A Maternidade de Maria


a)Enquadramento Histórico
1) Perspectivas Bíblicas
2) Desenvolvimento Patrístico
3) Maria Mãe de Deus
4) Aprofundamento Teológico

b)Apreciação Crítica
1) Ambiguidades de Linguagem
2) Predominância Devocionista
3) Maternidade de Maria e Encarnação
4) Ambiguidades do Título Mãe de Deus


a) Enquadramento Histórico

1- Perspectivas Bíblicas

O Novo Testamento refere-se várias vezes a Maria como mãe de Jesus. São Paulo, sem mencionar o seu nome, faz-lhe referência, ao dizer que Jesus nasceu de uma mãe judia (Gal 4, 4). Liga Jesus à casa de David (Rm 1, 3). No evangelho de São João, Maria aparece nas bodas de Caná ao lado do Seu filho Jesus (cf. Jo 2, 1-11). Mas São João diz que isto aconteceu três dias depois, para dizer que Maria só esteve à Mesa com os discípulos a partir da Ressurreição de Jesus (cf. Act 1, 12-14).

Maria é o grande dom maternal que o Senhor, ao ressuscitar, oferece à Igreja: “Então Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mulher, eis o teu filho!”. Depois, disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!” E desde aquela hora, (a hora Jesus), o discípulo acolheu-a como sua mãe” (Jo 19, 26-27). Nos evangelhos, Jesus reconhece Maria como Sua mãe, mas não a chama nunca de mãe. A intenção dos discípulos é clara: afirmar que aquilo que Jesus é como Messias não é obra da carne nem do sangue, nem da vontade do homem, mas sim de Deus (cf. Jo 1, 12-14; Lc 11,27-28; Mc 3, 31-33).

Com o relato das Bodas de Caná, João sugere que Maria não é a origem da vocação messiânica de Jesus, mas como sua mãe é a grande mediação do Espírito Santo. É este o significado de Jesus, nas bodas de Caná, actuar antes da hora. A água viva e o vinho das bodas significam o dom do Espírito Santo que Jesus ia oferecer quando chegasse a sua hora (Jo 7, 37-39; cf. 1, 4).

Maria, com o seu jeito maternal de modelar a personalidade de Jesus, foi a grande mediação da acção maternal do Espírito Santo. Por outras palavras, a maternidade de Maria foi a maior mediação do Espírito Santo para o acontecimento messiânico. A missão messiânica, no entanto, não é obra de Maria mas sim do Espírito Santo. A hora de Jesus é obra do Espírito Santo, não de Maria (Jo 2, 4b). Quando chegou a sua hora, Jesus entrega Maria aos apóstolos, a fim desta ser para a Igreja nascente o que foi para Jesus: a mediação maternal do Espírito Santo (Jo 19, 26-27).

Maria, ao princípio, teve certa dificuldade em compreender e aceitar a missão messiânica de Jesus (Mc 3, 31-35). Podemos ter a certeza de que não foi Maria que influenciou Jesus no sentido de ele agir como Messias. São Paulo ao falar das diversas aparições de Cristo ressuscitado aos que lhe eram mais íntimos, menciona um aparição a Maria. Por se tratar de uma mulher, o seu nome não podia aparecer entre as testemunhas da ressurreição.

São Paulo encobre o nome de Maria com o de Tiago, o nome do mais velho dos irmãos de Jesus: “Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os apóstolos” (1 Cor 15, 7). E não pensemos que Paulo estaria a pensar noutra pessoa qualquer, pois o próprio Paulo refere o mesmo Tiago como o irmão de Jesus: “Passados três anos subi a Jerusalém, a fim de conhecer Pedro (Cefas) e fiquei com ele durante quinze dias. Mas não vi nenhum apóstolo, a não ser Tiago, o irmão do Senhor” (Ga 1, 19).

Os Actos dos Apóstolos dizem que a mãe e os irmãos de Jesus, após a ressurreição do Senhor, faziam parte da Igreja nascente (Act 1, 14).O evangelho de Marcos diz que, em Nazaré, toda a gente conhecia Jesus como o filho de Maria e irmão de Tiago, José, Judas e Simão. Também eram conhecidas as suas irmãs (Mc 6, 3).

O evangelho de São João reconhece, tal como os sinópticos, que Maria era a mãe de Jesus e seu pai era José: “Não é ele o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe?” (Jo 6, 42a) Mateus confirma estes dados quando afirma: “Não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? Suas irmãs não estão todas entre nós?” (Mt 13, 55-56a).

O facto de os evangelhos não darem muito realce à família de Jesus, é para afirmar que a sua missão messiânica consistia em construir a família de Deus e não uma família humana. Por isso Jesus afirma que a sua mãe, seus irmãos e irmãs são os que acolhem a Palavra de Deus que ele anuncia (Lc 8, 19; Mt 12, 46; Mc 3, 31).

É este o sentido da afirmação de Jesus segundo a qual o verdadeiro Pai de todos é Deus Pai: “Na terra a ninguém chameis pai. Um só é o vosso Pai: aquele que está nos céus» (Mt 23, 9). Na Família Universal que Jesus está a iniciar Deus é o Pai de todos. Jesus reforça este ensinamento dizendo que agora, ao orarmos, devemos dirigir-nos a Deus chamando-a de Pai-Nosso (Mt 6, 9). Chamar Deus Pai de Pai-Nosso, é o mesmo que chamar a Deus Filho e aos demais seres humanos de irmãos, pois já formamos todos a Família de Deus.

O Espírito Santo, com seu jeito maternal de amar, é quem nos introduz nesta Família definitiva (Rm 8, 14-17; Ga 4,4-7). É pela mediação e pela ternura maternal que as pessoas são introduzidas no seio da sua família! É esta a razão pela qual São Paulo diz que o Espírito Santo é o amor de Deus difundido nos nossos corações (Rm 5, 5). Deus Pai acolhe-nos na Família Divina na medida em que formamos uma união orgânica com o Filho (Jo 15, -8; 1 Cor 10, 17; 12, 27; 12,13). Por outro lado, o princípio vital que alimenta esta união orgânica com Cristo é o Espírito Santo (Lc 11, 13; Jo 15, 26; Rm 8, 14; Gal 4, 5-7).


2- Desenvolvimento Patrístico

O dinamismo e a linguagem bíblica desaparecem da teologia no século segundo. O judeo-cristianismo recusa-se a aceitar o mistério da Santíssima Trindade. Como sabemos, o monoteísmo judaico é unipessoal: Deus é um sujeito único cujo nome é Yahvé. O Espírito Santo, conduzindo a Igreja pela mediação do termo Filho e sua relação com o Pai, chega ao mistério da Santíssima Trindade. Por outras palavras, o monoteísmo cristão é tripessoal. O uno, em Deus, é a sua comunhão orgânica, dinâmica indissolúvel. O plural, na Divindade, é constituído por três pessoas: Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Os cristãos de origem judaica não conseguem fazer a passagem para a noção comunitária de Deus. Abandonam a Igreja formando um grupo fechado chamado os “Ebionitas”, isto é, os pobres de Deus. Eis a razão pela qual a teologia, agora, passa a desenvolver-se apenas em categorias helenistas.

Para o pagano-cristianismo, a incarnação vai ser vista em termos de biologisação do Logos. O Logos vem cá abaixo, forma o corpo de Jesus no seio de Maria e encerra-se dentro desse corpo. Como consequência, Maria transporta dentro de si e durante nove meses o Logos, isto é, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, como diz Inácio de Antioquia: “O nosso Deus, Jesus Cristo, foi levado no seio de Maria segundo a economia divina. Nasceu da semente (sémen) de David e do Espírito Santo” (Inácio de Antioquia, Ef. 7, 18). Inácio diz ainda que o facto de Jesus ter nascido da Virgem foi um mistério oculto do Demónio e foi o começo da nossa salvação (Inácio de Antioquia, Ef., 7, 19).

Santo Ireneu sublinha que o pecado de Adão se propaga pelo pai. Como Cristo não teve pai humano, não herdou o pecado de Adão (Adv. Haer. II, 21, 10). A maternidade de Maria, portanto, tinha de ser virginal, a fim de Jesus não herdar o pecado de Adão. Graças à maternidade virginal de Maria o Novo Adão não pertenceu à estirpe pecadora do velho Adão. Movido pelo Seu grande amor à humanidade, diz Santo Ireneu, o Filho de Deus, igual ao Pai, quis nascer de uma virgem, a fim de ligar a humanidade rebelde com Deus (Adv. Haer, I, 10, 1; III, 4, 1-2).

Apesar desta influência dos mitos gregos na sua linguagem da Encarnação, os Santo Padres dos séculos segundo e terceiro defendem equilibradamente a condição humano-divino de Jesus. Jesus era homem porque germinou no seio de uma terra humana. Se não tivesse grandeza humana, o Filho de Deus não podia ter ligado a humanidade à divindade. Assim como o primeiro Adão foi tirado da terra ainda virgem, isto é, o barro primordial, o segundo Adão nasceu de uma virgem [Adv. Haer, 2, 21, 10]. Apesar desta dificuldade em falar da Encarnação em termos bíblicos, os Santos padres combatem o gnosticismo que é de facto a grande distorção acerca da encarnação.

O docetismo gnóstico afirmava que Jesus tinha apenas um corpo aparente, pois era o Logos a exprimir-se para os homens. Tinha uma aparência de corpo para se fazer entender dos homens. Mas na verdade, Cristo não tinha corpo biológico, pois era o Logos, o Filho de Deus. Deus não tem sémen biológico. Portanto, só aparentemente o corpo de Jesus era de carne.

Santo Ireneu ataca este radicalismo dizendo que, sem corpo biológico, Jesus não teria salvo a humanidade. Adão, primeira cabeça da humanidade, desorientou o corpo. Cristo, ao ser constituído nova cabeça da humanidade, reconduz o corpo para o ritmo certo. Isto não podia ter acontecido se Ele não tivesse sido verdadeiro homem (Adv. Haer., 1, 10, 1).

No século terceiro, Tertuliano afirma que não há salvação para os que combatem a maternidade de Maria. O gnosticismo, ao afirmar que Jesus tinha apenas um corpo aparente, negava que Ele fosse verdadeiramente filho de Maria. Para Tertuliano o Verbo é Deus e é eterno como o Pai. Ao tomar carne humana não precisou de a tomar de nenhum homem (De Car. 18).

Por outras palavras, o Verbo tomou carne humana, embora de modo não humano: “Esta é a nova vida que faz o homem nascer de Deus. Neste homem (Jesus) Deus nasceu tomando carne de linhagem humana, embora de modo não-humano. Deste modo, renova espiritualmente a Humanidade e limpa-a da mancha hereditária. Este novo nascimento, em virtude do qual o Senhor nasceu de uma virgem, segundo uma racional economia, tem, como todas as outras coisas, uma figura antiga. A terra estava ainda virgem, isto é, ninguém a tinha ainda lavrado nem lançado nela a semente quando Deus plasmou nela o homem vivo. Por conseguinte, como se diz, o primeiro Adão foi tirado da terra. Do mesmo modo, o novo Adão, como lhe chama o Apóstolo, devia ser tirado por Deus de uma terra, isto é, de uma carne, a qual não tinha sido fecundada por nenhum homem, em ordem à geração” (De Car., 19).

No entanto, Tertuliano afirma que Maria, no momento de dar à luz, perdeu a virgindade (De Car. 23). A ideia de Maria ter perdido a virgindade com o parto ainda não era contestada por ninguém. Eis a razão pela qual ninguém contradisse Tertuliano. No século Segundo, Santo Ireneu afirmava que apenas foi salvo aquilo que foi assumido por Cristo. No século seguinte, Tertuliano deixa-se conduzir pelo rigorismo montanista. Uma vez que Cristo não é Cristo não é fruto de uma relação sexual, Cristo não assumiu a sexualidade. Devido a isto os pecados do sexo não têm perdão, pois Jesus Cristo apenas obteve o perdão e a salvação para aquilo que assumiu, como diz Santo Ireneu. Tudo isto vai contribuir enormemente para a visão negativa da Igreja a propósito da sexualidade.

No Oriente, Orígenes segue a mesma linha que Tertuliano assumiu no Ocidente. Segundo Orígenes, para salvar a humanidade, tinha de ser homem, mas tinha de ser fruto de uma maternidade virginal. Como não podia ser herdeiro do pecado de Adão, o Logos encarnou no seio de uma virgem [Hom. in Lev., 12, 4].


3- Maria, Mãe de Deus

São Gregório de Nazianzo, no século quarto, afirma que Cristo foi formado no seio de Maria de modo humano-divino. Divino porque não provém de sémen humano; humano, porque a sua gestação se processou no seio de Maria segundo os processos humanos (cf. Gregório Nazianzeno, Lit. 101). Tertuliano, no século terceiro, dizia que Deus nasceu do seio da virgem. No século quinto, São Leão Magno afirma que o salvador devia ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O único caminho para isto poder acontecer seria nascer de uma virgem, isto é, sem o concurso de um homem, a fim de estar livre do pecado de Adão (cf. S. Leão Magno, Sermones, 22, 1-4).

Esta visão das coisas vai culminar na questão da maternidade divina de Maria. Por outras palavras, Maria é Mãe de Deus (Theotocos). A questão nasce em contexto polémico, acabando num concílio polémico (Concílio de Éfeso), em que os partidários das duas opiniões opostas se excomungam mutuamente. Na origem estão duas escolas teológicas que utilizam filosofias diferentes: Alexandria e Antioquia. Alexandria participava do neoplatonismo e Antioquia pertencia à corrente aristotélica. Constantinopla pertencia ao patriarcado de Alexandria cujo patriarca era Cirilo.

Tudo começou com a nomeação de Nestório como bispo de Constantinopla. Nestório tinha uma maneira aristotélica de ver as coisas. O aristotelismo é analítico e indutivo. O platonismo é dedutivo e, portanto, muito mais especulativo. Uma vez instalado na sede episcopal de Constantinopla, o bispo Nestório, nos seus sermões, começa a pregar que é mais acertado dizer que Maria é mãe de Cristo, do que dizer que é mãe de Deus. Maria gerou apenas a natureza humana de Jesus, não a sua natureza divina. Além disso, dizer Cristo era dizer não só o homem como também o Logos, pois os dois formam um.

Os monges de Constantinopla eram de formação neoplatónica. Chocados com a linguagem do novo bispo, acusam-no ao patriarca de Alexandria, Cirilo, dizendo que têm um bispo herege. Para o neoplatonismo, o homem é um composto de corpo e alma. Estas duas realidades formam apenas uma natureza humana. Apesar de não gerar a alma, a mãe de um homem é considerada mãe do corpo e da alma. O Filho de Deus é homem e Logos. Forma uma só natureza (fysis) divina. A mãe de Cristo é, portanto, também mãe de Deus. Assim surge a questão de Maria Christotocos ou Theotocos (mãe de Cristo ou mãe de Deus).

Os antioquenos formulavam a questão melhor que os alexandrinos. No entanto, estes tinham mais influência em Roma do que aqueles. Cirilo recorre ao papa e obtém todos os poderes para solucionar a questão. Para os antioquenos a divindade do Logos não anulou a humanidade de Cristo, nem lhe tirou a autonomia. Para os alexandrinos de formação neoplatónica, a humanidade de Jesus era dirigida pela divindade como o corpo é dirigido pela alma. Daqui que falassem apenas de uma fysis ou natureza em Cristo.

Os antioquenos falavam de duas fysis ou naturezas, a saber: a humana e a divina. Por fysis os antioquenos entendiam princípio autónomo de acção. Os alexandrinos, pelo contrário, entendiam o elo de união. Em Cristo há um só elo de união. O princípio superior comandava o inferior. Cirilo escreve a Nestório no sentido de o obrigar a retratar-se. Este recorre aos antioquenos os quais tinham cultura aristotélica como Nestório. O patriarca de Antioquia toma o partido do Bispo de Constantinopla. Mas o bispo de Constantinopla dependia de Alexandria e não de Antioquia e Cirilo convoca o concílio de Éfeso. Aos alexandrinos parecia-lhes que os antioquenos, ao falarem de duas naturezas, estavam a falar de duas coisas não perfeitamente interligadas. Era um pouco como se a humanidade e a divindade de Cristo fossem duas ilhas isoladas, embora fazendo um arquipélago. A grande questão, portanto, era saber de que modo o humano e divino estão unidos em Jesus Cristo.

De modo derivado aparece, naturalmente, a questão da maternidade de Maria. Ela é mãe da humanidade de Cristo ou também da Sua divindade? Tudo depende do tipo de união que existe entre estes dois pólos da realidade de Cristo. Para nós, hoje, a questão parece simples. Para estes homens era realmente um problema difícil.

Os antioquenos tiveram problemas na viagem e chegam atrasados. Enviam um emissário, pedindo a Cirilo para atrasar o começo do Concílio por uns dias, pois estão com dificuldades na viagem. Cirilo não quis esperar e inaugurou o Concílio. Quando chegaram os antioquenos, já os alexandrinos tinham excomungado Nestório e declarado o dogma de Maria mãe de Deus. Os antioquenos ficam profundamente magoados e excomungam Cirilo e os alexandrinos. Por sua vez, estes excomungam os antioquenos. Vêm os soldados do imperador e obrigam os Padres Conciliares a regressar aos seus patriarcados. Foi assim que terminou o Concílio de Éfeso que proclamou o dogma de Maria, mãe de Deus.

Mais tarde, Cirilo compreendeu o pensamento dos antioquenos e diz que a linguagem destes é mais adequada para dizer a realidade de Cristo. Eis a razão pela qual nós, hoje, dizemos que em Cristo há duas naturezas perfeitas, isto é, a natureza humana e a divina. Cirilo compreendeu que Cristo é perfeitamente homem e que, portanto, a sua humanidade não é anulada nem substituída pela divindade do Logos. Agora, é Cirilo que vai ser acusado de traidor pelos monges e teólogos da escola alexandrina.

O Novo Testamento, ao falar de Maria como mãe de Jesus está a falar apenas da mãe de um homem. Os evangelhos insistem que a condição messiânica de Jesus não é obra da maternidade de Maria, mas sim do Espírito Santo. Mas os conceito e a linguagem bíblica há muito que tinham desaparecido da Igreja.

A cidade de Éfeso, antigo centro de culto da deusa Ártemis (Act 19, 35), delira com a proclamação de Maria mãe de Deus. As velhas raízes ligadas ao culto de uma deusa são agora canalizadas para uma virgem que é mãe de Deus. Segundo a tradição de Éfeso, a estátua de Ártemis caíra do céu (Act 19, 35b). Paulo opôs-se a este culto idolátrico, dizendo-lhes que a estátua de Ártemis não é divina, mas é obra dos homens. É um ídolo sem valor feito pelas mãos dos homens (Act 19, 36). Isto revoltou os fabricantes de estátuas que sublevaram o povo contra Paulo, procurando matá-lo (Act 19, 29).


4- Aprofundamento Teológico

Ao desviar-se da linguagem bíblica, a teologia pode gerar confusões e tensões muito difíceis de resolver. Foi realmente o que aconteceu por diversas ocasiões ao longo da história de Igreja e, neste caso em particular no Concílio de Éfeso. O Novo Testamento usa uma linguagem muito simples e transparente ao falar de Maria, a mãe de Jesus. Ao designar Maria como mãe de Jesus, o Novo Testamento não atribui a este título qualquer conotação especial. Ela é a mãe de um homem que Deus ungiu e consagrou com o Espírito como Messias (Rm 1, 3-5; 9, 5; Act 2, 22; Act 2, 32-33; Act 10, 38).

Como sabemos, a Cristologia do evangelho de São João tem como pano de fundo a ideia do Logos preexistente encarnado (Jo 1, 1ss). Mesmo neste evangelho Maria é designada simplesmente como mãe de Jesus, sem que isso signifique qualquer associação com o Logos (Jo 2, 1; 2, 12). Ao chegar o momento da Sua glorificação, Jesus insere-a no número dos discípulos (Jo 19, 26-27). É aí que, segundo os Actos dos Apóstolos, ela aparece a viver as alegrias da experiência pascal com os discípulos e os irmãos de Jesus (Act 1, 14).

Para os evangelhos, a condição messiânica de Jesus é obra do Espírito Santo e não é fruto da carne ou sangue (cf. Lc 4, 18-21). É igualmente pelo Espírito Santo que os crentes são gerados como membros da Família de Deus (Jo 1, 12-14). Por isso é preciso nascer de novo (Jo 3, 6; 1, 12-13; Rm 8, 14-17; Gal 4, 4-7).

Hoje não é difícil verificar que a linguagem de Nestório era mais adequada para o alcance da maternidade de Maria. A realidade humana de Jesus não se confunde nem é anulada pela Sua realidade divina. Maria, para o Novo Testamento, é mãe de Cristo, o homem que Deus ungiu com o Espírito para realizar a sua missão messiânica (Lc 4, 18-21).

Em termos preexistentes, Maria não é a mãe do Logos eterno, pois o Logos não se biologisou. Se assim fosse, Maria era, não a mãe de Deus, mas a mãe da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Seria assim porque teria alimentado a biologia do Logos com o Seu próprio sangue. O mistério da Encarnação processa-se a um nível suprabiológico. Supõe a interacção directa e imediata entre a interioridade espiritual de Jesus de Nazaré e a interioridade espiritual divina do Logos. Estes dois pólos estão em perfeita reciprocidade relacional, graças à acção do Espírito Santo.

É isto que queremos dizer quando afirmamos que O Filho de Deus encarnou pelo Espírito Santo. No mistério da Santíssima Trindade, o Pai e o Filho estão em total reciprocidade amorosa de tipo paternal-filial, alimentada pela ternura maternal dói Espírito Santo. Do mesmo modo, a interioridade humana de Jesus está em perfeita reciprocidade relacional com a interioridade divina do Logos. Nesta união interactiva nem o divino anula o humano, nem este limita ou mutila o divino.

O mistério da Encarnação passa-se ao nível da interioridade espiritual humana de Jesus com a interioridade espiritual da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Isto significa que o coração de Jesus, isto é, o seu núcleo espiritual mais íntimo, estava permanentemente em interacção com a interioridade do Logos pelo Espírito Santo. Quando o Novo o evangelho de João chama a Jesus Cristo filho de Deus, inclui o homem pleno e também o Logos.

Se O Novo Testamento utiliza como confissão central da Fé a expressão “Deus é o Pai de Cristo”, porque razão havia de ser problema dizer que Maria é a “Mãe de Cristo”? Como sabemos, Deus é uma comunidade de três pessoas. Para indicar a unidade humano-divina de Cristo poderíamos aceitar a expressão “Maria mãe de Cristo que é o homem Jesus de Nazaré e a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Mas se quiséssemos falar com rigor, o termo mãe de Deus sugere que é mãe do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Deus é a comunidade trinitária. Por isso não falamos de três deuses. O Uno em Deus é a comunhão trinitária. O plural são as pessoas e cada uma delas é única, original, irrepetível e com missões distintas.

Maria é a mãe de Cristo. Isto implica dizer o homem Jesus de Nazaré e a Segunda pessoa da Santíssima Trindade. Pela Encarnação, o Filho Eterno de Deus fez-se nosso irmão. Por isso não é problema dizer que ele é filho de Maria. Por outras palavras, o termo mãe de Deus é teologicamente menos adequado que o termo mãe de Cristo para significar o papel de Maria na história da Salvação.

Este aspecto não é indiferente, pois é uma mediação para dizer adequadamente a realidade de Deus. O monoteísmo cristão não é igual ao das demais religiões monoteístas. Deus, para as religiões monoteístas, é um «Eu». Para o cristianismo, Deus é um «Nós», isto é, uma comunidade familiar de três pessoas.

Dar o nome de mãe de Deus a Maria, obscurece o facto de Deus ser uma comunidade de pessoas e não aclara o mistério da Encarnação. Sem o pretender, o Concílio de Calcedónia acaba por dar razão a Nestório, dizendo que Maria é mãe de Deus segundo a humanidade. Sem a restrição de Calcedónia, Maria ficava quase uma deusa virgem e mãe.

Nos três evangelhos sinópticos, Jesus declara que veio para construir a família de Deus, a qual assenta nos laços o Espírito Santo e não nos laços da carne. É este o sentido da afirmação de Jesus segundo a qual, os que acolhem a Palavra de Deus são a família de Jesus (Mc 3, 35). É evidente que isto não quer dizer que os familiares de Jesus não façam parte desta família criada no Espírito.

A prova de que Maria e os irmãos de Jesus fazem parte desta família espiritual é que, após a Páscoa, eles são membros activos na comunidade de Jerusalém (Act 1, 14). O mais velho dos irmãos do Senhor, Tiago, aparece mesmo como o chefe da comunidade de Jerusalém (Act 15, 13-21;Ga 1, 19). Vimos também como Maria e os irmãos do Senhor tiveram uma experiência pascal semelhante ao grupo dos apóstolos, a qual aparece designada como experiência de Tiago, o primeiro dos irmãos de Jesus (1 Cor 15, 7). Até ao século quarto, Maria era designada como mãe de Jesus ou mãe de Cristo, sem que cause qualquer problema. A linguagem mudou, como vimos, com a polémica entre os monges de Constantinopla e o bispo Nestório, a qual deu origem ao concílio de Éfeso.


b) Apreciação Crítica

1- Ambiguidades de Linguagem

Muitas das afirmações mariológicas acerca da maternidade divina de Maria careciam, em geral, de rigor teológico e tinham pelo meio muitas ambiguidades de linguagem. Esta situação, no entanto, agrava-se com o suceder dos séculos. Assim, por exemplo, em meados do século vinte, diz-se que Maria alimentou o próprio Deus com o Seu leite: “O seu corpo foi o trono da virtude. O verdadeiro santuário de Deus. Maria estreitou Deus contra o Seu próprio peito. Alimentou-o com o Seu leite. Defendeu-o com terna fidelidade” (Giovani Barra, Nuestra Señora y las conversiones, in Theotocos, op. cit. p. 231).

É evidente que afirmações deste tipo não são mediação para a transmissão da verdade de Deus e do homem. É verdade que não foi fácil à teologia equacionar a unidade humano-divina, sobretudo, afirmar os dois pólos da realidade de Cristo (o humano e o divino) sem os anular nem os confundir. Em 380, o Concílio Romano afirmava que em Cristo não existem dois filhos de Deus: o anterior a todos os séculos e o que nasceu no tempo (cf. Denz. 64). Esta dificuldade deve-se ao facto de se ter perdido a noção bíblica de filho de Deus e de incarnação.

É importante termos presente que a humanidade de Jesus não foi anulada pela divindade do Logos. Pela incarnação, a humanidade de Jesus ficou orgânica e dinamicamente ligada ao Logos. Para acontecer o mistério da Encarnação não foi preciso romper-se a comunhão trinitária. Por outras palavras, a união orgânica de Jesus de Nazaré com a Segunda pessoa da Santíssima Trindade acontece pelo Espírito Santo no sentido da interioridade de Jesus.

Não esqueçamos que Deus é a interioridade máxima do Universo. É interior a tudo e a todos. Por outras palavras, para acontecer a Encarnação o Filho Eterno de Deus não teve que se deslocar. Bastou fazer uma interacção directa, animada pelo Espírito Santo, a partir da interioridade transcendente da Santíssima Trindade para a interioridade espiritual de Jesus de Nazaré.

O helenismo dificultou aos Santos Padres uma formulação adequada desta verdade. É importante salvaguardar a autonomia da humanidade e da divindade em Jesus Cristo. Estas duas dimensões não se misturam nem confundem. Esta autonomia foi defendida pelos concílios cristológicos posteriores a Niceia. Quando Jesus comia, não estava a alimentar o Logos. O alimento ou dinamismo vital deste é a reciprocidade amorosa com o Pai no Espírito Santo: “Assim como o Pai que me enviou vive e eu vivo pelo Pai, também aquele que me come viverá por mim” (Jo 6, 57).

No mistério da encarnação, portanto, o pólo divino não se anula nem se confunde com o humano ou vice-versa. Cada um continua a existir na sua grandeza própria. Entre os dois pólos há proporcionalidade e unidade perfeita, pois a missão messiânica compete tanto ao Filho Eterno de Deus como a Jesus de Nazaré, o filho de Maria. São na realidade duas interioridades pessoais: uma humana, outra divina. Eis a razão pela qualquer havia condições para acontecer a encarnação: a Divindade é pessoas e a Humanidade também.

As pessoas humanas não são iguais às divinas, mas são proporcionais. Se assim não fosse, a encarnação também podia acontecer num animal. Mas isto não seria encarnação mas possessão. O mesmo podemos dizer se Jesus fosse, como tantas vezes parecer fazer-se crer, uma casca de homem dentro da qualquer estava o Logos a substituir a interioridade pessoal-espiritual de Jesus.

Estas duas interioridades espirituais estão em permanente interacção no Espírito Santo, tal como acontece a interacção entre a interioridade do pai e do Filho no Espírito Santo, fazendo apenas um: “ Eu e o Pai somo Um” (Jo 10, 30). Esta interacção supõe dois movimentos complementares: incarnação ou adequação do divino ao humano e ascensão ou plenificação do humano no divino.

É evidente que não é Maria, mas sim o Espírito Santo que alimenta e fortalece esta interacção humano-divina. Com efeito, a realidade de Cristo é humano-divina. Ele é o fruto mais amadurecido da humanidade. Maria gerou, naturalmente a humanidade de Jesus e é a Mãe de Cristo no seu todo, pois a missão do Logos e a de Jesus é uma e a mesma.

A questão da mãe de Deus foi solucionada de modo conflituoso e ambíguo na sua linguagem. Por isso não ficou satisfatoriamente resolvido. Eis a razão pela qual o Concílio de Constantinopla diz que, se alguém afirma que Maria é christotocos (mãe de Cristo) e não theotocos (mãe de Deus), seja excomungado (Denz. 218, 214).

Mas o Concilio corrige os exageros do concílio de Éfeso dizendo que Maria é mãe de Deus segundo a humanidade, não segundo a divindade. Fica assim suavizada a afirmação de Éfeso, embora usando uma linguagem pouco clara. Ainda em 1931, Pio XI afirmava: “Se a pessoa de Cristo é única e esta é divina, sem dúvida que Maria deve ser chamada por todos não só mãe de Cristo homem, mas também mãe de Deus ou theotocos” (cf. Pio XI, Lux Veritatis, 1931).

Entre os autores medievais, Santo Tomás foi o que melhor formulou a questão da maternidade de Maria. Eis como ele formula a questão: “Ela é a mãe do Verbo de Deus, não enquanto Ele é o Filho do Pai, mas enquanto subsiste na natureza humana” (S. Th. 3, q. 3, a. 8). Podemos dizer que Santo Tomás formula a questão de maneira equilibrada. Maria não é a mãe do Verbo. Este precede-a. Diz que Maria não é mãe de Deus no sentido de que Deus tenha resultado de uma geração humana (S. Th. 3, q. 4, a. 3).

Mas também Santo Tomás não consegue ultrapassar as ambiguidades. Por exemplo afirma que foi o Verbo que preparou a Sua própria humanidade no seio de Maria (S. Th. 3, q. 6, a. 5). Não se vê bem o papel de Maria ou o do Espírito Santo. Esta expressão de Santo Tomás quase dá a impressão que o Logos veio ao seio de Maria preparar o recipiente no qual havia de se meter. S. Agostinho foi mais feliz ao dizer que Maria foi bem-aventurada na medida em que concebeu Cristo no Seu coração pela fé (De Virginit., 3).


2- Predominância Devocionista

A partir da Idade Média, o critério subjacente aos mariólogos parecia ser este: é melhor mariólogo o que consegue dizer coisas mais fantásticas de Maria. Com este tipo de procedimento pretendia-se aumentar a devoção mariana. O critério era a devoção, não o aprofundamento da verdade bíblico-teológica. A devoção a Maria valia mais que o rigor da verdade. Quando o critério é a devoção pouco importa a exactidão da fé. Faz-se de Maria a medianeira de todas as graças. Quanto mais devoção, mais graças.

Este género de procedimento levou a afirmações desligadas do fundamento bíblico da fé. Se Maria é a medianeira de todas as graças, dizia Pio IX, ela possui mais graça sozinha que todos os santos e eleitos juntos (Pio IX, Inneffabilis Deus). Com a entrega simbólica de Maria ao discípulo amado, o Quarto Evangelho quer exprimir que, chegada a Sua hora, Jesus passa a ser o Filho de Deus na plenitude da Sua missão, que não é obra da carne nem da vontade humana, mas exclusivamente de Deus (Jo 1, 12-13).

Santo Agostinho dizia que Maria, sendo mãe de Cristo, é nossa mãe, poiso Cristo e os cristãos formam uma só pessoa mística. Maria, sendo a mãe da cabeça, torna-se igualmente mãe do corpo. O princípio vital que alimenta a nossa união a Cristo é o Espírito Santo (Santo Agostinho, In Ps. 26, II, 2). A vida do Espírito vem da cabeça para os membros (In Ep. I Joah., 3, 5).

A noção de Maria mãe de todas as graças não deriva do património bíblico-patristico da fé. É fruto do devocionismo. No século Doze, Hermano de Tournai dizia de maneira bastante equilibrada e aceitável: “O filho de Maria é nosso irmão. Por conseguinte, Maria é nossa mãe” (cf. Melchor de Santa Maria, Maria en los escritos de los doce primeiros siglos, in Theotocos, op. cit. p. 83).

Devido aos exageros do devocionismo, Maria quase ocupava o lugar do Espírito Santo que é amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5). Há um grande exagero nesta afirmação de Melchor de Santa Maria: “Deus criou todas as coisas sozinho. Por isso deve ser chamado nosso Pai e nosso Senhor. No entanto, não quis voltar a criar-nos, isto é, restaurar as coisas perdidas sem o concurso de Maria” (Melchor de Santa Maria, Maria en los escritos de los doce primeiros siglos, in Theotocos, op. cit. 84). Afirmações como esta carecem de rigor teológico. Cristo foi ungido pelo Espírito Santo para restaurar a Humanidade decaída (Lc 4, 18-21). Afirmações como esta fazem de Maria um ser tão imprescindível como Deus.

3- Maternidade de Maria e Encarnação

É importante afirmar que a devoção mariana não é matéria suficiente para fazer Mariologia. Separada da fé esclarecida, a devoção não passa de adesão cega. Pelo contrário, iluminada pela fé, a devoção é compreensão, reconhecimento e adesão ou imitação. Através de Jesus, o Logos exprimiu-se em grandeza humana pelo Espírito Santo. O Espírito é o princípio relacional e comunicativo de Deus. Pela mediação da humanidade de Jesus, os homens são incorporados na família de Deus. São Paulo diz na primeira Carta a Timóteo que Jesus é o único medianeiro entre Deus e os homens (1Tm 2, 5).

A Mariologia tradicional fazia, por vezes, afirmações totalmente descabidas de sentido como, por exemplo esta afirmação de Judica Cordiglia: “No momento do ‘fiat’, o Verbo iniciou, nas entranhas de Maria, a sua vida humana” (Judica Cordiglia, Semblanza físico-somática de Maria, in Theotocos, op. cit., p. 171). Por outro lado, este mesmo autor faz do Logos um gémeo de Maria: “Aconteceu que esta célula germinativa (óvulo de Maria), no seu estádio antecedente à maturação, possuía no seu núcleo a totalidade dos elementos essenciais (cromossomas), juntamente com os vectores dos caracteres dos gerador, os genes. Não se desenvolveu segundo o processo natural de redução (meiose), mas desenvolveu-se sem se modificar, de tal modo que o novo ser humano veio assumir as características somáticas só da mãe. Foi uma cópia idêntica dela. Por outras palavras, seu gémeo. Contudo, este gémeo é masculino devido ao influxo que pode exercer determinados genes no desenvolvimento do embrião para a masculinidade” (Judica Cordiglia, Semblanza físico-somática de Maria, in Theotocos, op. cit., p. 170).

Estamos perante uma falta total de rigor de linguagem. Cordiglia não se apercebeu de que o cromossoma sexual chamado «Y», determinante da masculinidade, não existe na mulher normal. Depois continua a fazer afirmações sem qualquer sentido. Uma vez presente no seio de Maria, o Logos começa a exercer sobre Maria, sua mãe, efeitos miraculosos: “Jesus, portanto, influenciará o corpo de Maria durante a fase de embrião, como acontece com todos os embriões. Não apenas de um modo contingente, mas eterno, como é próprio dele” (Judica Cordiglia, Semblanza físico-somática de Maria, in Theotocos, op. cit., p. 171).

A biologisação da encarnação levou a afirmar uma mudança na própria vida do Verbo. Em pleno século vinte, alguns autores pensavam que, pelo facto de Maria ser geneticamente gémea de Jesus, o seu corpo biológico não sofreu a corrupção. Daqui que se afirmasse a assunção de Maria como um acontecimento biológico: “Quando dois gémeos derivam do mesmo óvulo, isto é, têm o mesmo património hereditário, assemelham-se tanto no corpo como no carácter. Têm a mesma vida e destino. Do mesmo modo, e com maior razão, podemos admitir que o corpo de Maria, tal como o corpo de Jesus, fosse liberto por Deus da corrupção da morte e predestinado para ressuscitar e subir aos céus, tal como aconteceu com o corpo de Jesus” (Nicola Pende, Maria a la luz de la ciência biológica, in Theotocos, op. cit., p. 176).

Eis outra afirmação que vale apenas para confirmar como a devoção não é fundamento sério para fazer teologia: “A eternidade entra no tempo por meio do seio de Maria. Ai está a energia divina que, como um fermento, leveda toda a massa humana. O germe que se desenvolve e cresce. O Reino de Deus que começa na terra” (Raimondo Spiazzi, Maria en la realización histórica del plano de salvación, in Theotocos, op. cit., p. 194).

Paulo vê as coisas de modo diferente. Fala do homem originado no céu pelo Espírito Santo. Os homens novos, a nova criação é obra de Deus (cf. 1Cor 15, 46; 2Cor 5, 17). Os Padres dos séculos segundo e terceiro, mantêm uma postura bastante mais equilibrada do que os mariólogos de meados do século vinte. São Justino fala de Maria como a Nova Eva, a terra virginal que gerou o Novo Adão (Dial. Tryph., 100). Santo Ireneu diz que Maria é a mediação para o acontecimento de Cristo (Adv. Haer., V, 19, 1). Lucas, ao compor o cântico do Magnificat, situa Maria no conjunto dos grandes personagens bíblicos. Ela é a síntese da caminhada do povo bíblico para o acontecimento messiânico.


4- Ambiguidade do Título de Mãe de Deus

4.1- Insuficiente rigor teológico

O problema do devocionismo, na Mariologia, começou no século quinto. Quando Nestório disse que Maria gerou apenas a natureza humana de Cristo estava a dizer uma coisa correcta. Muitos destes problemas eram apenas uma questão de linguagens diferentes. Não deixa de ser curioso que a história dos dogmas conheça duas condenações heréticas que, em si mesmas, são contraditórias: o monofisismo e o duofisismo. Condena-se que Cristo tenha uma só natureza e condena-se que Cristo tenha duas naturezas. No fundo, as pessoas estavam a afirmar a mesma coisa com linguagens diferentes.

Cirilo, atacando Nestório, parecia mais inexacto que Nestório: “A virgem é mãe de Deus (theotocos), pois deu à luz, carnalmente, o Deus-Verbo feito carne” (Conciliorum Oecumenicorum Decreta, nº 59, Bolonha, 1972). Foi esta tese de Cirilo que venceu no concílio de Éfeso. No entanto, a que veio a vingar na história da Igreja foi a de Antioquia: Em Cristo há duas naturezas numa só «hypóstasis», isto é, numa única unidade subsistente. Com tudo isto pretendia-se afirmar um aspecto fundamental da fé: Jesus é tão plenamente humano como divino. No entanto, o termo theotocos continuou a ser o único a ser considerado correcto.

No Concílio de Calcedónia já domina o pensamento aristotélico, que era afinal o dos antioquenos que foram condenados no concílio de Éfeso. Calcedónia, como vimos, diz que Maria é mãe de Deus segundo a Sua humanidade. Referindo-se a Cristo, o Concílio de Calcedónia diz que a natureza humana e a divina, em Cristo, não se fundem nem confundem. Permanecem numa substância harmónica (prosopon-hypóstasis). As duas naturezas subsistem numa só pessoa subsistente, segundo a linguagem da época (Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Bolonha, 1972, nº 86). Hoje podemos dizer que Jesus Cristo, enquanto gerado por Maria, é um homem em tudo igual a nós, excepto no pecado. Enquanto interligado com o Logos, no Espírito Santo, é a expressão do próprio Filho de Deus a comunicar-se em grandeza relacional humana.

4.2- Uma exegese Inadequada

Não é difícil encontrarmos contradições enormes entre os autores. Isto deve-se ao facto de seres inspirados pela devoção e não pelo rigor da investigação. Vejamos uma afirmação absolutamente vazia de sentis e que mutila a verdade de Deus e do Homem: “O nascimento temporal (de Cristo) comporta maternidade real de Maria, mas não reciprocamente filiação real da parte de Cristo. Embora consubstanciada a Maria por sua humanidade, a ausência de pessoa humana no Filho de Deus incarnado implica ausência de nova filiação em face dela” (K. Elisabeth Borresen, Maria na Teologia católica, in Conc. Nº188, 1983, p. 79).

Que maneira de magoar Jesus de Nazaré e a sua mãe! A tradução de theotocos (mãe de Deus) para o latim exprimiu-se por «Dei genitrix» (aquela que gerou Deus). Esta tradução contradiz o concílio de Calcedónia. O termo «Dei genitrix» fazia de Maria uma grandeza divina preexistente. É certo que não se entendia isso, mas a expressão obnubilava a realidade de Deus. O Concílio Vaticano II foi muito mais equilibrado nas suas afirmações sobre Maria do que a Mariologia tradicional. É certo que chama Maria de “Mater Dei” (Lumen Gentium, nº 53; cf. nº 66 e nº 69]. Mas o termo já não tem o alcance da “Dei genitrix”. Maria, como mãe de Jesus, tem um papel ímpar na história da salvação.

A Sua maternidade, no entanto, situa-se na linha das mediações humanas. A recuperação do sentido bíblico de Cristo, Filho de Deus e da dinâmica da Encarnação é fundamental para os homens poderem perceber o alcance maravilhoso do projecto de Deus para todos nós.

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