplicidade de normas associadas à circuncisão). Além disso, a água do poço de Jacob, não mata a sede de modo definitivo: “Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede. Mas aquele que beber da Água que eu lhe der, nunca mais terá sede, pois esta Água converter-se-à nele em Fonte de água que dá a Vida eterna” (Jo 4, 13-14).
Esta Água como diz o evangelho de João no capítulo sétimo é o Espírito Santo que seria difundido no momento da ressurreição de Cristo: “No último dia, o mais solene da festa, Jesus, de pé, bradou: “Se alguém tem sede venha a mim. Quem crê em mim que sacie a sua sede! Como diz a Escritura, hão-de correr do seu coração rios de Água Viva. Jesus disse isto referindo-se ao Espírito Santo que iam receber os que acreditassem nele. Com efeito, Jesus ainda não tinha vindo, pois Jesus ainda não tinha sido glorificado” (Jo 7, 37-39).
No relato das Bodas de Caná, a água dos ritos de purificação é transformada por Jesus em vinho de qualidade superior (Jo 2, 6-10). A superioridade deste vinho significa a Nova Aliança, a qual é superior à Antiga, pois assenta no Espírito Santo e, portanto, é geradora de vida ao contrário da letra da antiga que é geradora de morte: “Cristo é quem nos capacita para sermos ministros de uma Nova Aliança, não da letra, mas do Espírito. Com efeito, a letra mata, mas o Espírito dá vida” (2 Cor 3, 6).
Os que bebem a Água Viva tornam-se templos do Espírito Santo, a fonte geradora de vida eterna no nosso coração: “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (1 Cor 2, 16). Esta Nova Aliança assente no Espírito Santo e não na letra da Lei foi profetizada como significando a plenitude dos tempos: “Dias virão em que firmarei uma Nova Aliança com a casa de Israel e a casa de Judá (…). Esta será a Aliança que estabelecerei depois destes dias com a casa de Israel, oráculo do Senhor: Imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração. Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo (…). Perdoarei a todos as suas faltas e não mais me lembrarei dos seus pecados” (Jer 31, 31-34).
A Nova aliança tem como sede o coração humano que, para a Bíblia significa o centro mais nobre da interioridade espiritual humana. O coração é o núcleo a partir do qual emergem as decisões na linha do amor e da comunhão. É no coração que acontece a Salvação da Nova Aliança, pois o coração é o ponto de encontro da pessoa Deus mediante o Espírito Santo.
Eis como o profeta Ezequiel descreve a dinâmica da Nova Aliança no coração do Homem: “Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um Espírito Novo: Arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei o meu Espírito no vosso íntimo, fazendo que sejais fiéis às minhas leis e preceitos” (Ez 36, 26-27). A Carta aos Efésios apela os crentes a não se embriagarem com vinho, mas a encher-se, pelo contrário, do Espírito Santo (Ef 5, 18). Com efeito, acrescenta a primeira Carta aos Coríntios, o Espírito Santo é a bebida da Nova Aliança (1 Cor 12,13).
Agora podemos compreender melhor as seguintes afirmações de Jesus no evangelho de João: “Se alguém tem sede venha a mim e beba” (Jo 7, 37). E ainda: “Aquele que beber da Água que eu lhe der nunca mais terá sede” (Jo 4, 14). O profeta Isaías, fala do Espírito Santo como sendo uma água que mata a sede e faz desabrochar a vida em abundância: “Vou derramar água sobre o que tem sede e fazer correr rios sobre a terra árida. Vou derramar o meu Espírito sobre a tua posteridade e a minha bênção sobre os teus descendentes. Estes crescerão como plantas junto das fontes e como salgueiros junto das águas correntes” (Is 44, 3-4).
São Paulo, vendo esta acção do Espírito a actuar diz que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5). Os Actos dos Apóstolos vêem no acontecimento do Pentecostes o cumprimento da profecia do profeta Joel. Face ao entusiasmo dos apóstolos, os judeus acusam-nos dizendo que estão bêbedos. Os Apóstolos respondem dizendo que a sua exultação é a realização do oráculo do profeta Joel: “Não, estes homens não estão embriagados como imaginais, pois apenas vamos na terceira hora do dia. Mas tudo isto é a realização do que disse o profeta Joel” (Act 2, 15-16).
O profeta Joel via os tempos messiânicos como a plenitude do grande dom do Espírito Santo sobre a Humanidade inteira: “Depois disto, derramarei o meu Espírito sobre toda a Humanidade. Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão e os vossos anciãos terão visões. Também derramarei o meu Espírito sobre os vossos servos e servas naqueles dias” (Jl 3, 1-2).
O Espírito Santo é o Espírito de Cristo ressuscitado. Nós estamos organicamente unidos a Cristo na medida em que possuímos o Espírito Santo em nós: “Vós não estais sob o domínio da carne (lei judaica), mas sob o domínio do Espírito, pressupondo que o Espírito de Deus está em vós. Mas os que não possuem o Espírito de Cristo não lhe pertencem (…). E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos está em vós, ele que ressuscitou Jesus também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 9-11).
Como Água Viva, o Espírito Santo fecunda o nosso coração, capacitando-nos para dar frutos de vida eterna: “Eis os frutos do Espírito Santo: Amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio” (Ga 5, 22-23). São Paulo faz apelo aos Gálatas a acolherem o Espírito Santo no seu coração e a viverem de acordo com este princípio de vida fecunda: “Se vivemos no Espírito, sigamos também o Espírito” (Ga 5, 25). A vida eterna brota da dinâmica do Espírito Santo em nós, diz São Paulo na Carta aos Gálatas: “Quem semear na carne, da carne colherá a corrupção. Mas quem semear no Espírito do Espírito Santo colherá a vida eterna” (Ga 6, 9).
Como nascente da Água Viva, Deus é a Fonte da Salvação. O profeta Isaías via os tempos messiânicos como a idade de oiro em que todos têm acesso às fontes da salvação: “Este é o Deus da minha Salvação; estou confiante e nada temo, pois a minha força e o meu canto. Ele é a minha Salvação. Cheios de alegria tirareis água das fontes da Salvação (Is 12, 2-3). Eis a dinâmica da vida eterna a actuar na história e a conduzir-nos para a plenitude do Reino de Deus.
d) Eucaristia e a Árvore da Vida
1) A Árvore que dá a Vida Eterna
“O Senhor Deus disse: ‘eis que o Homem, quanto ao conhecimento do bem e do mal, se tornou como um de nós. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da Árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre. Então, o Senhor Deus expulsou Adão do Jardim do Éden (…). Depois de ter expulsado o Homem colocou a oriente do jardim uns Querubins com uma espada flamejante, a fim de guardarem o caminho da Árvore da Vida” (Gn 3, 22-24).
De acordo com a linguagem simbólica do livro do Génesis, havia no centro do Paraíso duas árvores importantes: a árvore do conhecimento do bem e do mal e a Árvore da Vida. A seiva da árvore do conhecimento do bem e do mal é o egoísmo que gera os frutos mortais da arbitrariedade e do caprichoso.
Os que comem o fruto desta árvore descobrem que estão nus, pois entraram no caminho do malogro e do fracasso. Com efeito, as pessoas que se alimentam do caprichoso e da arbitrariedade, não chegam a atingir a maturidade que dá frutos de consciência amadurecida, liberdade comprometida e amor gerador de fraternidade e comunhão.
Por seu lado, a Árvore da Vida faz germinar a Vida Eterna no coração dos que comem os seus frutos. O fruto da Árvore da Vida é a fidelidade à Aliança de Deus. No coração dos que comem este fruto começa a circular a seiva fecunda da Árvore da Vida, isto é, o Espírito Santo. No capítulo sexto, o evangelho de João faz uma leitura da Eucaristia à luz da Arvore da Vida: “Quem como e a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu hei-de ressuscitá-lo no último dia” (Jo 6, 54). A carne e sangue de Jesus são o dinamismo vivo e vivificante de Cristo ressuscitado, isto é, o Espírito Santo: “Isto escandaliza-vos? E se virdes o Filho do Homem subir para onde estava antes? O Espírito é que dá vida. A carne não serve para nada. As palavras que vos disse são Espírito e Vida” (Jo 6, 62-63).
Ao comer o fruto da árvore proibida, Adão descobriu que estava nu, isto é, totalmente impotente para se realizar e ser feliz. As pessoas que comem o fruto da Árvore da Vida, pelo contrário, descobrem que estão revestidas com a veste da Salvação: “E vi descer do Céu, a Cidade Santa, a Nova Jerusalém, preparada, qual noiva vestida e adornada para o seu esposo” (Apc 21, 2).
Por ter sido criado à imagem de Deus, o ser humano tem um coração faminto de plenitude, pois está talhado para comer o fruto da Árvore da Vida. Mas como só pedia ser livre optando, tinha de haver uma alternativa no Paraíso. Por isso ao lado da Árvore da Vida, Deus colocou a Árvore do conhecimento do bem e do mal.
Qualquer das árvores estava ao perfeito alcance do homem. Esta simbologia do livro do Génesis exprime de modo magnífico o que significa o livre arbítrio, ou seja a capacidade psíquica de optar pelo bem ou pelo mal. O Senhor confiava no coração do Homem criado à imagem e semelhança da Divindade.
Mas o Homem cedeu à tentação e comeu o fruto errado. A tentação é sempre uma insinuação mental convidando o Homem a agir em sentido oposto à proposta de Deus. E eis que o Homem optou no sentido errado. Como consequência deste pecado, o Paraíso foi fechado, ficando fora do alcance de Adão. A Humanidade é introduzida por Adão no caminho do Malogro e do fracasso.
Como Deus é Amor infinito, não podia deixar de nos amar infinitamente. Por isso, através do mistério da Encarnação, o beijo divinizante de Deus à Humanidade, orientou de novo o Homem no sentido do projecto de Deus. E a salvação ficou ao nosso alcance. Na Sexta-feira Santa Jesus Cristo abriu o Paraíso e introduziu nele a Humanidade que o tinha precedido na história. Eis as palavras de Jesus para o Bom Ladrão: “Em verdade te digo: hoje mesmo estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).
Cristo é o rebento do tronco de Jessé e o renovo que brota das raízes deste tronco, a comunidade amorosa da Santíssima Trindade. De facto, Jesus Cristo não é apenas da raça dos homens. A sua realidade é humano-divina. Isto quer dizer que a raiz mais profunda do seu mistério é a própria comunhão da Trindade Divina (Jo 1, 12-14). Por isso, mediante o mistério da Ascensão, é incorporado na Família Divina, inserindo a Humanidade inteira nesta comunhão humano-divina.Em Jesus ressuscitado, portanto, passámos a fazer parte da Árvore da Vida, tornando-nos ramos ligados à cepa da Videira, Cristo, e às suas raízes que é a comunhão orgânica da Trindade Divina. Jesus abriu as portas do Paraíso à Humanidade e esta foi divinizada.
Deste modo podemos concluir que o relato paradisíaco do livro do Génesis não foi nunca realidade existente num princípio mítico, mas um projecto sonhado por Deus para a plenitude dos tempos: “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho nascido de uma mulher (…), a fim de recebermos a adopção de filhos” (Ga 4, 4-6).
Jesus Cristo é o Novo Adão, a cabeça da Humanidade reconciliada com Deus (2 Cor 5, 17-19). É a Árvore da Vida que nos dá o fruto da Vida Eterna: “Quem come a minha carne a bebe o meu sangue fica a morar em mim e eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive e Eu vivo pelo Pai, também o que me come viverá por mim” (Jo 6, 56-57). Mas São João tem o cuidado de acentuar que este mistério da comunhão orgânica com Cristo ressuscitado nada tem de antropofagia (Jo 6, 62-63).
A carne e o sangue de Cristo são a seiva da Árvore da Vida Eterna, isto é, o Espírito Santo. Com Jesus, a Humanidade entra no Paraíso e é amorosamente assumida na família de Deus sendo, por consequência, divinizada. O Paraíso, sonhado pelo livro do Génesis, torna-se finalmente realidade. Os que são animados pela seiva da Árvore da Vida, o Espírito Santo, passam a participar da Vida Eterna, sendo organicamente incorporados na Família de Deus, como diz São Paulo:
“Todos os que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para andardes no temor. Pelo contrário, recebestes um Espírito de adopção graças ao qual clamamos “Abba”, isto é Papá. E se sois filhos sois também herdeiros. Herdeiros de Deus Pai e co-herdeiros com Jesus Cristo, se formos fieis como ele foi, sofrendo pelo Evangelho como Ele sofreu” (Rm 8, 14-17).
No Reino de Deus, os eleitos são todos alimentados pelo do fruto da Árvore da Vida: “Felizes os que lavam as suas vestes, para terem direito à Árvore da Vida e poderem entrar nas portas da cidade” (Apc 22, 14).
2) A Vida Nova em Cristo
A vida nova em Cristo não é uma questão de sujeição a um código ético rigoroso e com normas bem estruturadas. Viver em comunhão com Cristo é uma relação vital com Jesus ressuscitado. O princípio animador desta relação e comunhão com o Senhor ressuscitado é o Espírito Santo.
A comunhão orgânica com Cristo é um dom gratuito de Deus. Ponhamos um exemplo: comparemos a Humanidade ferida pelo pecado a um limoeiro doente e envelhecido pela ferrugem. Apesar de ser um limoeiro de uma espécie muito boa, dá frutos de péssima qualidade, pois está doente. O proprietário do limoeiro gostava muito esta espécie de limoeiro. Por isso tinha muita pena de o arrancar e lançar ao fogo. Foi então que lhe veio a ideia de enxertar um raminho do limoeiro numa laranjeira jovem e robusta. Agora, sem deixar de ser limoeiro, recebe a seiva da laranjeira sadia e começa a robustecer-se progressivamente. Em breve começa a dar limões de excelente qualidade. O enxerto não destruiu a natureza do limoeiro, pois ele dá limões e não laranjas. Mas a seiva da laranjeira optimizou a fecundidade do limoeiro e a qualidade dos limões.
Pelo mistério da Encarnação, a Humanidade ficou enxertada na Divindade. Este enxerto não destruiu a natureza humana. Pelo contrário, optimizou-a e capacitou-a para dar frutos de vida eterna. A Humanidade ficou enxertada na Árvore da Vida cujo tronco é Jesus Cristo e cujas raízes é a Segunda pessoa da Trindade que, pelo Espírito Santo, faz uma unidade orgânica com Jesus de Nazaré.
A seiva da Árvore da Vida é o Espírito Santo. Animados por esta seiva, as pessoas que vivem em sintonia com o Espírito Santo, formam uma realidade orgânica nova a que a Bíblia chama uma nova criação: “Por isso, se alguém está em Cristo, é uma nova criação. O que era velho passou. Eis que tudo se fez novo! Tudo isto vem de Deus que, em Cristo, nos reconciliou consigo, e nos confiou o ministério da reconciliação. De facto, foi Deus quem reconciliou o mundo consigo, em Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação” (2 Cor 5, 17-19).
O Espírito Santo é o sangue de Cristo a circular nas artérias do nosso coração, alimentando e enriquecendo a nossa acção com um novo dinamismo e ajudando a nossa mente a compreender os mistérios de Deus. Eis o que diz São Paulo a este respeito: “Com efeito, quem, entre os homens, conhece o que vai no coração da pessoa, a não ser o próprio espírito do homem. Assim, também, ninguém conhece os pensamentos de Deus, a não o Espírito de Deus que nos faz compreender o que Deus amorosamente nos concedeu” (1 Cor 2, 11-12).
O Espírito Santo é o vínculo orgânico e o princípio relacional que sustenta e dinamiza a nossa união a Cristo como diz a Carta aos Romanos: “Se alguém não tem o Espírito de Cristo não pertence a Jesus Cristo” (Rm 8, 9). Não devemos concluir deste texto que só os cristãos pertencem a Cristo. Trata-se de uma qualidade de coração e não de um rótulo ou um título.
É importante distinguir a acção divinizante do Espírito, comum a todos os seres humanos, da acção revelacional. Esta, de facto, só actua no Povo de Deus. Tem a ver com o baptismo no Espírito ou, se quisermos, a dimensão pentecostal da vida cristã. A acção divinizante do Espírito Santo tem a ver com a salvação. Esta é uma incorporação da pessoa humana no Comunhão da Santíssima Trindade através de Cristo e é para todos os que têm coração capaz de comungar. O Espírito Santo, diz a Carta aos Romanos, é o Amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5).
Será eternamente mais divino, isto é, comungará mais com as pessoas divinas, quem mais tiver exercido na história a capacidade de comungar com as pessoas humanas. É a dinâmica salvífica ou a acção divinizante do Espírito Santo, a qual só aconteceu com a morte e ressurreição de Cristo (Jo 7, 37-39).
A nível revelacional, o Espírito Santo actua nos cristãos no sentido de os conduzir para a plenitude da compreensão do mistério de Deus e do Homem: “Mas quando vier o Espírito de Verdade, Ele vos guiará para a verdade total. Ele não fala de si mesmo, pois apenas diz o que ouve e dir-vos-à o que está para vir” (Jo 16, 13). É o Espírito que, no nosso interior, nos revela a nossa condição de filhos e herdeiro de Deus, co-herdeiros com Jesus Cristo (Rm 8, 14-17).
É pelo Espírito Santo que se vai robustecendo em nós o homem interior, cuja densidade é espiritual. É certo que o homem exterior vai envelhecendo e perdendo qualidades, mas o interior, graças à acção do Espírito Santo, renova-se e fortalece-se constantemente na pessoa fiel ao Espírito Santo.
O evangelho de São João diz que o homem interior, isto é, a dimensão pessoal-espiritual do ser humano vai renascendo pela acção do Espírito Santo (Jo 3, 6). Trata-se, portanto, de uma realidade a emergir no interior do homem. Por outras palavras, o ser interior, de ordem pessoal-espiritual, forma-se dentro do eu exterior, individual, como o pintainho se forma dentro do ovo. À medida em que renasce, o homem interior vai-se robustecendo, graças a esta acção do Espírito Santo como diz a segunda carta aos Coríntios: “Por isso não desfalecemos. Mesmo que em nós o homem exterior vá caminhando para a ruína, o homem interior renova-se dia após dia” (2 Cor 4, 16).
Eis a dinâmica da vida nova em Cristo a nascer e a fortalecer-se de modo gradual: O Espírito Santo vai-nos interpelando no sentido de agirmos de modo a que nos configuremos progressivamente com Cristo, ao ponto de darmos frutos iguais aos de Cristo. É a fecundidade da vida nova em Cristo. A Carta aos Gálatas menciona alguns dos frutos que a nossa vida vai produzindo quando está organicamente unida a Cristo e animada pelo Espírito Santo: “Mas os frutos do Espírito Santo são amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, gentileza e auto controle. Contra estas coisas não há lei” (Ga 5, 22-23).
Mas a nossa vida só será fecunda se permanecermos unidos a Cristo, como os ramos da videira só podem dar fruto se permanecerem unidos à cepa: “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. Os ramos não podem dar fruto por si mesmo, mas só se estiverem unidos à videira. Do mesmo modo vós não podeis dar fruto se não estiverdes unidos a mim” (Jo 15, 4-5).
O Espírito é a seiva que nos alimenta e robustece, capacitando-nos para sermos testemunhas do Evangelho no meio do mundo: “Mas vós recebereis o poder do Espírito Santo e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia, na Samaria e até aos confins da Terra” (Act 1, 8). A Carta aos Efésios recomenda aos cristãos de Éfeso para não se embriagarem mas, pelo contrário, deixarem-se encher do Espírito Santo: “Não vos embriagueis com vinho o que conduz à luxúria. Pelo contrário, deixai-vos encher do Espírito Santo” (Ef 5, 18).
No capítulo doze da primeira Carta aos Coríntios, aparece uma grande variedade de carismas, isto é, qualidades dinamizadas e consagradas pelo Espírito para o Bem comum da comunidade. É um sinal claro de que a nossa vida apenas é fecunda na medida em que é animada pelo Espírito Santo. Eis os dons de que fala o texto:
-Palavra de Sabedoria;
-Palavra de Conhecimento;
-Fé;
-Dom das curas;
-O poder de operar milagres;
-Dom da profecia;
-Discernimento dos Espíritos;
-O dom das línguas;
- O dom de as interpretar.
São Paulo sublinha que a diversidade dos dons e carismas tem uma origem comum: O Espírito Santo. Eis as palavras do Apóstolo: “Por isso quero que saibais que ninguém, falando sob a acção do Espírito Santo, pode dizer: ‘Jesus é maldito’. Do mesmo modo, ninguém pode dizer Jesus é o Senhor (Cristo ressuscitado e entronizado à direita do pai) a não ser pelo Espírito. Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum” (1 Cor 12, 3-7).
Mas é sobretudo no ensinamento do amor que Paulo nos convida a viver a própria vida de Deus, entrando na dinâmica do amor infinito. Não é por acaso que São João associa o mandamento do amor à Última Ceia, isto é, à Eucaristia. As qualidades do amor são as qualidades do próprio Deus, pois Deus é amor:
“O amor é paciente.
O amor é prestável.
Não é invejoso.
O amor não é arrogante nem orgulhoso.
Nada faz de inconveniente.
Não procura o seu próprio interesse.
O amor não se irrita nem guarda ressentimento.
Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a Verdade.
O amor tudo desculpa.
Tudo crê.
Tudo espera.
Tudo suporta.
O amor jamais passará.
As profecias terão seu fim.
O dom das línguas cessará.
A ciência será inútil (…).
Agora permanecem estas três: a Fé, a Esperança e o Amor.
Mas a maior delas é o amor” (1 Cor 13, 4-13).
É este o topo da vida nova em Cristo. É esta a meta para a qual o Espírito Santo nos quer conduzir.
e) Eucaristia e Nova Aliança
Os textos que falam da Última Ceia associam a Eucaristia com a Nova Aliança cuja plenitude é o Reino de Deus: “Tomando um taça, deu graças e disse: “Tomai e reparti entre vós, pois digo-vos que não tornarei a beber do fruto da videira, até chegar o Reino de Deus”. Tomou então o pão e, depois de dar graças, partiu-o e distribuiu-o por eles dizendo: “Isto é o meu corpo, que vai ser entregue por vós; fazei isto em minha memória”. Depois da ceia fez o mesmo com o cálice, dizendo: “Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós” (Lc 22, 17-20; cf. Mt 26, 26-29).
À luz da revelação a Humanidade forma um todo. É uma união orgânica constituída por pessoas, tal como a Divindade. Graças ao acontecimento de Cristo, a Humanidade e a Divindade ficaram definitivamente unidas. Esta verdade está no centro do simbolismo da Eucaristia. A plenitude da humanidade é o Reino de Deus, a Comunhão Universal humano-divina cujo medianeiro é Cristo ressuscitado. O Espírito Santo, como vimos, é o seu princípio animador e o vínculo desta organicidade. Uma vez que a Humanidade forma uma união orgânica, as pessoas humanas não são ilhas e apenas encontram a sua plenitude na comunhão de umas com as outras e todas com Deus através de Cristo.
Eis a afirmação central da celebração da Eucaristia. É esta a razão pela qual o bem e o mal que as pessoas fazem não as afectam apenas a elas, mas a toda a Humanidade. Este modo de entender as coisas aparece muito claramente descrito no profeta Isaías onde ele faz uma leitura desse acontecimento chocante que é o sofrimento dos justos no exílio de Babilónia (Is 52, 13-53, 12).
Até este período o povo bíblico pensava que os justos não podiam sofrer, pois Deus é justo e não vai fazer sofrer o inocente. Neste período pensava-se que Deus era o autor do sofrimento. Provocava-o para castigar os pecados das pessoas. Segundo esta perspectiva, como o justo não é pecador, não deve sofrer. No caso das crianças que sofrem, pensava-se que os pais eram pecadores.
Ainda no Novo Testamento encontramos vestígios desta mentalidade: “Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. Os seus discípulos perguntaram-lhe, então: Rabi, quem pecou para este homem ter nascido cego? Ele, ou os seus pais? Jesus respondeu: nem pecou ele nem os seus pais. Isto aconteceu para se manifestarem nele as obras de Deus (Jo 9, 1-3).
O acontecimento do exílio levou o povo de Deus a buscar novas explicações para a questão do sofrimento. No exílio da Babilónia era evidente que havia justos a sofrer. A saída encontrada no livro de Isaías é que o justo, por formar um todo orgânico com os membros pecadores do povo, sofre com ele as perseguições e violências.
A interpretação do sofrimento do justo, no livro de Isaías é que o sofrimento do justo vai reverter em favor do povo pecador. Como Deus não suporta o sofrimento dos justos, vai tomar partido em seu favor, libertando-os do exílio. Como o povo forma um todo orgânico, os pecadores vão ser libertos com os justos. Deste modo, o sofrimento dos justos adquire um significado redentor.
Por pensar o povo como um todo orgânico, Isaías passa do justo sofredor para o povo e do povo para o justo sofredor com toda a naturalidade. Os pecadores fazem parte do povo e os justos também. Como o povo vai ser liberto em virtude de Deus não suportar o seu sofrimento, os pecadores vão ser redimidos pelo sofrimento do justo: “O meu servo terá êxito, pois será engrandecido e exaltado. Muitos povos ficaram espantados diante dele ao verem o seu rosto desfigurado e o seu aspecto disforme. Do mesmo modo, Muitos povos e reis vão ficar espantados ao verem as coisas maravilhosas e inauditas que vão acontecer (a libertação da Babilónia) (…).
O servo cresceu diante do Senhor sem figura e sem beleza, como um rebento ou uma raiz em terra árida (o exílio). Vimo-lo sem aspecto atraente, desprezado e abandonado pelos homens, como homem das dores, habituado ao sofrimento, desprezado e desconsiderado, diante do qual se tapa o rosto. Na verdade ele tomou sobre si as nossas doenças e carregou as nossas dores. Nós o reputávamos como um leproso ferido por Deus e humilhado. Mas foi ferido por causa dos nossos pecados, esmagado por causa das nossas iniquidades.
O castigo caiu sobre ele, pois fomos curados nas suas chagas (Deus tomou partido em favor dele). Andávamos desgarrados como ovelhas perdidas, cada qual seguindo o seu caminho. Mas o Senhor carregou sobre ele os nossos crimes (perdoando-nos por causa dele). Foi maltratado. Humilhou-se e não abriu a boca, tal como o cordeiro que é levado ao matadouro ou a ovelha emudecida nas mãos do tosquiador.
Sem defesa nem justiça, levaram-no à força. Quem é que se preocupou com o seu destino? Foi ferido por causa dos pecados do meu povo e suprimido da terra dos vivos. Deram-lhe sepultura entre os ímpios (pagãos caldeus) e uma tumba entre malfeitores, apesar de não ter cometido qualquer crime nem praticado qualquer fraude.
Aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento (levando-o para o exílio), mas a sua vida tornou-se um sacrifício de reparação. Terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias. O desígnio do Senhor (a libertação do exílio) realizar-se-à por meio dele (…). O Justo justificará a muitos, pois carregou com os seus crimes. Por esta razão terá uma multidão como herança (o povo resgatado do exílio). Receberá muita gente como despojos, pois entregou a sua vida à morte, foi contado entre os pecadores, pois tomou sobre si os pecados de muitos, sofrendo pelos culpados” (Is 52, 13-53,12).
Perante a dificuldade de justificar os sofrimentos e a morte de Jesus, os discípulos recorreram a estes textos magníficos, dizendo que Jesus é o Servo sofredor. No entanto, nós sabemos que a obra salvadora realizada pelo mistério da Encarnação vai muito além de um simples benefício devido ao sofrimento do justo. A Encarnação significa o enxerto do divino no Humano, a fim deste ser divinizado. A divinização implica ser assumido, incorporado e glorificado na Família Divina.
Mas perante a dificuldade de justificar a morte de Jesus, os discípulos vão explicá-la recorrendo aos textos do justo sofredor. A Humanidade foi salva pelo sofrimento de um homem justo, Jesus Cristo, o Messias: “Carregou sobre si os nossos pecados sobre o madeiro da Cruz, a fim de que nós, estando mortos para o pecado, possamos viver na justiça. Fomos curados nas suas feridas” (1 Pd 2, 24).
Um morreu por todos e, nele todos morreram para o pecado (2 Cor 5, 14). Deus tomou partido por Jesus, ressuscitando-o e glorificando-o. Como a Humanidade forma um todo orgânico e Jesus é homem, todos fomos assumidos e glorificados nele e com ele. Este mesmo argumento é usado na Segunda Carta a Timóteo: “Eis uma palavra digna de confiança: Se morremos com Cristo também vivemos com ele” (2 Tim 2, 11).
Em Cristo Jesus todos formamos uma só união orgânica. São Paulo descreve de maneira muito bonita esta união dizendo que não importa a raça, a língua, o estatuto social, o povo ou o sexo das pessoas. Todos têm a mesma dignidade em Jesus Cristo, sublinha o Apóstolo: “Já não há diferença entre judeu ou grego, escravo ou livre. Já não há diferença entre homem ou mulher, pois todos formamos um em Jesus Cristo” (Ga 3, 28). Noutro texto acrescenta: “Apesar de sermos muitos formamos um só corpo e todos somos membros uns dos outros. O Espírito Santo actua em todos os membros do Corpo para proveito de todos” (1 Cor 12,4-7).
Jesus Cristo é a base da nossa união orgânica à divindade: “Nesse dia compreendereis que eu estou no Pai, vós em mim e eu em vós” (Jo 14, 20). Na sua oração após a ceia pascal, Jesus recorda esta verdade enquanto ora a Deus Pai: “Eu neles, tu em mim, Pai, a fim de eles serem perfeitos na unidade. Deste modo o mundo conhecerá que me enviaste e os amaste a eles, tal como me amaste a mim” (Jo 17, 23).
Graças a esta união orgânica entre nós e Cristo, fomos incorporados na Família de Deus, tornando-nos filhos em relação a Deus Pai e irmãos em relação a Deus filho. O Espírito é o amor maternal de Deus. Com seu jeito maternal de amar conduz-nos ao Pai que nos acolhe como filhos e ao Filho que nos acolhe como irmãos: “Todos os que se deixam guiar pelo Espírito Santo são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para andardes no temor. Pelo contrário, recebestes um Espírito de adopção graças ao qual chamais “Abba”, ó Pai (…). Ora, se somos filhos somos também herdeiros. Somos herdeiros de Deus pai e co-herdeiros com Cristo, pressupondo que com ele sofremos, para também com ele sermos glorificados (Rm 8, 14-17).
E mais à frente São Paulo explicita ainda melhor a nossa pertença a Deus por Cristo: “Àqueles que Deus conheceu antecipadamente, também os predestinou para serem uma imagem idêntica à do seu Filho, de tal modo que este é o primogénito de muitos irmãos” (Rm 8, 29).
A comunidade cristã é o sacramento desta unidade orgânica universal já enxertada e assumida em Deus. São Paulo insiste em que os membros da comunidade formam o corpo de Cristo: “Comemos de um só pão para formarmos um só corpo” (1 Cor 10, 17). E ainda: “Vós sois membros do Corpo de Cristo. E cada um de vós é uma parte deste corpo” (1 Cor 12, 27).
Sabemos como o corpo é mediação de encontro e comunicação. A comunidade, como Corpo de Cristo, é mediação de encontro e comunicação do mundo com Cristo ressuscitado. Nesta mesma linha se situa o seguinte texto da Carta aos Efésios: “Portanto, cada um deite fora a hipocrisia e fale a verdade ao seu irmão, pois somos membros de um só corpo” (Ef 4, 25).
Como vimos acima, a raiz desta união orgânica universal é Jesus ressuscitado. O Espírito Santo, por seu lado, é o princípio vital que anima e dinamiza todo o organismo. É a seiva que circula do tronco da videira para os ramos, tornando-os fecundos (Jo 15, 1-8).
Graças a esta união Cristo e à fecundidade do Espírito Santo vamos deixando os frutos da carne, isto é, as acções do homem velho e passamos gradualmente a produzir os frutos da Nova Humanidade enxertada em Cristo: “A carne deseja o que é contrário ao Espírito e o Espírito o que é contrário à carne. Se sois conduzidos pelo Espírito não estais sob o domínio da carne, pois as obras da carne são patentes: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, ciúmes, fúrias, ambições, discórdias, partidarismos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas parecidas. Sobre estas coisas vos previno como já o fiz antes: Os que praticam estas coisas não herdarão o Reino de Deus. Por seu lado, os frutos do Espírito São: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio. Contra estas coisas não há lei. Os que são de Cristo crucificaram a carne. Se vivemos pelo Espírito, sigamos o Espírito. Não nos tornemos soberbos, provocando-nos e tendo inveja uns dos outros” (Ga 5, 17-26).
Como acabamos de ver, o primeiro fruto do Espírito Santo é o amor e os restantes são modos de concretizar o amor. O amor não é um conjunto de sentimentos. É a manifestação da glória de Deus em nós. A glória de Deus, segundo a Bíblia, significa a grandeza de Deus. É a manifestação do seu amor à Humanidade. Quando uma pessoa decide amar está a dizer sim à voz do Espírito Santo que se faz ouvir na sua consciência.
O amor é a expressão máxima da fecundidade da vida, pois é o primeiro e o principal fruto do Espírito Santo. O amor dos outros por nós capacita-nos para amar. Por outro lado o Espírito Santo, através da nossa consciência, convida-nos a ser fiéis às possibilidades de amar que os outros inscreveram em nós. É este o modo de o Espírito Santo ser o animador da comunhão orgânica humano-divina da qual Jesus Cristo é a raiz. Eis o rosto da Nova Humanidade. Eis a realização desse Sonho eterno de Deus que é a Nova aliança em Jesus Cristo.
f) A Eucaristia Como Memória
As celebrações sacramentais são linguagem do projecto salvador de Deus a acontecer na história. Isto quer dizer que explicitam o dom da salvação de Deus realizado em Cristo e a acontecer nas diversas situações da vida. Cada sacramento aponta para o acontecimento salvador realizado em Jesus Cristo e a concretizar-se pela acção do Espírito Santo no concreto das várias situações da vida.
A Eucaristia fala essencialmente da comunhão do Reino. Cristo é o anfitrião que convida para o Banquete da Comunhão Universal. Na Festa da Vida Eterna todos têm o essencial e ninguém está preocupado com os excedentes. Tudo circula. Na Comunhão do Reino de Deus cada pessoa é um ponto de encontro, partilha, diálogo e reciprocidade amorosa. O Espírito Santo é o princípio que anima as relações amorosas e optimiza os vínculos familiares da comunhão universal humano-divina.
A Eucaristia está directamente ligada com o acontecimento de Cristo. É o memorial da Ceia do Senhor. Na Eucaristia, a comunidade proclama o amor incondicional de Jesus Cristo que foi fiel até à morte. Foi esta a razão pela qual Deus o ressuscitou, pois não pode permanecer na morte quem gasta a sua vida pelo amor.
A eucaristia, à luz do Novo Testamento, é uma refeição e um memorial que antecipa o banquete da Festa do Reino de Deus. Não se trata, portanto de um culto sacrificial fundamentado na morte de Jesus Cristo, a vítima que torna Deus favorável para com o homem pecador. Na verdade o que agradou a Deus não foi a morte violenta de Jesus, mas sim a sua fidelidade incondicional.
Como sabemos, os pais humanos têm a capacidade de perdoar sem exigir a morte violenta dos filhos. Os evangelhos dizem que o coração de Deus Pai é muito melhor do que o coração dos pais humanos: “Ora bem, se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem” (Mt 7, 11).
Na verdade, Deus não precisa do sofrimento humano para ser generoso para a Humanidade. O que agradou a Deus foi a generosidade e fidelidade incondicional de Jesus à missão que o Pai lhe confiou. Um dos aspectos desta missão era a reconciliação da Humanidade com Deus (2 Cor 5, 17-19). Outro aspecto fundamental da missão que Deus confiou ao seu Filho foi a edificação da Família de Deus, a qual não assenta nos laços do sangue mas sim nos laços do Espírito Santo.
Ainda que me matem, dizia Jesus ao Pai, não deixarei de ser fiel à vontade do meu Pai. “Desci do Céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou” (Jo 6, 38). Ou então: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar o seu plano” (Jo 4, 34).
As opções, as atitudes e escolhas de Jesus são uma afirmação incondicional de fidelidade: Ainda que me maltratem, não te negarei. Mesmo que me persigam não deixarei de anunciar o teu plano salvador. A eucaristia é a memória deste Jesus que anunciou, corajosamente o plano salvador de Deus. Perseguiram-no e não deixou de a Palavra do Pai. Mataram-no e não abandonou a missão que o Pai lhe confiara.
Foi esta fidelidade incondicional que agradou a Deus e não a morte violenta que sofreu, pois esta foi um pecado. Como sabemos, a injustiça e o pecado nunca agradam a Deus. A Eucaristia é memória do melhor que um homem pode realizar: dar a vida pela causa de Deus e dos irmãos. Como memória do Jesus que se fez dom total, a Eucaristia alerta para o facto de que ninguém pode ser feliz sem estar disposto a fazer algo pela felicidade dos outros. Por outras palavras, não é possível atingir a plenitude da vida imortal sem gastar a vida mortal pelo amor.
Na Eucaristia Jesus identificou-se com o pão partido e distribuído. Isto quer dizer o alimento da nossa Vida Nova é o Espírito do Senhor ressuscitado que nos alimenta e fortalece. A partilha, a fidelidade, o dom de si e o acolhimento dos irmãos são condições fundamentais para a comunhão agápico-eucarística do Reino de Deus.
A Eucaristia é, portanto, a memória de Cristo e proclamação da força da salvação a acontecerem nós pelo Espírito que o Senhor ressuscitado nos comunica. A comunhão com Cristo, no Espírito Santo, não acontece magicamente pelo simples facto de comermos o pão consagrado. A comunhão com Cristo ressuscitado passa pela linguagem do pão e do vinho a circular. O encontro com Cristo passa pela capacidade de eleger o outro como próximo. O contexto adequado para a celebração da Eucaristia é a comunidade cristã.
Como vemos, a memória, na Eucaristia, é uma interpelação profética. Recorda um acontecimento passado que é fermento de um mundo novo e nos interpela no sentido de nos empenharmos na tarefa da Nova Aliança inaugurada por Jesus. Comungar com o Jesus que se recorda na Eucaristia, portanto, é decidir-se a fazer escolhas semelhantes às Suas.
Por outras palavras, a Eucaristia é um memorial que nos insere num projecto em marcha na história. Ninguém se recorda, pessoalmente, de Cristo, pois ninguém o conheceu enquanto viveu na história. Só o Espírito Santo conheceu plenamente os compromissos históricos, pois foi ele que os inspirou.
Agora, na Eucaristia, é este mesmo Espírito Santo que nos convida a continuar a sua missão. São Paulo diz que ninguém é capaz de saber quem é o Senhor a não ser pelo Espírito Santo (1Cor 12, 3). A Eucaristia celebrada em contexto comunitário é, pois, uma memória viva de Jesus Cristo: “Fazei isto em minha memória” (Lc 22, 19).
A memória de Cristo vivida pela comunidade animada pelo Espírito Santo, é compreensão e proclamação do ser e do agir de Jesus Cristo. Por outras palavras, o Espírito Santo é a testemunha que proclama no coração dos crentes o ser de Jesus ressuscitado e a sua força salvadora a actuar no mundo.
A Eucaristia é um contexto privilegiado no qual os crentes são capacitados pelo Espírito Santo para anunciarem aos homens o projecto da Comunhão Universal do reino de Deus. Trata-se de uma memória com horizontes de futuro, isto é, do que falta à Humanidade para ser uma Comunhão Universal de irmãos e filhos do mesmo Deus Pai.
Celebrada com estes horizontes e na abertura à dinâmica do Espírito Santo, a Eucaristia é um fermento que faz levedar, através dos crentes, o mundo novo que Deus sonhou para a Humanidade. Celebrada e vivida na dinâmica do Espírito de Cristo ressuscitado, a Eucaristia é um alimento que gera crentes adultos na fé.
Ao mesmo tempo é alfobre de profetas que anunciam o Reino de Deus e denunciam as forças tenebrosas que se opõem à emergência da Nova Humanidade. Segundo o evangelho de João é exactamente isto que Jesus diz aos discípulos após a Eucaristia: “Quando vier o Espírito da Verdade, guiar-vos-á para a verdade total. Não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido (no diálogo entre o Pai e o Filho). Ele anunciar-vos-á o que há-de vir e glorificar-me-á, pois há-de receber do que é Meu para vo-lo anunciar” (Jo 16, 13-14). A redução da Eucaristia a um culto sacrificial matou esta dinâmica da Eucaristia e fez dos cristãos consumidores e cultos e sacrifícios para salvar as almas dos defuntos.
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