Sentido Cristão dos Bens

Gana, minas de ouro no rio Pra. Fonte: National Geographic (em inglês)



Apesar dos progressos técnicos e científicos, a fome no mundo está a aumentar. Surgem novos surtos de antigas epidemias, além das novas que eliminam milhões de seres humanos. Enquanto os pobres estão cada vez mais pobres, os ricos exibem luxos e caprichos cada vez mais dispendiosos. As nossas sociedades são geradoras de pessoas egoístas onde a indiferença e a solidão crescem assustadoramente.

O projecto e a proposta que Deus faz aos homens vão numa direcção bem diferente: os bens da Terra destinam-se a todos os homens. Gerir bem as riquezas é orientá-las no sentido do bem de todos. É verdade que as pessoas não são todas iguais. Mas todas nascem iguais em dignidade e direitos. Os deveres vêm com o surgimento da consciência, da liberdade e da responsabilidade.

As pessoas que possuem bens têm uma vocação distinta daquelas que não possuem. A fidelidade à própria vocação é uma dimensão essencial para a realização e a felicidade da pessoa. A vocação das pessoas que possuem bens é coração na dinâmica da humanização, gerando ondas de fraternidade e partilha.

As pessoas que sabem partilhar são uma parábola viva do amor de Deus. Por outras palavras, a vocação dos que possuem bens é ser um sinal da providência divina. É esta a revelação que a Bíblia transmite sobre os bens como caminho para o amor ao jeito de Deus.

O Antigo testamento, com a sua cultura agrária, ordenava que os donos das propriedades não deviam ceifar e recolher todos os cereais. Deviam deixar pequenas porções para os pobres rebuscarem. O mesmo devia ser feito pelos donos das vinhas e dos pomares (Lv 19, 9-10). Cada três anos, um décimo dos produtos da sementeira ou das vinhas e pomares devia reverter em favor dos que não têm (Dt 26, 12).

A questão, nos nossos dias apresenta-se de modo diferente. Hoje o problema põe-se sobretudo na questão do salário justo dos que trabalham ou no direito à saúde dos que não têm dinheiro. Põe-se ainda no direito a uma habitação condigna, à escolaridade e uma boa formação profissional.

À luz da fé, nada há de essencialmente errado no que se refere ao dinheiro. É uma ferramenta para facilitar a vida das pessoas. Mas o problema é que pode ser usado para bem e para mal. Não há dúvida de que muitas pessoas estão impedidas de se humanizar por falta de dinheiro. Também não é segredo que muitas outras pessoas se desumanizam por usarem o dinheiro contra os seus irmãos.

O que as pessoas fazem com o dinheiro mostra realmente o que pensamos e somos em relação a nós e aos outros. Jesus disse que, onde estiver o nosso tesouro, aí estará o nosso coração (Mt 6, 21). Quando pomos o nosso dinheiro ao serviço do amor estamos a sintonizar com o coração da Criação. De facto, o amor é a interioridade máxima do Universo. Deus é Amor. O amor, portanto, é a primeira dinâmica que impele a génese da Criação. É este Deus, comunidade Trinitária de amor, que nos convida a sintonizar com o seu dinamismo criador.
A pobreza está a aumentar no mundo, mas isto não é uma fatalidade. Jesus ensinou-nos a entrar na dinâmica da partilha, o único caminho seguro para caminharmos no sentido da abundância. O pouco, partilhado chega para todos e ainda sobra (Mt 14, 13-21; Mc 6, 34-44; Lc 9, 10-17).

O pecado dos que se recusam a partilhar está em bloquear o processo criador e libertador das pessoas mediante a circulação dos bens. Os que se fecham na posse das riquezas dificilmente entrarão no Reino de Deus porque tentam estagnar o movimento interior que dinamiza a génese do Universo: o amor criador de Deus. Uma pessoa assim está no caminho do seu próprio malogro.

O projecto de Deus é encher de bens os famintos e despedir sem nada os que se recusam a partilhar (Lc 1, 53). Para isso os que têm duas túnicas que repartam com os que não têm. E os que têm de comer façam o mesmo (Lc 3, 10-11). Os que têm fome serão saciados (Lc 6, 20-21; Mt 5, 3-12).

É ser infiel à própria vocação fundamental passar a vida a amontoar tesouros na terra onde a traça e o caruncho os destroem e os ladrões os roubam (Mt 6, 19-20; Lc12, 33-34). Não se pode servir Deus e o dinheiro. Este deve estar ao serviço do projecto de Deus (Lc 16, 13 -14).

O insensato passa a vida a amontoar riquezas. Depois do celeiro cheio aumenta-o para levar mais. Quem vive como insensato, morre insensatamente. Foi o que aconteceu: Quando menos pensava, veio a morte e os seus bens ficaram para outros. Tudo o que amontoara de nada lhe serviu (Lc 12, 13-21). Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro que entra no caminho do malogro total? (Mt 16, 26; Mc 8, 36; Lc 9, 25).

A coragem de partilhar insere-nos na dinâmica da salvação: Vinde benditos de Deus, pois tive fome e sede, estava nu, preso e doente e vós atendestes-me (Mt 25, 34-45). A conversão ao Evangelho passa pela mudança de atitude face às riquezas: “Senhor, eis que dou metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém, restituo-lhe o quádruplo” (Lc 19, 8).

A proposta de Cristo é apresentada de modo ideal pelos Actos dos Apóstolos. A atitude da partilha leva à ausência de pobreza: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum. (...) Não havia entre eles qualquer indigente, pois os que possuíam terras ou casas vendiam-nas e colocavam o dinheiro aos pés dos apóstolos. Distribuía-se a cada um conforma as suas necessidades (Act 4, 32-35).

O pecado dos ricos que se recusam a partilhar radica no facto em que estes oprimem e impedem a humanização dos pobres, esvaziando-os da sua dignidade. Por isso estão no caminho do fracasso humano (Lc 1, 46-53). As pessoas não valem pelo que têm mas pelo que são (Lc 12, 15).

Valorizar as pessoas pelo ter é colocar-se numa perspectiva errada (Tg 2, 1-4). Não é este o modo de Deus ver as pessoas. O Evangelho não nos fornece leis sobre a partilha. Este nasce do amor. A generosidade não é uma questão de calcular as contas bancárias. É uma atitude que brota do coração e nos põe em sintonia com o coração de Deus. Pode haver pobres cujo coração está mais fechado à partilha que o de outros que têm mais bens.

Mas não podemos esquecer o alerta de Jesus. As riquezas são perigosas. Podem ser um obstáculo ao conhecimento e serviço de Deus (Lc 12, 16-21). O problema não é o ter dinheiro, mas o facto de ele conduzir facilmente à indiferença e a ignorar o sofrimento dos que estão em penúria. O dinheiro, se a pessoa não tem cuidado, obscurece a visão da pessoa face ao sofrimento e à carência dos pobres (Lc 16, 19-31).

Os cristãos estão chamados a ser no mundo uma parábola viva dos critérios do Evangelho face às riquezas. Jesus convida-nos a fazer melhor do que fazem os pagãos: favorecer os que têm e emprestar apenas àqueles que temos a certeza de que nos podem pagar (Lc 6, 27-28).

Neste ponto como em tantos outros os cristãos estão chamados a não se conformar com os critérios do mundo. Jesus chama-nos a viver uma vida profética no sentido de criarmos laços de comunhão e fraternidade partilhando os nossos bens com os que não têm. A partilha e a generosidade podem não ser atitudes politicamente correctas. Mas certamente que são atitudes fundamentais para uma vida profética. E os cristãos estão chamados a ser sal, luz e fermento profético no mundo (cf. Mt 5, 13-16).


Em Comunhão Convosco
Calmeiro Matias

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